3.5. Dificuldades apresentadas pelos entrevistados
3.5.1. Falta de reflexão das dúvidas inerentes ao campo de estágio
A análise das entrevistas revelou que, para os entrevistados, a falta de
discussão de suas dúvidas com a equipe de trabalho, em relação às atividades
realizadas no setor, é a principal dificuldade a ser superada nos momentos de
estágio. Segundo os alunos, há, por parte de alguns profissionais, uma
dificuldade de integrar-se com os estagiários, o que se reflete em um
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comportamento não cooperativo desses profissionais na função de mediadores
entre os conhecimentos teóricos e práticos que os alunos adquirem no curso e
que anseiam vivenciá-los no cotidiano das instituições de saúde.
Os alunos relatam que, em muitos setores, as equipes de enfermagem
se mostram, muitas vezes, resistentes à presença deles, ignorando-os e
dificultando a sua participação nas atividades do setor.
Questionados sobre o porquê dessa dificuldade, atribuíram a causa a
ideia de que, para alguns profissionais, o estagiário é visto como um intruso e
um concorrente potencial, alguém que pode lhes roubar o emprego. Segundo
alguns entrevistados, “é o medo de que algum desses estagiários seja melhor
que eles” (E.12). Na lógica da produção capitalista, o motivo atribuído pelos
entrevistados ao comportamento não cooperativo dos profissionais com os
estagiários está no nível da aparência, enquanto que a essencialidade dessa
postura revela a alienação do trabalho contida e revelada na relação de
estranhamento dos profissionais e dos estagiários com o produto de seu
trabalho e entre eles. Denota-se, também, a ausência de uma reflexão mais
acurada sobre o papel específico dos profissionais na relação
ensino-aprendizagem, já que existe a figura do supervisor, a quem os alunos devem
recorrer para sanar as dúvidas inerentes à prática por eles executada no
campo de estágio. A supervisão direta é de responsabilidade privativa do
enfermeiro supervisor, que atua tendo em vista a formação profissional do
aluno.
Entretanto, observa-se, pelas verbalizações, que os alunos idealmente
consideram as orientações da equipe de enfermagem (técnicos, auxiliares,
enfermeiros) como algo que facilita o desenvolvimento da autonomia,
possibilitando-lhes uma melhor identificação com a profissão e com a
construção de conhecimentos práticos. Entretanto, a forma como essas
orientações acontecem podem proporcionar uma experiência negativa de
estágio.
Na unidade de pré-natal e clínica médica, eles te tratam como que
você já fosse funcionário ali dentro. Eles te ajudam, eles te
orientam. Eles te auxiliam se você está com alguma dificuldade.
Eles te tratam muito bem, como se você fizesse parte daquele setor.
Na central, é um pouquinho mais complicado, eles não deixam você
interagir, eles não te ajudam. Você tem que correr muito atrás do
professor porque, ali, eles não te dão auxílio. Como profissionais,
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eles não dão auxílio o suficiente para você se sentir bem e realizar
melhor os serviços lá (E. 10).
De acordo com os entrevistados, essas situações geram sentimentos de
inferioridade e de indignação. Isso é nitidamente percebido na forma como
alguns setores direcionam os estagiários para as atividades práticas, das quais
não se exige maiores articulações entre o que eles estudam em sala de aula e
o que eles desenvolvem no campo de estágio. Revela-se, no conjunto das
falas, que as atividades propostas durante a realização desses estágios não
garantem, suficientemente, a ação coletiva e a liberdade de atuação dos
estagiários com a equipe.
Na busca pela elucidação dessa questão, é oportuno salientar, como
visto nos capítulos anteriores, que a base do trabalho do técnico de
enfermagem ocorre, como qualquer profissão, a partir da divisão social e
técnica do trabalho e que, tal divisão, é historicamente marcada pela dicotomia
entre teoria e prática. Isto implica, necessariamente, na compreensão
fragmentada e reduzida do próprio campo de trabalho, como observado no
capítulo II desta dissertação.
Desta forma, embora colocados próximos às situações de experiências
diretas, as tarefas confiadas a eles, principalmente no ambiente hospitalar, não
estimulam o desenvolvimento de ações de participação mais ativa e reflexiva,
diante das situações problemas que demandam o trabalho de enfermagem. De
modo geral, os estagiários consideram que as atividades se tornam repetitivas
e a participação angustiante. Inclusive, o acesso deles aos recursos materiais
onde se realizam os estágios é limitado e circundado a uma dependência de
autorização para uso por alguém da equipe.
Entretanto, não se pode negligenciar, nesse aspecto, o entendimento
das dificuldades pelas quais passam muitas instituições de saúde no país, que
se reflete em cortes de verbas, que influencia diretamente na racionalização do
uso de recursos materiais usados no processo de trabalho, gerando
insegurança e interferindo diretamente nas relações entre os próprios
trabalhadores.
A essencialidade presente nestas questões demonstra que a divisão
social do trabalho e o trabalho alienado se materializam na formação dos
técnicos de enfermagem, tendo como uma de sua expressão, durante a
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realização do estágio, o fato dos estagiários subordinarem-se às ordens da
equipe, sem que possam interferir no planejamento e direcionamento das
ações que irão executar. Os alunos entrevistados apontam, em suas
verbalizações que, enquanto estagiários, se colocam muito mais como
observadores passivos das práticas adotadas pela equipe, em detrimento à
uma ação reflexiva e conjunta, que transformaria concomitantemente
profissionais e estagiários, a partir da reconstituição conjunta de seus
conhecimentos teóricos e práticos.
Ao reproduzir, com os estagiários, por meio de uma adaptação velada,
as relações de hierarquia e de subordinação a que estão submetidos, as
atitudes dos profissionais sinalizam para o entendimento de como uma divisão
mais ampla de trabalho é percebida e construída cotidianamente.
Só os enfermeiros que não gostam, eles odeiam os estagiários. Eles
ficam meio ressabiados. Não tratam a gente como igual. Eles
esnobam a gente, principalmente no posto central, ali. A gente queria
pegar alguma coisa, perguntar alguma coisa, eles não davam muito
atenção. Então, eu ficava na minha. Imagine! (...) Sempre foi assim,
sempre, sempre. Era ruim, eu me sentia um nada, inferior a elas, por
causa desse tratamento. Nossa, parece que eu não sei nada. Estou
aprendendo, mas... Eles não davam atenção. A gente queria saber
onde ficava determinada coisa, eles faziam de conta que não
estavam escutando. Tinha que perguntar várias vezes para daí eles
responderem. Eu ficava: - Meu Deus do céu, né? (E. 01).
Teve um período ali que a maior parte do tempo, se você perguntar,
nós só dávamos banho, banho, banho. Medicação só fomos fazer uma
vez no decorrer do tempo, de junho a dezembro do ano passado. São
quantos meses para você vir no hospital todo dia, né? Nos dias que era
marcado para você e você só ficar dando banho em paciente. É
complicado. A gente chegava lá, na passagem do plantão, eles já
diziam para o professor: olha, professor já deixamos tal turma lá, para
tua turma dar banho. E a gente ia lá e dava banho (E. 05).
Você tem que meio se humilhar para que aquele profissional que está
lá perca um tempo para te ensinar (E. 07).
As entrevistas evidenciam que as relações interpessoais no campo de
estágio interferem na ambientação dos alunos, na motivação e no
comprometimento como o processo de estágio:
Quer que eu seja bem sincera. Você já pensava: Nossa! Eu vou ter que
ir de novo. Mais um dia. Que nem nós, a gente sai lá da minha cidade
cinco horas da manhã para vim para cá. Não é longe, mas é o único
ônibus da saúde que têm para a gente vim para cá. A gente fica das
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cinco horas até quinze para o meio dia. Eu só voltava embora às cinco
horas da tarde, ficava a tarde inteira no hospital, sentada esperando
carona. Chega em casa você toma um banho, come alguma coisa e
volta de novo para a escola. Então quando chegava a semana, você
pensava, nossa hoje já é quarta, na quinta tem que ir de novo. Sabe
aquela coisa de você não ter aquela motivação para você vir. Só que
não podemos desistir, né? Nós temos que pensar que um dia isso vai
mudar. Que você vai aprender e que você vai fazer alguma coisa. Nos
últimos ali, ninguém mais aguentava. Ninguém aguentava mais vir. É
difícil. A gente espera que melhore (E. 05).
A gente fica triste, porque não aprende. A gente fica triste. Até a
gente comenta entre os alunos, com os colegas do curso, da sala, a
gente fica triste. Poxa, a gente foi, não vi nada de diferente, não
aprendi. O que é que eu fui fazer lá? Não pude fazer direito. Não tive
o que fazer. Fiquei lá sem fazer nada. A gente fica triste, né? Porque
na verdade, eu tô...O que eu quero é aprender. Eu tenho pressa de
aprender. Ainda mais que nem a gente que já está com trinta,
quarenta anos, a gente quer aprender e quer ir para frente. Quem tem
dezoito, dezenove, tem uma vida pela frente, pode fazer uma
faculdade, tudo. Agora a gente que já está meio... tem que correr
contra o tempo. E a gente quer estar nestes estágios para aprender,
para aproveitar esse tempo para crescer, mas não é sempre assim
que acontece (E. 06).
É evidente, nos depoimentos, que a não execução dos procedimentos
próprios da profissão, durante a realização dos estágios, leva os estagiários a
refletir entre si sobre a importância dos estágios que executam. O que leva a
inferir que a forma como o estágio se realiza, mesmo dificultando a autonomia
dos alunos para as tomadas de decisões, acaba possibilitando a reflexão de
que, para eles, o estágio não deve se resumir à limitação técnica do exercício
profissional
48. Entretanto, se, na atual sociedade capitalista, o estágio ainda se
configura como um dos mantenedores das diferenças de classe, dificultando a
realização de uma legitimidade profissional crítica, é porque permanece
fortemente permeado por relações alienantes, que distanciam o conjunto de
conhecimento adquirido na escola e as ações profissionais desenvolvidas no
cotidiano da profissão.
No documento
RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA NO TRABALHO NA ÁREA DA SAÚDE:
(páginas 126-130)