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Fabulação e suas áreas de vizinhança

2 EXPRESSÃO E APRENDIZAGEM MUSICAIS EM DIFERENTES TEMPOS E

4.2 FABULAÇÃO EM DELEUZE E GUATTARI

4.2.1 Fabulação e suas áreas de vizinhança

A elaboração de conceitos na perspectiva deleuziana tem, em si, a ideia de que “[...] não há conceito simples. Todo conceito tem componentes e se define por eles. [...] É uma multiplicidade [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 23). Assim, o conceito de fabulação agrega-se a outras ideias e conceitos, visto que “[...] cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 27).

Entre os conceitos agregados, estão os conceitos de máquina abstrata e agenciamento coletivo de enunciação. Máquina abstrata é “[...] sempre singular, designada por um nome próprio, de grupo ou de indivíduo, ao passo que o agenciamento de enunciação é sempre coletivo, no indivíduo ou no grupo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). As máquinas abstratas e os agenciamentos coletivos não se opõem, mas coexistem na linguagem numa relação de ressonância, não sendo possível distinguir o que são as constantes e o que são as variáveis em uma língua, ou seus atos de fala e uma língua coletiva, reagindo entre si de variadas formas:

máquina abstrata-Lênin e agenciamento coletivo-bolchevique... O mesmo é válido para a literatura, para a música. Nenhum primado do indivíduo, mas indissolubilidade de um Abstrato singular e de um Concreto coletivo. A máquina abstrata não existe mais independentemente do agenciamento, assim como o agenciamento não funciona independentemente da máquina (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48).

Os agenciamentos coletivos de enunciação são as produções, os gestos, enfim, todas as expressões que desterritorializam a linguagem cristalizada, afastando-se de “[...] uma linguagem de papel [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 39). Por essa via, o que um músico ou “[...] o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum, e o que ele diz ou faz é necessariamente político, mesmo que os outros não estejam de acordo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). Por esse exato ângulo, podemos afirmar que “[...] não há sujeitos, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação [...], a ligação do individual no imediato-político” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 38- 39, grifos dos autores).

Nesse sentido, podemos mencionar o agenciamento coletivo Debussy, que desterritorializou as formas de expressão e de conteúdo próprias do romantismo, criando um estilo, uma assinatura, bem como abrindo linha de fuga por onde transitavam os anseios por novas texturas sonoras. Destacamos, ainda, o agenciamento coletivo Ravel, cujo “Bolero [...] é um tipo de agenciamento maquínico que conserva da forma o mínimo para leva-la à explosão” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 64).

A questão dos diferentes estilos da linguagem musical no universo-Deleuze e Guattari são da ordem de um continuum, ou seja, as modelagens sonoras de cada época não sinalizam para uma evolução, mas são, antes, diferentes agenciamentos, que “[...] comportam máquinas diferentes, ou relações diferentes com a máquina [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 173). Assim, a desterritorialização sonora não comporta uma antinomia entre estilos, mas uma coexistência, como “[...] matéria em movimento de uma variação contínua [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 164, grifo dos autores). Nessa perspectiva, o romantismo não desterritorializou o classicismo, tampouco o modernismo é uma evolução do período romântico:

não se deve interpretar essas três „idades‟, o clássico, o romântico e o moderno [...], como evolução, nem como estruturas com cortes significantes. São agenciamentos que comportam máquinas diferentes, ou relações diferentes com a máquina. Num certo sentido, tudo o que atribuímos a uma idade já estava presente na idade precedente (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 173).

Para os filósofos Deleuze e Guattari, o fazer musical é, portanto, um agenciamento contendo a ideia de tornar-se, um transbordamento do campo das virtualidades para o real, compondo a ordem do devir. O conceito de devir no pensamento deleuziano diferencia-se da noção de possibilidade, comportando o sentido de atualização e criação:

a atualização do virtual [...] sempre se faz por diferença, divergência ou diferenciação. A atualização rompe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como princípio. A atualização, a diferenciação, nesse sentido, é sempre uma verdadeira criação (DELEUZE, 2006, p. 202).

A música comporta devires de diferentes naturezas, por exemplo, as obras de Schumann, que remetem às infâncias e aos animais, e as obras de Villa-Lobos, que aludem às brasilidades sertanejas. Deleuze e Guattari (2012b, p. 111-112) discorrem sobre o devir-criança, devir-animal e devir-mulher: “[...] a música toma por conteúdo

um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as pequenas batidas de timbale; [...] os pássaros toam expressão em grupetos”.

A obra deleuziana apresenta outro conceito, igualmente importante para o desenvolvimento do estudo relatado nesta tese: a ideia de ritornelo, entendendo-o como matéria de expressão “[...] essencialmente territorial, territorializante ou reterritorializante [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106). Assim, o ritornelo pode ser entendido como o canto de um pássaro, um som ou ideia repetitiva, o motivo musical que gruda na cabeça. Engloba em si mesmo as possibilidades de territorialização, desterritorialização e reterritorialização sonoras, consistindo na própria aventura da arte dos sons, podendo ser desterritorializado na e pela música, observando que “a música é precisamente a aventura de um ritornelo: a maneira pela qual a música vira de novo um ritornelo em nossa cabeça, “[...] nos dispositivos pseudorrastreadores da TV e do rádio, um grande músico como prefixo musical [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 108).

O canto dos pássaros e as pedras são ritornelos na mesma medida em que são agenciamentos territoriais que podem ser desprendidos de suas clausuras em processos metamorfoseantes de sons melódicos ou de silêncios. Nesse sentido, o compositor Olivier Messiaen (1908-1992) transcodificou o canto dos pássaros em paisagens musicais e Luigi Nono (1924-1990), as pedras em silêncios potenciais, ur- som10. Assim, a matéria de expressão sonora está em qualquer lugar, diante do que Deleuze e Guattari (2010, p. 200-201) observam: “[...] que estranhos devires desencadeiam a música através de suas „paisagens melódicas‟ e seus „personagens rítmicos‟, como diz Messiaen, compondo, num mesmo ser de sensação, o molecular e o cósmico, as estrelas, os átomos e os pássaros?”.

O ritornelo é o próprio material musical arrancado de sua territorialidade, tornando- se som, devindo-som, em um processo de transcodificação de afeções e percepções em afectos e perceptos. A música é atravessada de ritornelos, ritornelos de etnias, de crianças, de amor, de mulheres, de pássaros, transbordados em floreios, blocos sonoros, rítmicas, timbres, pois “[...] a expressão musical é

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Luigi Nono (1924-1990), cujas obras privilegiavam o timbre, trabalhou em suas últimas composições com as ideias de som-silêncio, som-sopro, som-voz e ur-som, significando este o som das pedras.

inseparável de um devir-mulher, um devir-criança, um devir-animal que constituem seu conteúdo” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 104). Universo-Schumann, universo-Villa-Lobos, povoados de blocos de infância, blocos-mulher, blocos-animal, submetidos a um tratamento especial: “[...] o motivo do ritornelo pode ser a angústia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o território... mas, quanto ao ritornelo, ele é o conteúdo da música” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106).

Assim, na perspectiva deleuziana, a ação do músico consiste em desterritorializar o ritornelo, “[...] escrevê-lo em música [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106), tornando-o musical: “é desde sempre que a pintura se propôs tornar [o invisível] visível, ao invés de reproduzir o visível, e a música, a tornar [o insonoro]sonoro, ao invés de reproduzir o sonoro” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 174).

Nessa trajetória, adentramos o território da concepção de arte, que, na perspectiva de Deleuze e Guattari (2010), é um processo criação, e não de uma representação, imitação ou metáfora, afastando-se das concepções de Platão, Aristóteles, Schopenhauer e Swanwick. Para esses filósofos, ao contrário, a arte ou sua expressão é ato criativo que faz “[...] estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202).