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QUINTO TERRITÓRIO (QUARTA SEMANA DE OUTUBRO/2016)

5 DIÁLOGOS E VIVÊNCIAS COMO POSSIBILIDADES NO FAZER MUSICAL

5.5 QUINTO TERRITÓRIO (QUARTA SEMANA DE OUTUBRO/2016)

5.5.1 Oficina de modelagens no piano

Durante a oficina de texturas, notei que os alunos ainda estavam bastante tímidos para produzir diferentes sonoridades ao piano, fazendo tentativas de tocá-las de maneira rápida, e, muitas vezes, repetindo o mesmo som para texturas diferentes. Essa postura de timidez pode ser observada no vídeo dos dois grupos que participaram da oficina de texturas, estando mais evidente no momento em que eles vão ao piano para criar sonoridades relativas às texturas, que havíamos experienciado por meio do tato em encontro realizado anteriormente.

Esse fato reportou-me aos estudos deleuzianos sobre as relações entre as matérias de expressão e os fatores inibidores e desencadeadores que agem sobre elas (DELEUZE; GUATTARI, 2012b), deslocando o acento comportamental da inibição para uma visão mais ampla dos fatores que nela operam. Por esse prisma, a inibição é uma expressão do aluno que pode estar relacionada aos regimes de signos praticados nas relações dominantes entre professor e aluno, encerrando “[...]

uma operação muito mais inconsciente e maquínica que faz passar todo o corpo pela superfície esburacada, e onde o rosto não tem o papel de modelo ou de imagem, mas o de sobrecodificação” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 40). Dessa maneira, a rostificação – sistema muro branco-buraco-negro – poderá atuar na articulação dos gestos, das falas, rosto e mãos: “[...] o rosto é um mapa [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 39).

É nesse sentido que é fundamental conhecer as diferenças sobre as concepções de aprendizagem, sabendo que suas respectivas práticas poderão ou não fomentar os contextos de desencadeamento da expressão. Nessa perspectiva, momento em que a dificuldade relatada foi observada, busquei linhas de fuga que pudessem desmontar ainda mais os formatos instituídos nas aulas de piano, visando a incentivar os alunos a uma maior soltura e reconceituação de si mesmos, passando ao entendimento de que são seres de criação, e não de repetição ou de petição de obediência.

Desse modo, na preparação da oficina de modelagem de piano, lembrei-me dos trabalhos pianísticos realizados por John Cage (1912-1992), que criou um sistema de composição que participou de maneira contundente dos movimentos de levar o “[...] público a aceitar a igualdade de todos os fenômenos sonoros [...]” (ISAACS; MARTIN, 1985, p. 62). A preparação do piano feita por John Cage previa a utilização de materiais inusitados, lançando mão de “[...] nozes, correntes, parafusos, pedaços de borracha e de plástico [que] eram inseridos sob e certas cordas desse instrumento. Isso afetava tanto o timbre quanto a afinação das notas, produzindo sonoridades profusamente variadas” (BENNETT, 1986, p. 76).

Assim, com o objetivo de provocar uma situação de maior intimidade do(s) aluno(a)s com o piano, preparei uma sessão de vídeo sobre os trabalhos do referido compositor, sugerindo a eles, posteriormente, a preparação do nosso piano de sala de aula. Relativamente à sessão do vídeo, o(a)s aluno(a)s reagiram com os comentários a seguir.

Diferente, né? Com objetos simples... garfos... A gente não usa, né? O som, quando você ouve primeiro, é meio estranho. Depois você vai acostumando com o som. (FRANCO)

Quando eu não vi que era[m] aqueles negócios [parafusos, garfos, pedaços

Bem diferente. (KARLA)

Meio estranho... É... porque não parece muito com piano! (ANDERSON)

Assim, na sequência, passamos à recriação do piano preparado com o piano que usamos em aula, introduzindo materiais diferentes entre suas cordas. Parecia que os alunos tinham gostado da ideia, titubeando entre a curiosidade e o estranhamento. Sobre tal proposta, Lucas respondeu:

Seria bem legal! (LUCAS)

Passamos, então, à modelagem do piano. Coloquei os materiais à disposição dele(a)s, que passaram a explorar as possibilidades de criação sonora. Animadamente, ele(a)s foram experimentando os sons à medida que iam colocando na harpa do piano materiais como garfos, parafusos, brocas e sacolas plásticas, lixa e pinças.

Figura 33 - Alunos durante a oficina de modelagem do piano com diferentes materiais Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis

Ramos)

Foi possível notar a alegria nos rostos dos alunos, que se concentraram na modelagem do som, conforme o material utilizado. Fizeram experimentos, tocando teclas isoladamente e também tocando peças musicais que não são trabalhadas no repertório da Fames. Sugeri que experimentassem tocar as composições do repertório programático, observando a modificação dos timbres e afectos das músicas. As expressões de surpresa e contentamento ficaram visíveis.

Anderson, ao experimentar tocar uma de suas músicas do repertório, estranhou os sons. Ele tocava o primeiro acorde e parava, surpreso... (ver arquivo Cena_4 no DVD)

Figura 34 - Rodeado pelos colegas, Anderson, ao piano, experiência as sonoridades inusitadas do piano modelado.

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

As paisagens desse território remeteram-me ao pensamento de Deleuze e Guattari (2010), para quem a experiência integra os processos de elaboração do conhecimento em suas diversas instâncias, sendo condição mesma da criação dos sistemas científicos, dos conceitos filosóficos, da mesma maneira que os afectos e perceptos da arte. Tais elementos “[...] não preexistem inteiramente prontos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152) nos referidos sistemas, sendo forjados nos processos de experiência e de experimentação do pensamento, tanto na ciência quanto na filosofia e na arte, “[...] nenhuma criação existe sem experimentação [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152).

No âmbito da educação musical – tanto para educadores da primeira geração quanto para os que a ela se seguiram –, a experimentação é entendida como aspecto fundamental na aprendizagem. Em relação aos educadores musicais do século XX, suas metodologias enfatizam a experimentação como o elemento propulsor do despertamento e desenvolvimento da musicalidade, sendo,

[...] sem dúvida, o que motivou sua classificação como „métodos ativos‟, isto é, todas elas descartam a aproximação da criança com a música como procedimento técnico ou teórico, preferindo que entre em contato com ela como experiência de vida. É pela vivência que a criança aproxima-se da

música, envolve-se com ela, passa a amá-la e permite que faça parte de sua vida (FONTERRADA, 2005, p. 163).

Com referência ao pensamento de Carl Orff, por exemplo, verificamos em Fonterrada (2005, p. 151) sua aposta na premissa de que “[...] todo conhecimento [...] provém da experiência, e o que ocorre com a música e a palavra também se dá com o movimento e a expressão plástica”.

A vivência na oficina de piano preparado de John Cage levou o(a)s aluno(a)s a se aproximar mais do piano, tocá-lo, imprimir-lhe ideias sonoras. Essa oficina moveu nosso pensamento de maneira mais intensiva, proporcionando ainda maior soltura na expressão musical. O(A)s aluno(a)s como um todo e eu, como aprendiz- cartógrafa, passamos a nos manifestar com maior confiança, intensificando os processos inventivos. Apesar do estranhamento inicial por parte dele(a)s em relação às sonoridades do piano preparado mostradas no vídeo apresentado em aula, podemos afirmar que essa atividade despertou-lhes o conhecimento de que a matéria sonora é plástica, moldável, colocando-o(a)s em contato direto com diferentes aspectos dos códigos e signos da arte dos sons.

A partir disso, é preciso sublinhar a necessidade de se criar diferentes contextos educacionais para as aulas de performance pianística, especialmente aquelas direcionadas a crianças e adolescentes, pois, de maneira geral, os cursos de formação de pianistas – mesmo aqueles intitulados como cursos de pedagogia do piano – focalizam aspectos técnicos como sendo os principais fundamentos da aprendizagem da performance, ancorados no campo da psicologia comportamental, como relatado em capítulo anterior. A teoria de Russel (1980) e os princípios de Juslin (1997, 2003) vêm se firmando como referências exclusivas nesse campo, imprimindo uma concepção de aprendizagem que entende os temas de motivação e fluxo como aspectos desvinculados dos desejos, interesses e vivências dos aprendizes. Ou seja, os estudos sobre a aprendizagem da performance na perspectiva da psicologia comportamental tratam a motivação e os resultados da aprendizagem como fenômenos neurofisiológicos, desconsiderando a visão de que todo processo de aprendizagem implica – preponderantemente – relações educacionais, relações de desejos, aprendizagens e vivências sociais e culturais.