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Situação da prática a nível nacional

A Guiné-Bissau assinou e ratificou a maioria das convenções e tratados que protegem e promovem os direitos humanos, com maior destaque para a CEDAW, Protocolo de Maputo, CDC, CABEC, Carta Africana da Juventude, entre outros. No entanto, uma norma social profundamente enraizada na discriminação con- tra meninas e mulheres, como a E/MGF, está ligada a outras normas e práticas prejudiciais, sendo perpetrada por famílias que, embora não tenham uma inten- ção primária de violência, acabam por realizar algo que é, de facto, violento na sua natureza.

Na Guiné-Bissau a E/MGF atinge 45,5% das mulheres entre os 15 e os 49 anos, podendo atingir os 96% nas zonas de maior prevalência (Gabu). Trinta por cento das crianças entre 0 e 14 anos são submetidas à prática, o que varia confor- me a instrução da mãe. A prática é registada um pouco por todo o país devido à convivência partilhada entre os diferentes grupos que compõem o território. Contudo, os valores mais altos são registados maioritariamente nas zonas habi- tadas pelos grupos islamizados, ou seja, a zona leste, concretamente as regiões de Bafatá e Gabu, que são habitadas maioritariamente pelos grupos Fula, Man- dinga, Padjadinca, Djacanca e Saraculé, e a zona norte, concretamente a região de Oio, habitada também pelos Oinca e Mansonca Garandi (grupos animistas convertidos ao islamismo). Na região de Cacheu (norte) os grupos Cassanga e Balanta Mane (grupos animistas que se converteram ao islamismo) são também grupos praticantes; e na zona sul, concretamente nas regiões de Quínara e Tom- bali, a prática realiza-se nos grupos Beafada, Fula, Tanda, Susso e Nalu. O Setor Autónomo de Bissau tem uma grande mistura de grupos étnicos, mas os grupos que aí praticam a E/MGF são hoje em maior número.

O tipo de prática mais prevalecente no país é o tipo II, embora também se possa encontrar o tipo III sobretudo junto de grupos fula e nas zonas que fazem fronteira com a Guiné-Conacri. A idade da prática varia também tendo em conta os grupos étnicos: nos Fula a tendência é para crianças mais novas, entre os 3 e os 5 anos, e nos outros grupos praticantes a idade varia entre a realização do corte e o ritual de passagem para à fase adulta. Tal deve-se ao facto de os Mandinga e os Beafada realizarem a prática em dois momentos: o primeiro momento é o do cor- te e o segundo momento é o da passagem à fase adulta, com o ritual de aprendi- zagem e da educação para a jovem mulher (fanadu garandi). Nesta segunda fase, as jovens raparigas que ainda não foram submetidas ao corte podem também participar, pois serão excisadas neste momento.

A prática de E/MGF na Guiné-Bissau é uma prática de grupos islamizados, pois ela é tida como uma recomendação corânica. Mulheres de grupos não is-

lamizados que se casam com homens de grupos islamizados são obrigadas a submeterem-se à prática; por isso, podem encontrar-se mulheres de grupos tra- dicionalmente não praticantes que acabaram por ser submetidas à prática.

Uma vez que a E/MGF é uma prática acompanhada por outros rituais e festi- vidades, a convivência entre comunidades praticantes e não praticantes fez com que, no passado, crianças de comunidades não praticantes acabassem por ser submetidas à prática. Porém, a Guiné-Bissau possui desde 2011 uma lei que cri- minaliza a E/MGF. Mas apesar da existência desta lei, a prática é realizada às escondidas. Aliás, existem casos de violação da lei que já conheceram sentenças até três anos de prisão e cujos prevaricadores se encontram nas prisões do país a cumprir a pena.

Pode dizer-se hoje em dia que a existência da lei está a exercer uma grande influência na tendência para o abandono da prática nas gerações futuras. Apesar de ser uma prática feita pelas próprias mulheres, 36% das mulheres, segundo o relatório MICS 2010, queriam que a mesma continuasse. Segundo o mesmo in- quérito de 2014, somente 13% das mulheres queriam a continuidade da mesma. Na Guiné-Bissau, diferentemente de alguns países da África Ocidental, não exis- te a medicalização da prática.

Logo após a independência houve várias tentativas de sensibilização das populações para os direitos das mulheres e, entre eles, para as práticas nefastas à saúde da mulher e da criança. Em novembro de 1996 foi criado o Comité Na- cional de Luta contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, bem como os Comités Regionais, que integram ONGs vocacionadas e algumas insti- tuições públicas com atividades relacionadas com a proteção e promoção dos direitos da criança e da mulher. Foram realizadas várias ações de informação e sensibilização das comunidades, muito particularmente junto das comunidades praticantes, com vista a diminuir a E/MGF no país. Essas ações assentaram funda- mentalmente numa abordagem focada nos direitos humanos.

Realizaram-se ações de formação dos líderes tradicionais e religiosos, dos/ as técnicos/as das organizações da sociedade civil, de mulheres líderes de opi- nião nas comunidades e das próprias fanatecas, assim como dos/as técnicos/as de saúde pública e dos/as agentes de comunicação social. As mesmas ações de informação e de sensibilização também são feitas nas escolas das comunidades beneficiárias das intervenções.

Após a criminalização em 2011, no ano 2012 iniciou-se um programa piloto sobre a introdução dos aspetos ligados à prática no currículo escolar. Em 2013, mais de 200 imãs e professores corânicos produziram uma fatwa dizendo não à prática de E/MGF em nome do Islão; nesse mesmo ano iniciaram-se também vá-

rias formações a técnicos e agentes de saúde sobre as consequências da E/MGF, o que fez com que se introduzisse questões relacionadas com o combate à prá- tica nos pacotes das consultas de planeamento familiar. Foram formados mé- dicos/as para a reparação das sequelas provenientes desta prática, assim como foram construídos blocos operatórios adaptados a esse fim nas regiões de Bafatá e Gabu, que são zonas de maior prevalência.

Em 2014 iniciaram-se, em escolas do ensino secundário e superior, palestras destinadas a aumentar o conhecimento da camada juvenil em relação à E/MGF. Foram formados/as cerca de 50 juízes e magistrados/as do Ministério Público sobre as consequências da E/MGF e sobre a lei que interdita e criminaliza a prá- tica no país. Apesar da colaboração das autoridades judiciais, sobretudo da PJ, a implementação da lei continua a ser muito passiva devido à falta de tribunais em várias zonas do país. Apesar de tudo isto, a prática continua a realizar-se de for- ma clandestina e com diferentes estratégias para a sua realização: atravessando fronteiras ou aplicando-a às bebés, por vezes recém-nascidas.

O programa conjunto FNUAP-UNICEF tem suportado a maior parte das ações a nível nacional para o combate à prática. Até 2016, a Plan Guiné-Bissau, através da União Europeia, financiou um projeto de intervenção nas regiões de Bafatá e Gabu. A Swissaid e demais organizações da sociedade civil têm intervin- do neste domínio e existe um projeto entre Portugal e a Guiné-Bissau, intitulado Projeto de Capacitação para a Igualdade e Empoderamento de Agentes-chave das Comunidades para o Fim da E/MGF, dos Casamentos Infantis e Forçados, que atua na promoção da educação, saúde e direitos no quadro da Agenda 2030 e no âmbito de outros compromissos assumidos em matéria de desenvolvimento e de direitos humanos. Este projeto está a ser implementado na parte guineense pelo Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas e, na parte portuguesa, pela ONGD P&D Factor; possui uma forte implicação dos/as técnicos/as de saúde, dos líderes religiosos islâmicos, de mulheres e jovens líderes das comunidades beneficiárias da intervenção. Cada vez mais os líderes religiosos islâmicos se inte- ressam pela temática e utilizam-na nos aconselhamentos que dão nas mesquitas antes das orações das sextas-feiras.