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2 EXPRESSÃO E APRENDIZAGEM MUSICAIS EM DIFERENTES TEMPOS E

2.1 CONCEPÇÕES, SONORIDADES E EDUCAÇÃO MUSICAL

2.1.3 Renascença

Acontecimentos que se sucederam nos séculos XIV, XV e XVI levaram a um gradual desmantelamento das estruturas feudais e consequente diminuição do poder eclesiástico, relativizando as prescrições e o controle exercidos pela Igreja, fechando as configurações econômicas, políticas e sociais que caracterizaram a era medieval.

Inaugura-se, assim, a Renascença, período em que, praticamente em todas as regiões da Europa, eclodiu “[...] uma vasta fermentação de ideias [...] e a liberdade de pensamento [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 306), que impulsionaram o desenvolvimento técnico, bem como o “[...] espírito científico, cujo procedimento experimental se opõe à superstição e à rotina” (CANDÉ, 2001a, p. 306).

No tocante à música como fazer artístico, a Renascença marcou uma transformação importante para os processos criativos e sua expressão, constituindo-se um período de libertação dos dogmas da Igreja Católica, alimentando nos músicos o desejo de superar as rígidas regras de composição e execução, consagrando “[...] todas as suas atenções ao estilo e à expressão poética. O estilo se ajusta mais ao prazer do que à convenção, e a expressão poética impõe ao canto uma nova flexibilidade” (CANDÉ, 2001a, p. 337).

Impulsionados pelo desejo de novos timbres e formas musicais e encorajados pelos avanços tecnológicos, músicos lançam-se na criação de instrumentos musicais, bem como em uma maior liberdade de expressar suas ideias e emoções por meio da arte dos sons, marcando “[...] o abandono de um equilíbrio perfeito e [a] descoberta de uma nova expressão” (CANDÉ, 2001a, p. 321).

Nessa perspectiva, constatamos a construção de diferentes tipos de teclado, que, ao longo da Renascença, serão dotados de um riquíssimo repertório: “em 1386, [surge] um instrumento munido de dois teclados manuais [...] o teclado de pedal, [...] o échiquier, que não possui os mecanismos engenhosos que darão origem, no século XVI, ao clavicórdio (cordas percutidas) e ao cravo [...], mas tem certo sucesso” (CANDÉ, 2001a, p. 303). Outras sonoridades comumente usadas no contexto dos Quatrocentos e dos Quinhentos são as das vielas (espécie de viola), harpas, alaúdes, saltério, órgão e flautas.

Figura 3 - Jovem tocando clavicórdio, pintura de Jan van Hamessen (1534) Fonte: Bennett (1993)

A liberdade no fazer musical renascentista fez-se perceber não somente entre os compositores, mas também entre os instrumentistas ou cantores, pois “[...] a coisa escrita ainda não impõe nenhum respeito impositivo e a variabilidade das execuções será constante até a metade do século XVIII” (CANDÉ, 2001a, p. 337). As execuções sonoras se utilizavam de instrumentos e vozes de maneira não habitual, agrupando uma diversidade de instrumentos “[...] cujo uso não é prescrito pela música escrita [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 337). Nesse sentido, muitos compositores queixavam-se de que os cantores entoavam as músicas usando “[...] toda sorte de artifícios: trêmulos, trinados, diminuições, floreios, mudanças de registro, voz de cabeça e, sobretudo, certo tremolos na voz que delicia as multidões na Itália” (CANDÉ, 2001a, p. 337).

Figura 4 - O concerto, óleo sobre tela de Gerrit van Honthorst (1624) Fonte: O livro da Arte (1996, p. 228)

Outro fato de fundamental importância para a liberdade na expressão musical na Renascença foi a invenção da imprensa, que estendeu suas atividades ao campo da arte dos sons, propiciando a divulgação e a aprendizagem das composições, por meio da leitura de partituras, desprendendo-se das mãos e das orientações do compositor. A partir de 1473, foram criadas diversas oficinas que usavam o mesmo procedimento tipográfico de Gutenberg, abrindo caminho para os primeiros impressores-editores de música, constituindo-se um “[...] trabalho delicado, pois a impressão deve ser feita em três tempos: uma primeira passagem para as pautas, uma segunda para as notas, uma terceira para o texto e a paginação” (CANDÉ, 2001a, p. 322).

Embora a produção de partituras impressas tenha sido um fator decisivo na abertura de uma nova trajetória nos processos sonoros, propiciando a aprendizagem de músicas executadas por grandes cantores e instrumentistas, a invenção da imprensa sinalizou igualmente para uma diferenciação no status social, visto que

os impressores-editores desempenharam um papel considerável na difusão da nova música e na formação de um público de diletante. Mas essa promoção cultural se limita às classes sociais mais favorecidas, porque os livros e também o papel de música custam caríssimos [sic]. Se a impressão favoreceu a difusão da polifonia erudita, também contribuiu para criar classes sócio-musicais. Não tendo acesso à música notada, o povo é obrigado a cultivar outra música, improvisada ou de tradição oral. [...] na parte superior da escala social, a música faz obrigatoriamente parte da cultura geral: deve-se saber tocar um instrumento, como se deve saber compor versos latinos (CANDÉ, 2001a, p. 322).

Assim, na década de 1520, verificamos a publicação de um grande número de diferentes estilos musicais. Intérpretes que tivessem possibilidade de acesso aos materiais teriam liberdade de execução: “[...] o cantor solista podia, assim, dar um tratamento bastante livre às notas escritas, introduzindo ornamentos [...] improvisados em uma ou várias cadências principais” (GROUT; PALISCA, 2007, p. 224). Músicos talentosos e virtuoses adquiriram reconhecimento e sucesso, superando o prestígio dos compositores, valorizando sua arte, tomando

[...] toda sorte de liberdades com o texto. Os diletantes tomarão outras, por motivos diferentes: desejosos de executar a música em voga, devem contar com os limites de seu talento, a quantidade e a qualidade de seus parceiros, sem falar na preocupação de imitar determinado virtuose renomado (CANDÉ, 2001a, p. 338).

Tratando ainda do acesso dos diletantes renascentistas às composições, Candé (2001a) abordou a produção e a divulgação de canções francesas com tablatura apropriada para o alaúde, permitindo a execução por uma ou mais vozes, com acompanhamento instrumental, em cujas partituras o compositor apresentava sugestões para diferentes modos de execução, destinada ao público em geral. No que diz respeito à educação musical, suas trilhas seguiram os mesmos passos da educação em geral, constituindo-se um reflexo das ordens social e econômica, visto que as mudanças políticas ocorridas tiveram especial interferência na estrutura dos valores sociais, bem como na geração de uma nova dinâmica na vida cotidiana, passando a ser regida “[...] por disputas de prestígio – e que exigia a educação e comportamentos capazes de diferenciar os cortesãos uns dos outros” (VEIGA, 2007, p. 34).

Desse modo, passou-se a atribuir à aquisição de conhecimento um importante valor como elemento de diferenciação de prestígio na sociedade, produzindo novas concepções de educação, bem como “[...] a proliferação dos colégios [...]” (VEIGA, 2007, p. 33). Nessa perspectiva, tem-se início “[...] uma preocupação com as distinções para a educação das crianças – ou pelo menos dos filhos dos burgueses e aristocratas” (VEIGA, 2007, p. 38).

Essas novas feições sociais fizeram-se refletir na modificação dos antigos colégios, que, “[...] no século XIII [...] eram asilos para estudantes pobres [...] bolsistas [...]” (ARIÈS, 2006, p. 110), tornando-se “[...] institutos de ensino [...] a partir do século XV” (ARIÈS, 2006, p. 110). Tais institutos passaram a atender não somente aos bolsistas, mas a uma numerosa população de estudantes. Esses estabelecimentos constituíram o modelo de escola que iria vigorar entre os séculos XV e XVII, nos quais “[...] todo o ensino das artes passou a ser ministrado” (ARIÈS, 2006, p. 110). É por essa via que, a partir do século XVI, os colégios, ou hospitia, passam a ser os espaços nos quais as práticas musicais e sua aprendizagem eram desenvolvidas. Assim, originaram-se as “[...] escolas de formação básica em música, dentro de um princípio de organização diferente do das scholae. [...], conhecidas como „conservatórios‟ [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 38), que funcionavam, na verdade, como orfanatos, sendo oficialmente denominados como Ospedali (hospitais).

Os orfanatos musicais eram comumente organizados para acolher meninas e meninos separadamente, tendo o primeiro desses sido criado em Nápoles, em 1537, destinado a meninos, e outro, em Veneza, direcionado a meninas. Embora o fazer musical das scholae cantori fosse direcionado ao louvor a Deus, já havia uma preocupação em se organizar os conteúdos e métodos, incluindo-se aí a escrita musical e sua execução em língua materna.

Tais modificações podiam ser observadas tanto em escolas católicas quanto em escolas protestantes, evidenciando “[...] a necessidade de buscar critérios uniformes que não descaracterizassem a música cristã que se expandia” (FONTERRADA, 2005, p. 39), “[...] criando a necessidade da transmissão formal de conhecimento” (FONTERRADA, 2005, p. 39). Podemos afirmar que se inicia aí um processo de alfabetização musical, facilitado pela notação da arte dos sons, já em curso, conforme Candé (2001a), desde o século XI.

No que diz respeito à visão de criança, a sociedade renascentista passa a entendê- la “[...] como um ser que necessita de cuidados, [...] educação e lazer” (FONTERRADA, 2005, p. 38), distanciando-se da concepção medieval em relação aos infantes.

As instituições escolares nesse período – os colégios, ou hospitia, ospedale – eram divididas em “[...] colégios dos jesuítas, os colégios dos doutrinários e os colégios dos oratorianos [...]” (ARIÈS, 2006, p. 110), sendo os primeiros os que mais se proliferaram na Europa e, posteriormente, em outros continentes, constituindo-se como “[...] o grande marco de ensino nas sociedades católicas europeias e latino- americanas, [...] integrando a pedagogia humanista ao espírito da cristandade” (VEIGA, 2007, p. 41). Especificamente, a ordem dos jesuítas, ou Companhia de Jesus, foi fundada por Inácio de Loyola, em 1534, tendo como objetivos centrais o combate à Reforma Protestante e às “heresias”, dedicando-se “[...] principalmente à formação das classes dirigentes da sociedade [...]” (MANACORDA, 2006, p. 203). Na verdade, os jesuítas fundaram dois diferentes tipos de colégios, de acordo com a estratificação social: “[...] havia tanto escolas para burgueses e nobres quanto escolas exclusivas para filhos de nobres [...]” (VEIGA, 2007, p. 41).

Com as mudanças ocorridas no campo científico e da criação músico-instrumental, constatamos, já no século XVI, o movimento dos reformadores, que defendiam o uso da língua materna para a leitura da Bíblia, bem como para a execução de seus cantos. Além desses aspectos, alguns grupos de reformadores reivindicavam um novo modelo de instrução popular, verificando-se mobilizações de pequenos artesãos associados ao campesinato, que chegaram a projetar “[...] corajosamente um sistema de instrução popular [...]” (MANACORDA, 2006, p. 195). Na esteira da Reforma e da Contrarreforma, Lutero emergiu como força propulsora para a programação de um novo sistema escolar, “[...] voltado também à instrução de meninos, destinados não à continuação dos estudos, mas ao trabalho” (MANACORDA, 2006, p. 196).

Em se tratando das concepções relativas à expressividade sonora, constatamos em Sadie e Tyrrell (2001a) que a doutrina aristotélica de arte como imitação da natureza permanece do fim da Antiguidade até o princípio do século XVIII, atravessando todo o período medieval e renascentista como a principal referência para as reflexões a respeito dessa temática, constituindo-se uma base fundamental para o desenvolvimento dos processos criativos no campo da arte. Nessa perspectiva, de acordo com Bennett (1986), no fim do século XVI, um grupo musical – Grupo Camerata – de Florença, Itália, passou a compor uma linha melódica simples acompanhada de um baixo instrumental, associando a essa simplicidade a expressão das emoções, dos estados da alma.