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Universidade de Friburgo, Suíça

Caixa 1: Inquérito e métodos

O processo de reconstrução envolve várias dimensões (biológicas, emo- cionais, morais, psicológicas, sexuais), nas quais as mulheres investem em di- ferentes estágios dos seus cursos de vida e com diferentes significados. Em particular, tive a oportunidade de acompanhar durante quase dois anos uma equipa médica num hospital que oferece a cirurgia de reconstrução do clítoris. Durante este processo médico, ao qual chamo de “caminho para a reparação” (Villani, 2009), os/as profissionais de saúde desempenham um papel multidis- ciplinar e ético. Investiguei em profundidade os significados atribuídos pelas mulheres ao termo “reparação”, que constitui a génese de qualquer pedido de cuidados de saúde. A análise do item “reparação” baseia-se em duas pes- quisas qualitativas realizadas em França (de 2007 a 2009) e na Suíça (2013- 2014). No total foram entrevistadas 40 mulheres: 8 mulheres imigrantes de origem subsariana que vivem na Suíça com C/MGF de Tipo III (infibulação) e 32 mulheres de primeira e segunda geração que vivem em França com C/MGF

de Tipo II (excisão), que foram submetidas ou pediram uma reconstrução do clítoris num hospital público. Todas as mulheres foram interrogadas sobre o significado que dão ao termo “reparação”, considerando a sua saúde e a sua vida sexual.

O grupo de mulheres com infibulação e o grupo de mulheres com excisão diferem nas suas características sociodemográficas e no contexto do C/MGF. As doenças e o tipo de dor relatados também são interpretados ou explicados de forma diferente. Este artigo não se concentra neste aspeto, mas sim nas necessidades das mulheres de mudar as suas condições de saúde, o que todas as mulheres declararam na entrevista. Uma vez interrogadas sobre as possi- bilidades de mudar algo na sua vida que esteja ligado à sua autoperceção da saúde, todas as mulheres afirmam que melhorariam o seu estado de saúde, em particular no que diz respeito à saúde sexual. Incentivadas a definir o que pretendiam mudar, bem como para definir o termo “reparação” no âmbito da saúde e da sua vida sexual, muitas dimensões foram referidas. As abordagens reparativas incluem uma série de dimensões, que não são apenas físicas, mas também psicológicas, sociais e morais.

O significado mais evidente e mais citado de “reparação” é a reconstrução física através de técnica cirúrgica. Este pedido decorre dos sentimentos das mu- lheres sobre “terem sofrido danos” e do sentimento de que algo do seu corpo “se perdeu”. As mulheres relatam a sensação de se sentirem “limitadas” nas suas atividades, especialmente quando têm de ficar nuas (em balneários de ginásios, piscinas...) ou nos seus encontros íntimos com um parceiro. O pedido de recons- trução exprime-se como o desejo de reconstruir o que foi cortado. Em particular, as mulheres com tipo II (excisão) do contexto francês expressam a necessidade de reconstruir o seu clítoris por meio destas palavras: “Eu quero ser uma mulher in- teira” ou “uma mulher completa” ou “eu não me sinto normal e quero ser como todas as outras mulheres”.

O segundo significado está ligado ao sentimento de “falta”, que se torna mais complexo quando as mulheres relatam a ideia de perda e de roubo. De acordo com os relatos, a prática de C/MGF é quase sempre realizada em meninas muito novas, na maioria antes dos 5 anos, e um grande número de mulheres não tem memória desse momento. Essas mulheres dizem que “descobriram” o seu

C/MGF mais tarde, durante a idade adulta ou durante as suas primeiras experiên- cias sexuais. Expressam claramente a sensação de que “algo lhes foi tirado sem permissão” ou que algo foi “roubado” do seu corpo sem o seu consentimento. Sublinham o sentimento de perda de integridade corporal, que é acompanhado pelo sentimento de terem sido sujeitas a uma experiência violenta e a um abuso. O sentimento de que algo foi “perdido” ou “roubado” alimenta o sentimento de merecer justiça, o que se torna, para algumas delas, uma reivindicação explícita. Este significado sublinha a dimensão moral da reparação que é, por outro lado, muitas vezes evocada durante as consultas – tanto por mulheres como por médi- cos/as, como surge nos relatos – com o termo de “reparação simbólica”. Às vezes, as mulheres dizem que o que conta para elas é “ter seu clítoris de volta, mesmo que não funcione”, como algumas afirmam.

Tendo em consideração algumas citações, tais como “Eu quero o meu clítoris de volta” ou “Eu quero recuperar o meu clítoris de novo” ou “Eu quero que me devolvam o que me roubaram/tiraram sem me perguntar”, este tipo de discurso permite-nos identificar uma reivindicação política sobre a integridade do corpo e o direito de cada um/uma a controlá-lo e dirigi-lo segundo as suas próprias escolhas. Além disso, podemos ler essa reivindicação específica pela perspetiva das mulheres que pedem o reconhecimento do direito de dispor e controlar o seu próprio corpo, a sua própria sexualidade e as suas escolhas pessoais. Esta passagem é muito importante porque marca a integração dos direitos sexuais e da socialização na cultura da saúde sexual.

O terceiro significado da reparação é relativo à dimensão sexual. Especial- mente as mulheres excisadas no contexto francês expressam a sua insatisfação, e algumas delas definem-se como sendo “infelizes” com as suas experiências se- xuais. A maioria especifica que estão numa relação com um parceiro masculino europeu que, na maioria das vezes, não conhece a prática do C/MGF. Poucas mu- lheres pedem “mais prazer” ou “prazeres diferentes”, cuja falta é atribuída aos danos causados no clítoris.

A última dimensão diz respeito ao género. No seu significado de “repara- ção”, algumas mulheres sublinham que os corpos que elas têm não correspon- dem ao corpo que elas querem. Isto é particularmente relevante para as mulheres de segunda geração, nascidas em, ou chegadas a países europeus quando eram muito novas, e que cresceram fora do contexto africano. Este tipo de queixa tem sido particularmente importante entre as mulheres do contexto francês, uma vez que as mulheres infibuladas na Suíça eram todas imigrantes de primeira geração. Em particular, as mulheres da segunda geração falam sobre uma má imagem cor- poral e queixam-se de um sofrimento em relação aos seus danos genitais. Algu- mas usam o termo “anormalidade” e afirmam ver-se como “diferentes de outras mulheres”.

Os significados que as mulheres dão à “reparação” são multidimensionais. A gestão do C/MGF requer serviços de saúde diferenciados, polivalentes e multi- disciplinares. A pluralidade de dimensões envolvidas no processo de reparação está ligada à apropriação da saúde sexual e dos direitos sexuais. Nos seus pedi- dos de qualquer tipo de cuidados de saúde, as mulheres com C/MGF devem ser ouvidas sobre as suas próprias narrativas e através das suas próprias palavras. Como outras pesquisas mostraram para o processo de nascimento dos direitos humanos (Lokugamage & Pathberiya, 2017), o poder da narrativa serve para re- conectar partes discrepantes e posições divergentes, especialmente no contexto de famílias transnacionais.

Pensar os serviços de saúde específicos em termos de abordagem reparativa é o primeiro passo para desenvolver uma discussão com mulheres com C/MGF. As abordagens reparativas devem ser multidisciplinares e devem apoiar o acon- selhamento e a existência de lugares para a partilha de experiências. Os serviços de saúde devem levar em conta as palavras e as narrativas das mulheres, bem como partir da definição que as próprias mulheres dão ao problema, em vez de o procurarem definir sem elas. Finalmente, as narrativas são um aspeto importante do processo de justiça restaurativa; para habilitar os direitos sexuais, as mulheres devem ser apoiadas na definição de novas fronteiras entre elas próprias e as nor- mas sociais, especialmente quando estas últimas afetam a sua vida.

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