• Nenhum resultado encontrado

4 GESTÃO PEDAGÓGICA DAS COOPERAÇÕES INTERNACIONAIS:

4.3 SOBREPOSIÇÃO DE CULTURAS NA GESTÃO DO CONHECIMENTO E

4.3.1 Atritos culturais que inibem o compartilhamento do conhecimento em

4.3.1.5 Falta de capacidade de absorção pelos recipientes

Em sua grande maioria, os processos de construção do conhecimento apresentam as figuras, simbolicamente bem marcadas, do educador e do educando. No caso de Timor, nas relações que se estabelecem entre os seus servidores públicos, os enviados da ONU e de seus parceiros para o processo de “construção de capacidades”, os estrangeiros tratam logo de assumir um ar "professoral" como transmissores do conhecimento pré-fabricado (GHARCIA 2006). Como efeito, logo imputa-se ao agente público timorense – os “alunos” deste teatro de operações – as causas de todas as mazelas do capacity building naquele país.

Ainda que estes consultores estrangeiros não tenham intencionalidade racional, domínio conceitual e político para esta compreensão, parecem estar, claramente, atuando como instrumentos de seus contratantes e a serviço de grandes interesses, que passam ao largo da qualidade da gestão pública do Timor e do bem estar do povo timorense.

É, pois, notória nesta relação entre estrangeiros e locais a perspectiva

empirista de educação e construção do conhecimento, como exorta Becker (2001),

está no objeto e é algo necessariamente externo ao sujeito, este é tratado como mero coadjuvante. Um recipiente vazio que deve ser preenchido, ao bel prazer dos que se propõem a ensinar, transmitindo luz e conhecimento aos que, pela sua própria condição de “alunos” são, natural e potencialmente, despreparados (FREIRE, 1996). Os “professores” estrangeiros, é lógico, não estariam então, em Timor, para aprender o que quer que seja.

Não se quer aqui negar a dificuldade encontrada, pela ausência de lastros cognitivos e afetivos para algumas aprendizagens por parte dos timorenses, para que sejam introduzidas inovações com reflexos em seu trabalho, no exíguo tempo do qual se dispõe e no grande volume necessário, donde se percebe obstáculos psicopedagógicos à aprendizagem (VISCA, 1991). Veja-se o que diz Neves (2007, p. 111) a respeito desta questão e consequente colapso na gestão pública do país:

A complexidade dos problemas é resultado de séculos de herança colonial e de décadas de ocupação que influenciaram nossa mentalidade e comportamento. Durante a ocupação indonésia, muitos timorenses eram servidores públicos, mas suas posições não eram de tomadores de decisão porque a centralização do poder estava em Jakarta. Durante a ocupação era considerado patriótico deixar de fazer o seu trabalho, pegar o dinheiro da Indonésia e usá-lo em apoio à resistência. O sistema indonésio era dirigido pela corrupção, e a burocracia portuguesa é mundialmente famosa por sua ineficiência. Não eram bons modelos a se seguir. Isso piorou com a violência de 1999, quando mais de 75% da infraestrutura pública e mais de sete mil servidores fugiram para a Indonésia.

Tão equivocado quanto ignorar esta carência nos timorenses é desconsiderar as circunstâncias histórico-sociais que as motivaram (Vide Figura 7). Mais ainda, faz- se necessário compreender que, se por um lado, falta aos timorenses “capacidade de absorção”, no tempo, espaço e forma que os conteúdos se lhes apresentam, por outro, falta, mais ainda, a sensibilidade dos consultores internacionais e de seus organismos patrocinadores de compreenderem o seu contexto, percebendo que nem todo conteúdo, modelo de gestão ou costume, passa a ser relevante para o outro, pelo simples fato de ser importante para estes, conforme suas referências pessoais e culturais.

Em suma, percebe-se que, não obstante a “terceirização do fracasso”, através da qual os organismos internacionais insistiram em imputar ao Timor e aos

timorenses o ônus do esfacelamento dos esforços da cooperação e das estruturas de governo no país, os fracassos em seu seio, apresentam origens e desdobramentos, extremamente influenciados pela presença estrangeira, tendo como locus o seu esforço de “capacitação” dos servidores públicos timorenses e moldagem das bases do estado sobre lastro fragilíssimo. (SANTOS, Rodrigo, 2010)

A UNOTIL fora precedida por várias missões da ONU, em Timor-Leste, mas representou, seguramente, como sustentam e comprovam autores como NEVES (2007); Silva e Simeão (2007) e SANTOS (2012 e 2013), institucionalização de um

modus fasciendi de grande ingerência internacional nas estruturas do estado

timorense, que permeou o governo local de uma lógica de Gestão do Conhecimento, incompatível com os ditames da atual sociedade da aprendizagem. Estas relações de conhecimento, cultura e poder, no campo da AID, em Timor, desvelam uma aparente inobservância do histórico e identidade local, ao tentarem, os cooperantes ocidentais, implementar uma “lógica ideal” de gestão pública e governamental, moldando as estruturas de estado às referências organizacionais que lhes são conhecidas e aceitas.

Esta aparente inobservância das referências, identidade e cultura dos sujeitos locais, não tem permitido que a ONU e seus parceiros, ao redor do mundo, percebam que as comunidades suboportunizadas e alvo da “ajuda” internacional, longe de ser uma folha em branco desprovida de memória e personalidade, guardam em si fortes marcas de seus elementos constitutivos, que precisam ser respeitados, a partir de um diálogo horizontal entre os saberes.

Nota-se, pois, que o esforço em construir e compartilhar o conhecimento no campo da AID é pautado muito mais pelos objetivos estratégicos internacionais do que pelas idiossincrasias das instituições locais. Há aí, como sustentam Silva (2004 e 2008) e Milando (2005), entre outros, imenso descompasso entre a retórica dos seminários internacionais de “doadores”, o discurso oficial dos consultores internacionais e a práxis epistemológica no campo.

Ampliando-se o escopo da análise, constata-se que a práxis política de gestão da educação, enfronhada nos processos de ensino-aprendizagem, quer nas cooperações internacionais, nas escolas, empresas, famílias ou organizações sociais, mostra-se, em grande parte, incompatível com os ditames da atual sociedade da aprendizagem. Nota-se, pois, que o esforço em construir e

compartilhar o conhecimento é pautado muito mais pelas referências de quem se arvora a “transmitir”, do que pelas idiossincrasias das pessoas e instituições, destinatárias destes esforços.

Uma tese, a ser defendida num determinado campo, deve apresentar como “culminância”, não uma “conclusão” na acepção da palavra. Nesta altura, o que se espera é um lastro conceitual, baseado em desvelamentos e contestações que, a um só tempo, justifique os objetivos do esforço de pesquisa, fundamente seus caminhos e considere os traçados e limites de sua contribuição acadêmica/investigativa/laboral. (GIL, 2002; CHIZZOTTI, 2006; GAMBOA, 2008)

Assim, consideradas as categorias de análise do presente trabalho, têm-se todas elas convergindo para a última, que é precisamente a culminância da tese que aqui se defende, além de ponto fulcral deste trabalho.

Têm-se que há no seio das cooperações internacionais enorme perplexidade pelo descompasso entre sua concepção, suas ações e seus resultados, frutos, principalmente, da perspectiva de “desenvolvimento” do "humano como recurso", supressão dos saberes e sobreposição da cultura das “comunidades alvo” nunca vistas como protagonistas de sua autodeterminação e, por conseguinte, pouco empenhadas nos esforços das cooperações para o pretenso “desenvolvimento induzido” (Figura 7).

Boaventura de Souza Santos (2010, p. 57-58) exorta que “a credibilidade da construção cognitiva mede-se pelo tipo de intervenção no mundo que proporciona, ajuda ou impede”. Urge, pois, uma nova perspectiva, não meramente teórica, tampouco praticista, que conceba Política (Concepção, Visão e Valores) e Gestão (Desdobramento da Política, Avaliação Integral e Qualificação Continuada) no campo da AID e em cenários afins, onde existam indivíduos, grupos sociais e organizações, em interação com referências alheias e carecendo de oportunidades para o desenvolvimento real dos seus recursos, individual e coletivamente.

Gerir é mediar o desenvolvimento dos recursos "dos" humanos – saberes e competências biopsicossociais –, postos à disposição dos anseios individuais, em sintonia com objetivos organizacionais. Não se pode, pois, gerir coisas, finanças, materiais, etc.. Da mesma forma que não existem “gerentes de vendas”, apenas “gerentes de vendedores”, igualmente impensável é termos “gestão da educação”, apenas gestão dos “recursos” de educadores e educandos.

FIGURA 7 - Síntese das relações de conhecimento e poder em Timor Leste durante a UNOTIL

Porquanto, se promover “desenvolvimento humano” é potencializar seus recursos e, ainda, considerando-se que toda gestão é de “recursos humanos”, não há melhor descrição para educação, que a gestão pedagógica do desenvolvimento dos recursos humanos, numa perspectiva multirreferencial (BARBOSA, 1997), transdisciplinar (UNESCO, 2000) e complexa (MORIN, 2007), em confrontação ao modelo homogeneizante, disciplinar e positivista, que tem ocasionado o fracasso dos processos de aprendizagem e inovação, para pessoas, organizações e governos ao redor do mundo.

Ao se admitir pensar em alguma resposta para tal circunstância, esta certamente pode apontar para a premente necessidade do supraescrito, culminando-se em uma propositura que contemple, a partir de tudo até aqui tratado e de todos os desdobramentos possíveis, daqui por diante, alguns aspectos básicos.

[...] num processo de aprendizagem conduzido por uma ecologia dos saberes, é crucial a comparação entre o conhecimento que está a ser aprendido e o conhecimento eu neste processo é esquecido e desaprendido. A ignorância só é uma forma desqualificada de ser e de fazer quando o que se aprende vale mais do que se esquece. A utopia do interconhecimento é aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios. É esta a tecnologia de prudência que subjaz a ecologia dos saberes. Ela convida a uma reflexão mais profunda sobre a diferença entre ciência como conhecimento monopolista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes. [...] Na ecologia dos saberes, enquanto epistemologia pós abissal, a busca de credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico. Implica, simplesmente, a sua utilização contra-hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas [...] e, por outro lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes não-científicos. (SANTOS, 2010, p. 56-57)

Mas, o que potencializar?; como fazê-lo?; em que dimensões?; por quais caminhos?; respeitando-se que ciclos, fundamentos e premissas?

A guisa de aproximações, acerca do que se quer construir, mister se faz compreender que tratar separadamente Gestão, Educação e Desenvolvimento Humano é, além de redundante e conceitualmente equivocado, a raiz de uma série de vícios que implicam em processos educativos com pouquíssima efetividade e que não edificam os sujeitos. As experiências educacionais, que têm nas antinomias, entre estes três conceitos a raiz de muitas “mazelas pedagógicas”, conduz a

premente necessidade de se validar, como nova categoria científica, um conceito que possa, numa perspectiva convergente: (re) significá-los; integrá-los; corrigi-los; e transcendê-los.

5

ETNOGESTÃO:

UM

OUTRO

OLHAR

PARA