• Nenhum resultado encontrado

A fala dos sujeitos e o currículo escrito do curso de Pedagogia: incongruências na

5.4 Formação acadêmica e currículo

5.4.1 A fala dos sujeitos e o currículo escrito do curso de Pedagogia: incongruências na

A leitura do curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências e Letras (FCLAr), campus de Araraquara, referente à Reestruturação Curricular, processo 342/06/89 de 2002, nos indicou, em uma primeira análise, que os temas sexualidade e relações de gênero não são conteúdos trabalhados de maneira direta na formação do (a) pedagogo (a) desta instituição, uma vez que nos tópicos objetivos, conteúdo programático e ementa não encontramos nada referente à aprendizagem destas temáticas.

No entanto, na análise da bibliografia básica de algumas disciplinas constatamos a existência de alguns textos e livros (em anexo) que podem gerar discussões a respeito do trabalho de sexualidade e relações de gênero em sala de aula, o que nos leva a perceber que

estes temas dependem da discussão de outros temas, como exemplo, família, criança e Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para serem abordados durante o curso.

Nas falas que se seguem, observamos que em alguns momentos sexualidade e relações de gênero, mesmo que de maneira superficial, apareceram no curso de formação de professores:

[...] foi discutido muito brevemente né, sobre o que se trata o PCN de Orientação Sexual, somente, não como trabalhar com isso em sala de aula. Foi só descrito o que tem no PCN, é, mas não como deve ser trabalhado, como a gente pode trabalhar com crianças de educação infantil, de 1ª à 4ª série [...] Bom, com relação às relações de gênero, a única discussão que a gente tem é sobre nossa profissão né, a distinção entre professores e professoras né, a relação, questão salarial, somente isso, nada mais, só dentro da nossa profissão mesmo (Luísa).

[...] há poucos dias, na aula do professor (nome), comentando de alguns filmes que daria para trabalhar com a questão da sexualidade. Mas, ele deu alguns nomes, mas não disse como trabalhar, como passar, isso seria para adolescente, e eu trabalho com crianças, então seria para adolescentes e não crianças (Ana).

A gente tá tendo agora, ainda assim muito superficial, porque cada grupo vai fazer sobre um, um tema, então a gente vai ver só o que o grupo é entendeu daquela, daquela parte né do PCN de sexualidade. A gente vai ver a visão do grupo assim, entendeu? Que pode ser superficial (Júlia).

Freud, a gente estudou Freud com o (nome do professor) e ele falava muito que tudo, tudo para o Freud era sexualidade, tudo. Então, eu lembro é que nessa matéria a gente estudou bastante sexualidade. Eu lembro até que a gente estudou os contos de fadas, é a gente analisou contos de fadas de forma erótica. Ele (o professor do curso) fala assim “_Como que é cada personagem aqui, falando de forma erótica?” Então, eu lembro que a gente tinha feito uma análise desses personagens, acho que foi uma prova, um trabalho, não sei, coisa assim. Então, nessa disciplina a gente estudou sexualidade (Mariana).

[...] acho assim, de tudo o que a gente viu de filosofia, sociologia abriu muito os nossos conceitos em relação à sociedade, à cultura, a relações sociais né. E faz com que a gente pense nas relações entre as pessoas, entre homem e mulher, relações familiares, entre preconceitos. E acho que faz um pouco com que a pessoa pense nisso, em que formação ela quer dar para seus alunos e buscar, mas acho que indiretamente. Assim, eu acho que as disciplinas assim no geral ajudaram isso indiretamente, mas não diretamente (Mônica).

Freud que a gente vê também né. Na Psicologia IV a gente vê muito Freud. Inclusive, agora a gente tá tendo algumas aulas com Orientação Educacional, que também têm algumas questões que trabalha com tabus, incesto. Algumas coisas você, você vai tentando né e vai tentando elaborar ali alguma coisa, mas é um pouco vago, é um pouco vag. (Carmem).

[...] eu acho que, eu me lembro de uma palestra só, não lembro nem quem foi que deu, nem o nome da palestra, mas eu lembro de uma só que teve, mas também superficialmente assim [...] (Michele).

A palavra currículo, como descrevemos anteriormente, refere-se a um documento que organiza e seleciona os conhecimentos que devem ser apresentados aos indivíduos em sua fase de escolarização. No entanto, existem várias maneiras de se olhar para o conteúdo deste documento. Desta forma, na utilização da perspectiva teórica das teorias pós-críticas14 sobre o currículo, constatamos uma estreita ligação entre a maneira como os temas de sexualidade e relações de gênero aparecem no currículo escrito do curso de Pedagogia da FCLAr com a fala das professoras entrevistadas.

Pela perspectiva das teorias pós-críticas, o currículo não é um campo neutro de conhecimentos justamente porque é repleto de intencionalidade e igualmente impregnado de ideologias e relações de poder (MOREIRA; SILVA, 1994). Deste modo,

[...] o currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso significa que ele é colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua historia, de sua produção contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado de relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares (MOREIRA; SILVA 1994, p. 7-8).

Conforme explica Tomaz Tadeu da Silva (2007), o currículo é uma construção social, que estando emersa em uma disputa de poder privilegia as concepções e modos de ação dos grupos que detêm este poder. Desta forma, a aquisição de conhecimentos, não só aqueles relacionados aos conteúdos escolares oficiais, mas também às aprendizagens sobre sexualidade, relações de gênero, raça, etnia, nacionalidade etc, que recebemos na escola, fazem parte de um constante jogo de poder. Portanto, é necessário “[...] aprendermos que a pergunta importante não é ‘quais conhecimentos são válidos’, mas sim ‘quais conhecimentos são considerados válidos? ’” (SILVA, 2007, p. 148).

Desta forma, podemos fazer um questionamento entre o que se encontra no currículo escrito e a fala das alunas entrevistadas do curso de Pedagogia da FCLAr. Ou seja, se verificamos na bibliografia básica a leitura de textos, livros e documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), por que essas professoras continuam afirmando superficialidade e até mesmo o não trabalho destes temas em seu curso de formação?

14 Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2007), fazem parte do conjunto das teorias pós-críticas: a teoria

Essa incongruência presente entre o currículo escrito e a fala da professoras pode ser encontrada nestes discursos:

É, aqui na universidade eu não tive nenhuma disciplina que me orientasse, é nenhum material, nenhum livro, nenhuma indicação que me orientasse sobre isso. Somente o PCN, mas que eu acho que é vago (Luísa).

A gente não teve nenhuma disciplina, pelo menos obrigatória, sobre isso. E eu não me lembro de ter tido alguma optativa, que a gente pudesse escolher sobre esse assunto. O curso mesmo, nem teórico a gente viu nada, não vi nada, não estudei nada sobre isso (Ana).

Acho que não porque como eu te falei até hoje a gente nunca teve um estudo sobre isso, a gente falou muito pouco sobre orientação ou quase nada. Às vezes, até eu posso, ser uma falha minha até, mas não assim que eu me lembre, que a gente teve conhecimento, nunca tive assim (Júlia). [...] eu acho que teria ter mais disciplinas. Eu não me lembro de mais nenhuma que a gente tenha trabalhado sexualidade [...] (Mariana).

Eu acho, acho que faltam sim algumas disciplinas do curso para lidar com essas questões de, de como introduzir isso (sexualidade) na sala de aula (Mônica).

O pouco de sexualidade que a gente viu foi em Psicologia da Educação, nas fases de desenvolvimento da criança. Depois nada mais disso (Carmem).

Não, nunca tive nenhuma aula sobre os PCN, sobre orientação sexual, ou uma aula de como trabalhar sexualidade com as crianças ou algum texto que fale sobre isso ou algum professor que tenha preparado esse tipo de aula, não, não teve. Se você não fosse do grupo que pegou nos PCN, não ia ter né (Michele).

A incongruência entre currículo escrito e discurso das professoras pode revelar, de certa forma, a presença de um currículo oculto, uma vez que há uma intenção oculta nesta relação, ou seja, o que fica latente é a idéia de que trabalhar com sexualidade e relações de gênero na escola, apesar de importante, não é uma prioridade na formação de um (a) cidadão (ã). Essa afirmação pode ser observada pelo fato destes temas estarem presentes no currículo, mas serem pouco lembrados pelas alunas, o que nos leva à hipótese de que são pouco enfatizados durante o curso.

Esta idéia pode ser mais bem entendida com a conceitualização de Silva (2007, p. 78- 79):

O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explicito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes [...] Para a perspectiva crítica, o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às

estruturas e às pautas de funcionamento, consideradas injustas e antidemocráticas e, portanto, indesejáveis, da sociedade capitalista.

Neste contexto, a pouca ênfase nos temas de sexualidade e relações de gênero no currículo do curso de Pedagogia da FCLAr ensina implicitamente que esses temas são secundários na aprendizagem dos (as) educandos (as).

Além de serem tratados como temas secundários, sexualidade e relações de gênero também são concebidos como temas opcionais à formação do (a) professor (a). Esta idéia pode ser justificada pelo discurso de Michele, já que para esta aluna o aprendizado destas temáticas deve ficar a critério de escolha do (a) aluno (a) durante sua formação. Assim, disciplinas referentes à sexualidade e relações de gênero devem fazer parte do rol de disciplinas optativas do curso de Pedagogia:

Ah, eu acho que não deveria ter uma matéria específica para isso, de um semestre. Eu acho que têm muitas outras questões, mas também não sei em qual matéria se encaixaria. Mas, eu acho que deveria ser abordado em algumas aulas, como por exemplo, os professores partirem desse tema e trazerem textos, coisas assim, deveria partir sim [...] Eu acho que teve tantas outras matérias, que a gente vê pelo título que era uma coisa tão boa, que ia ser tão assim e não era nada daquilo. Eu acho que deveria se investir mais nessas matérias, em matérias an, não que sejam mais importantes porque isso também é importante (sexualidade), mas algumas matérias que não, que não são trabalhadas de uma forma boa, em geral em seu desenvolvimento, ou então em optativas. Devia ter optativas nessa área (sexualidade), ficaria melhor né, iria procurar realmente quem tivesse interesse (Michele)

A universidade também corrobora uma intenção oculta referente a essas temáticas. O desconhecimento e a falta de interesse por parte destas alunas quanto ao estudo da sexualidade e das relações de gênero em grupos de estudos, como também a escassa participação em eventos sobre esses temas (congressos, simpósios, mesas redondas) proporcionados pela FCLAr nos faz pensar que se há a existência de tais núcleos, como exemplo, o Núcleo de Estudos da Sexualidade (NUSEX), e de atividades voltadas para estes temas, por que a procura por estes, no que tange à busca de informações e materiais é quase nula?

Pela fala das professoras constatamos que somente Carmem e Mônica conhecem grupos de estudos voltados para sexualidade e relações de gênero, sendo estes o NUSEX, do Departamento de Psicologia da Educação, e o Grupo de Pesquisa Gênero e Cidadania, do Departamento de Sociologia. No entanto, apesar de saberem da existência destes grupos de estudos, essas alunas enfatizaram que nunca os procuraram. Já Mariana diz ter participado, a

alguns anos, de um evento que ocorreu na FCLAr sobre sexualidade, sendo este o I Ciclo de Conferências em Educação Sexual, realizado em 2005 pelo NUSEX.

Outro fato que chama atenção nos discursos destas professoras é a preocupação com a prática, ou melhor, como proceder pedagogicamente diante destes temas. Em outras palavras, por mais que não se sintam motivadas a buscar conhecimentos sobre sexualidade e relações de gênero, essas professoras sabem que estes temas se manifestam em suas salas de aula e para tanto é necessário conhecê-los e principalmente saber como desenvolvê-los com crianças e adolescentes.

De toda forma, o que podemos notar é uma falha presente na formação destas alunas, já que querendo se depararam com situações de manifestação de sexualidade e relações de gênero na instituição escolar, já que “A sexualidade não é algo que possa ser ligado ou desligado, do qual alguém possa se despir. Ela está na escola porque faz parte do sujeito” (LOURO, 2003, p. 81).

No entanto, estes temas pouco são enfatizados com essas alunas durante sua formação acadêmica, o que culmina em defasagens quanto ao trabalho de sexualidade e relações de gênero em suas salas de aula. Deste modo, por mais que reclamem da falta de aplicabilidade do que aprendem no curso Pedagogia, a situação se torna ainda mais grave quando o assunto é referente a estes dois temas, já que a aprendizagem teórica destes e sua aplicação na realidade tornam-se ainda mais complexas, afinal como agir e se posicionar diante de temas em que não há conhecimentos prévios?

5.4.2 A busca de embasamentos e a necessidade de disciplinas sobre sexualidade e relações de