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4 GESTÃO PEDAGÓGICA DAS COOPERAÇÕES INTERNACIONAIS:

4.1 MODOS DE CONVERSÃO DO CONHECIMENTO

O presente estudo corrobora com as tessituras supra e, à luz da teoria da construção do conhecimento proposta por Nonaka e Takeuchi (1997, p. 67), cabe em sequência descortinar os quatro modos de sua conversão, considerando sua relação com o objeto de estudo e universo desta pesquisa. Estes autores entendem que “o conhecimento tácito e o conhecimento explícito não são entidades totalmente separadas, e sim mutuamente complementares”. Propõem, portanto, quatro modos básicos de conversão (Figura 3): socialização (do conhecimento tácito em conhecimento tácito); externalização (do conhecimento tácito em conhecimento explícito); combinação (do conhecimento explícito em conhecimento explícito) e internalização (do conhecimento explícito em conhecimento tácito).

FIGURA 3 - Quatro modos de conversão do Conhecimento

Fonte: Adaptado de NONAKA e TAKEUCHI (1997, p. 69).

A socialização é o processo de compartilhamento de experiências e, a partir daí, da criação do conhecimento tácito como modelos mentais ou habilidades técnicas compartilhadas. [...] O segredo para a aquisição do conhecimento tácito é a experiência. Sem alguma forma de experiência compartilhada, é extremamente difícil para uma pessoa projetar-se no processo de raciocínio de outro indivíduo. A mera transferência de informações muitas vezes fará pouco sentido se estiver desligada das emoções associadas e dos contextos específicos dos quais as experiências associadas são embutidas. (NONAKA e TAKEUCHI, 1997, p. 69)

O processo de intervenção da ONU em Timor é eivado da perspectiva do “mestre X aprendiz”, a partir do capacity building, no qual os consultores estrangeiros teriam a finalidade de atuar como “mentores” e orientadores do trabalho dos timorenses (contrapartes) investidos em postos considerados chave para uma administração pública em formação (ONU, 2005). Teoricamente, a experiência passada no dia a dia pode ser fonte significativa de construção do conhecimento tácito, porém, faz-se necessária a reflexão, ao longo deste trabalho, sobre a integralidade dos fatores de socialização, tais como a consideração do contexto dos sujeitos aprendentes e das emoções associadas a eles. Por exemplo, os advisors pautam claramente a sua atuação em Timor-Leste na correção de “deficiências e debilidades” da sua contraparte timorense. Assim, define “sozinho” e em consonância com os ditames e perspectivas da organização contratante, como irá lidar com estas deficiências, na maior parte das vezes, sem a participação do timorense em questão. (SILVA, 2004)

A externalização é um processo de articulação do conhecimento tácito em conceitos explícitos. É um processo de criação do conhecimento perfeito, na medida em que o conhecimento tácito se torna explícito, expresso na forma de metáforas, analogias, conceitos, hipóteses ou modelos. (NONAKA e TAKEUCHI, 1997, p. 71)

A relevância da externalização na construção do conhecimento organizacional, bem como sua premência para casos como o de Timor, ficam patentes em alguns relatos e constatações documentais, ao perceber-se que a burocracia timorense ressente-se, e muito, do conhecimento, identidade e padrões de sua cultura que lhes foram tirados durante os anos de colonialismo português e ocupação indonésia.

Vê-se indicativo de um enorme vazio de formulários, padrões, processos, produtos, enfim, uma ausência absoluta de aspectos tangíveis e mensuráveis do conhecimento externalizado e explícito na máquina pública timorense, não obstante um sem número de símbolos e signos da história de dominações e violência, concreta e simbólica, contra o povo timorense. (SILVA, 2004)

A combinação é um processo de sistematização de conceitos em um sistema de conhecimento. Esse modo de conversão do conhecimento envolve a combinação de conjuntos diferentes de

conhecimento explícito. Os indivíduos trocam e combinam conhecimentos através de meios como documentos, reuniões, conversas ao telefone e redes de comunicação computadorizadas. [...] A criação do conhecimento realizada através da educação e do treinamento formal nas escolas normalmente assume esta forma. (NONAKA e TAKEUCHI, 1997, p. 76)

Trata-se da mais tradicional modalidade de conversão e construção do conhecimento organizacional. É importante fonte de síncrese, análise e síntese do conteúdo a ser aprendido e praticado. Tome-se o universo da capacitação dos servidores timorenses pela ONU e organismos internacionais e suas idiossincrasias, nos quais a implementação dos trabalhos está condicionada à forma como o consultor internacional compreende as “carências e limitações” do servidor timorense e aos objetivos de qualificação pretendidos. Segundo Silva (2004), “os recursos mais utilizados eram cursos – designados de in-country training – on-job-

training, leitura de manuais etc.”.

João, que tem como responsabilidade o institutional building de uma importante agência do governo, diz que seu objetivo é ensinar os timorenses a tomar decisões. Procura fazê-lo burocratizando esse processo, expondo os porquês e os procedimentos adotados na avaliação de cada caso. Joana, por sua vez, procura desenvolver a capacidade de suas contrapartes sugerindo a leitura dos manuais elaborados por ela, alegando que esse é o único modo de comunicação que consegue estabelecer com suas contrapartes. Diana, por exemplo, realizava a construção institucional da UCDC auxiliando seu diretor e oficial de projeto na análise técnica e política de problemas com os quais a unidade lidava cotidianamente. Esse é um exemplo da metodologia designada de on-job-training no jargão da ONU. (SILVA, 2004, p. 194)

Não raro, gestores, consultores internacionais, chefes de linha etc., “terceirizam” para fatores externos, tais como barreiras culturais, nível intelectual dos aprendentes aquém do esperado, dificuldades linguísticas ou estruturais, os obstáculos inerentes a qualquer processo de combinação. Faz-se, pois, importante, para organismos e organizações que atuam em países multiculturais, incluir na sua agenda reflexões e análises acerca da gestão dos aspectos interculturais e sua relação com a construção do conhecimento. (RODRIGUES, CRAIDE e TUDE, 2007)

A internalização é o processo de incorporação do conhecimento explicito no conhecimento tácito. É intimamente relacionada ao “aprender fazendo”. Quando são internalizadas nas bases do conhecimento tácito dos indivíduos sob forma de modelos mentais ou

know-how técnico compartilhado, as experiências através da

socialização, externalização e combinação tornam-se ativos valiosos. (NONAKA e TAKEUCHI, 1997, p. 77)

Trata-se do fechamento do ciclo que os autores designam como a espiral do conhecimento organizacional (Figuras 4 e 5) que, pela sua própria natureza, não se encerra e se retroalimenta continuamente. Uma das características que marca a ação da internalização é o que Zarifian (2001) identifica como os pressupostos da “organização qualificante”, em que o respeito pelo que se sabe é precedido e procedido pela consciência coletiva quanto à necessidade de novas aprendizagens a partir do conhecimento já consolidado, de forma sistematizada. Durante o processo de desenvolvimento de capacidades no serviço público timorense, não raro, vê-se algumas queixas dos consultores internacionais quanto à dificuldade de internalização no processo de gestão do conhecimento. “[...] metade dos problemas existentes nesse processo é tributada a ausências dos funcionários ou do Estado da RDTL: os funcionários não têm experiência e formação adequadas para serem ensinados e o Estado não possui estrutura técnica e jurídica que permita a qualificação”. (SILVA, 2004, p. 194-195)

FIGURA 4 - Espiral do conhecimento organizacional

Fonte: Adaptado de NONAKA e TAKEUCHI (1997, p. 80).

Esta “falta de precondições à aprendizagem e evolução” dos servidores e do estado timorense encontraria arrimo conceitual em vários pressupostos teóricos. Aqui, traz-se o conceito de obstáculo epistêmico à aprendizagem, que, para Visca

(1991), deriva da estrutura de cognição operativa do aprendiz, ou seja, ninguém pode aprender algo que esteja além da sua estrutura cognitiva de momento, não sendo possível, por exemplo, ensinar as quatro operações matemáticas para quem ainda não conhece os números. A aceitação pura e simples deste aspecto, atribuindo ao Timor e aos timorenses tudo quanto é ônus neste particular, marcaria um pensamento antinômico, reificante e “de mão única”.

FIGURA 5 - Conteúdo do Conhecimento criado pelos quatro modos

Fonte: Adaptado de NONAKA e TAKEUCHI (1997, p. 81).

O próprio Visca (1991) provoca uma reflexão acerca do que batizou de obstáculo epistemológico à aprendizagem que diz respeito justamente a dificuldade que o sujeito aprendiz pode apresentar ao interagir com culturas diferentes para gerir sua própria aprendizagem, considerando aspectos de diversidade e interculturalidade, o que se aplicaria, em princípio, com muito mais justiça à limitação dos consultores estrangeiros em lidar com o “diferente”. Bachelard (2004), também utiliza-se deste conceito de obstáculo epistêmico para designar tudo que se interpõe entre os sujeitos e o conhecimento não questionado – critico, social e politicamente – fazendo estancar ou quedar-se inerte o progresso epistêmico e a construção do conhecimento. Um bom exemplo disto é posto por Kelly Silva (2008, p. 161), ao analisar que:

Raros são os assessores estrangeiros que se dispõem a aprender tétum, a língua veicular de Timor-Leste. Por isso, tendem a

desempenhar suas funções utilizando a língua inglesa ou portuguesa, no caso dos assessores de origem lusófona, a despeito das dificuldades que tal procedimento possa trazer ao processo de capacitação. (SILVA, 2008, p. 161)

Para Nonaka e Takeuchi (1997), toda organização que queira atingir efetivamente os seus objetivos de construção e compartilhamento do conhecimento, com efetividade na resolução de suas questões práticas deve apresentar em sua

práxis as condições capacitadoras que são: intenção; autonomia; flutuação e caos

criativo; redundância; e variedade de requisitos. Neste estudo aceita-se que há estreita ligação entre a existência destas e o “ser qualificante” supracitado por Zarifian (2001). É flagrante a ausência desses pressupostos na estrutura organizacional e na burocracia dos países suboportunizados e “comunidades alvo” das cooperações internacionais, como ficará fundamentado a seguir.

4.2 A AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES CAPACITADORAS PARA A