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As migrações fazem parte da história de Portugal, tendo o país, desde sempre, beneficiado dos importantes contributos das pessoas migrantes aos mais diver- sos níveis (na demografia, contas públicas, diversidade étnica e cultural, entre outras áreas).

As cidadãs e os cidadãos estrangeiros/as residentes em Portugal represen- tam cerca de 3,9% do total da população, representando mais de 170 nacionali- dades.

Esta enorme e rica diversidade coloca importantes e aliciantes desafios em termos do seu acolhimento e integração.

Em concordância com a tendência verificada noutros países e regiões, tem-se registado uma feminização da imigração. Em 2016, as mulheres migrantes repre- sentavam 52% do total das pessoas estrangeiras residentes em Portugal.

População estrangeira residente em Portugal, segundo o sexo, entre 2010 e 2015

Fonte: Observatório das Migrações, ACM

Pese embora se soubesse da existência de mulheres a viver com MGF em Por- tugal, fruto dos fluxos migratórios de países onde esta prática está documentada,

só mais recentemente, desde 2015, com o estudo do CESNOVA, temos informação quanto à sua prevalência: residem, em Portugal, cerca de 5.246 mulheres em ida- de fértil submetidas à prática, estimando-se ainda a existência de 1.330 mulheres com 50 e mais anos.

Para além dos dados do CESNOVA, o EIGE (European Institute for Gender

Equality) realizou um estudo centrado na estimativa de meninas e raparigas em

risco de serem submetidas à prática.

Segundo o EIGE, em 2011 residiam em Portugal 5.835 meninas e raparigas provenientes de países com MGF (nascidas no país de origem ou em Portugal) entre as quais se estabeleciam dois cenários de risco: risco elevado e risco baixo, 1.365 no cenário de risco elevado (23%) e 269 de baixo risco (5%).

Distritos Mulheres residentes Prevalência MGF 15-49 anos 50+ anos Total 15-49 anos 50+ anos Total

Lisboa 7494 1829 9323 3704 895 4599 Setúbal 1488 374 1862 737 182 920 Faro 484 80 564 243 39 282 Porto 315 105 420 147 50 198 Aveiro 202 66 268 101 33 134 Coimbra 123 49 172 61 24 85 Braga 126 32 158 58 16 75 Leiria 80 38 118 41 18 59 Santarém 73 45 118 36 21 57 Madeira 36 5 41 18 2 20 Viseu 33 20 53 16 10 26 Açores 28 4 32 14 2 15 Castelo Branco 23 15 38 11 7 19 Beja 19 9 28 11 4 15 Évora 19 8 27 9 4 13 Bragança 18 16 34 9 9 18 Viana do Castelo 15 9 24 8 5 13 Vila Real 15 6 21 8 3 11 Guarda 15 1 16 7 1 8 Portalegre 11 7 18 5 3 9 Total 10617 2718 13335 5246 1330 6576

Em conformidade com os dados do CESNOVA, é no distrito de Lisboa que se encontra o maior número de mulheres com MGF (cerca de 70%) e, dentro des-

te conjunto, cerca de 90% residem nos municípios de Sintra, Loures, Odivelas, Amadora, Lisboa e Cascais.

Perante estes dados, ficou clara a necessidade de uma intervenção territoria- lizada nas zonas geográficas de maior prevalência, potenciando, para tal, siner- gias e identificando parcerias e pessoas que pudessem ser agentes de mudança pelo fim da MGF.

Dois exemplos desse tipo de intervenção são os projetos:

• “A(s) Voz(es) contra a MGF”, candidato ao prémio Contra a MGF Mudar Agora o Futuro (2014), promovido pela AJPAS - Associação de Interven- ção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde, em parceria com a P&D Factor - Associação para a Cooperação sobre População e Desen- volvimento (adiante referida como P&D Factor) e com a colaboração da Associação dos Filhos e Amigos de Farim e o apoio da Câmara Munici- pal da Amadora;

• “Senhoras de Si”, promovido pela P&D Factor e resultante de um proto- colo celebrado com a Câmara de Cascais, SeaAgency e em colaboração com parceiros locais da Saúde e Intervenção Social.

No caso do projeto “A(s) Voz(es) contra a MGF”, e a partir do conhecimento dos territórios, quer pelas entidades promotoras dos projetos quer das parcerias e redes locais, foi possível identificar pessoas, do sexo masculino e feminino, po- tenciais lideranças para o desencorajamento/eliminação da MGF.

No caso do “Senhoras de Si”, como o nome indica, foi estratégica a seleção apenas de senhoras, em articulação com as entidades parceiras, visando especifi- camente o seu empoderamento.

Neste artigo partilhamos algumas reflexões sobre essas lideranças e vozes, o seu papel e os desafios que se colocam.

i. No que concerne às lideranças e vozes femininas, em primeiro lugar é de elementar justiça enaltecer a força e determinação das mulheres migrantes, tan- tas vezes o único sustento das famílias, regra geral a trabalhar no setor informal e, como tal, mais desprotegido em termos da garantia dos seus direitos.

A aposta foi, e acreditamos dever ser sempre, no seu empoderamento. Esta capacitação passa por questões várias que vão desde a tomada de consciência de que são sujeitos de direito e o que isso implica nas suas vidas.

A título de exemplo, o plano das sessões das Senhoras de Si, que decorreram aos sábados durante quatro meses (5 de março a 9 de junho de 2016) partiu das próprias senhoras, das suas necessidades e expetativas: conceitos, papéis sociais e direitos da mulher, do homem, da criança e das famílias; saúde das mulheres; violência doméstica; como gerir um orçamento familiar; saber falar em público;

cultura e religião; práticas tradicionais (incluindo a MGF e o casamento infantil), entre outros temas. Realizou-se uma sessão sobre auto-maquilhagem, em que uma formadora as ensinou a maquilhar e um fotógrafo tirou fotografias para cada uma delas. Outra sessão contou com a presença de uma advogada que lhes explicou aspetos da legislação laboral que mais lhes interessavam.

Esta abordagem integrada levou a que as Senhoras sentissem que o tempo que ali passaram foi útil, conseguiram informações/respostas sobre preocupa- ções que tinham e onde recorrer para as resolver.

Esta é uma preocupação subjacente à intervenção da P&D Factor, conside- rando que todas as intervenções feitas no terreno sejam win-win, ou seja, com resultados benéficos para as entidades e técnicos, que alcançam assim os seus objetivos, mas também para as pessoas para quem os projetos são criados.

ii. Uma preocupação da P&D Factor foi mostrar que o tempo que as Senhoras estiveram nas sessões tinha um valor: apesar de ser simbólica, dadas as limitações orçamentais, considerámos essencial dar-lhes uma bolsa que elas não esperavam de todo. Para além desta bolsa, fomos dando pequenas lembranças, no âmbito de cada sessão: um espelho, bases e pincéis, na sessão de auto-maquilhagem; uma calculadora na sessão sobre literacia económica (gestão do orçamento familiar).

Pese embora as motivações financeiras não possam ser o mote para se tra- balhar pelo fim da MGF ou outras práticas nefastas, o tempo despendido nestas ações deve ser valorizado. Mais do que meras participantes ou grupo-alvo de projetos, as mulheres migrantes têm de ser protagonistas dos processos em que são visadas/envolvidas.

iii. Falar de mulheres migrantes remete para uma grande diversidade no seu seio – quer em termos de idade, motivações que levaram a deixar os países de ori- gem (reagrupamento familiar, migração laboral, etc.), países de origem, etc. Esta diversidade deve ser acautelada em cada intervenção porque implica realidades, expetativas e percursos de vida igualmente diversos.

iv. A desigualdade está igualmente presente entre as próprias mulheres: as mulheres mais velhas muitas vezes não deixam que as mais novas falem, sobre- tudo quando se trata de assuntos ligados às tradições (MGF e casamentos infan- tis), não lhes reconhecendo legitimidade para o fazer.

v. É necessário conhecer melhor as questões da violência nas comunidades migrantes: a violência é encarada como “normal” (violência intrafamiliar, inter- geracional, violência doméstica, violência no namoro, etc.). A MGF como forma de violência com base no género acaba por ser mais uma das formas de violência, “normalizada” pela desigualdade de género tão presente nessas comunidades.

vi. Verifica-se uma baixa escolaridade e fraco domínio da língua portuguesa (falada e escrita), que condicionam a intervenção no terreno.

De realçar que a baixa literacia, por um lado, e/ou o não reconhecimento de habilitações, por outro, leva a que um imenso potencial humano se perca ao obri- gar estas pessoas ao trabalho indiferenciado, precário, desprotegido, regra geral mal remunerado, o que não lhes permite a independência económica e a gestão das suas vidas.

Acresce que o facto de se ter nascido e emigrado de um país que tem o por- tuguês como língua oficial (ou que foi uma colónia portuguesa no passado) não implica, à partida, que se domine a língua portuguesa. O não domínio da língua portuguesa pode, assim, ser uma barreira mesmo para estas comunidades.

vii. É necessário trabalhar a autonomia das raparigas e mulheres para que possam, sem o recurso constante a técnicos/as ou a mediadores/as, resolver as suas questões. Isto não quer dizer que os serviços de proximidade não sejam ne- cessários, antes pelo contrário, mas num determinado momento deverão deixar de ser o único canal para resolução de questões.

O ideal, num processo de empoderamento, é que as pessoas consigam assu- mir a gestão das suas vidas e aceder a recursos sem depender de terceiros.

viii. Devemos insistir e investir na saída destas pessoas das zonas residen- ciais/bairros onde vivem para lhes dar a conhecer novas dinâmicas, realidades, por forma a combater visões cristalizadas de uma terra de origem que já deixa- ram há muitos anos, e que entretanto acabou por evoluir, mas que na mente de quem partiu permanece igual ao dia da partida.

ix. O empoderamento pode passar por uma participação mais ativa das mu- lheres na vida associativa/esfera pública. Para que esta seja possível, é funda- mental o envolvimento dos homens pois, muitas vezes, essa mesma participação depende da sua autorização.

x. Falar de capacitação de lideranças femininas implica empoderar para ir para fora das fronteiras das suas comunidades; significa também fazer com que sejam reconhecidas como interlocutoras de profissionais das mais diversas áreas: da saúde, da educação, da área social, da segurança, etc.

Traduz uma capacitação que vai muito além do saber o que é a MGF (causas, tipologia, consequências) e as suas implicações para a saúde. Por exemplo, no que concerne à saúde, é importante saber também como se processa o acesso à saúde, quem são os/as interlocutores/as em cada nível, entre outras informações próprias da Saúde. É fundamental que saibam quais são e como se exercem os direitos pelos quais se batem.

xi. Uma última nota para referir a importância do empoderamento de vários tipos de liderança: religiosa, comunitária e política.

Ao nível das lideranças políticas, temos que nos congratular por Portugal ser um país onde a MGF tem estado na agenda política, tanto a nível central como local.

Refira-se, a título de mero exemplo mas que não esgota o importante pa- pel que tem sido feito nos últimos anos por decisores e decisoras políticos/as, a realização do evento paralelo ao Fórum de Alto Nível sobre Mutilação Genital Feminina, sob o lema “Let’s be the generation that eliminates FGM once and for all”,

coorganizada por Portugal sob a chancela da Secretaria de Estado para a Cidada- nia e Igualdade e o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), entre outros organismos.

A nível da Administração Local, pelo apoio dado a projetos/intervenções nesta área, são dignas de referência as câmaras municipais da Amadora, Sintra e Cascais.

E por fim, mas não menos importante, não podemos esquecer nem deixar esquecer os importantes desafios, mas também resultados, que são pedidos a Portugal e a todos os países com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, no que concerne à igualdade de género: a transversalidade ao longo dos 17 ODS

11.

Tratar e Cuidar de Meninas e Mulheres com MGF.