Dentro dessa visão, Carvalho, Paes e Leite (2010), ao focalizarem o
trabalho em serviços, na área de saúde, apontam que o capitalismo acarretou a
busca pela superespecialização (no sentido de simplificação do trabalho
subordinado à lógica capitalista) dos trabalhadores que participam
pontualmente, com o seu saber, de uma determinada etapa do projeto
terapêutico. Os autores demonstram que o trabalho em saúde, quando inserido
no modo de produção capitalista, passou a expressar caráter de alienação,
como todo trabalho que visa exclusivamente a reprodução de capital pelo
capitalista.
Nesse sentido, os estudos de Pires (1998), de Pereira e Ramos (2006) e
de Ayala e Oliveira (2007) corroboram que o trabalho em saúde, quando
perpassado pela lógica capitalista, se subordina a ampliação do capital.
Esses autores destacam que a supremacia do capital sobre o trabalho
em saúde introduziu a organização parcelar do trabalho e a perda de uma
62
interação global do trabalhador no projeto de intervenção, dificultando o
reconhecimento pelo trabalho realizado, exatamente por não se sentir sujeito
ativo
26do processo, apresentando, inclusive, certo desconhecimento com o
resultado global da assistência.
Entretanto, não se pode negligenciar o fato de que o trabalho em saúde
envolve demandas complexas, impossíveis de serem atendidas por um único
trabalhador. Nesse sentido, o trabalho em saúde é um trabalho coletivo,
“exercido por diversos profissionais de saúde e outros profissionais ou
trabalhadores treinados para atividades específicas” (PIRES, 1998, p.97), que
se unifica pela soma de sua fragmentação. O que se torna problemático é a
abordagem individual e, em alguns casos, centralizadora, das diversas
categorias profissionais (médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, entre
outras) sobre o processo saúde-doença, que, legitimado pela cientificidade e
suposta neutralidade de suas práticas, acaba, muitas vezes, desprezando a
dimensão coletiva que o envolve. Embora os profissionais de saúde realizem
seus trabalhos com relativa autonomia, verifica-se a predominância instituída,
historicamente, do gerenciamento médico sobre as demais práticas
profissionais, firmando-se como principal responsável pela organização do
trabalho em saúde, o que lhe confere uma maior legitimidade social e
considerável prestígio econômico em relação aos outros profissionais
não-médicos (PIRES, 1998):
Os médicos interferem no trabalho dos demais profissionais de
saúde, tornando-os dependentes, em maior ou menor grau, das
decisões médicas e detêm o controle do processo assistencial em si.
[...] Os médicos têm ocupado, majoritariamente, os altos cargos de
direção das instituições, sendo a categoria, dentre os profissionais de
saúde, que mais tem representação nos espaços legislativos e nos
espaços de decisão das políticas públicas de saúde no país. Além
disso, não existe restrição legal à atuação dos médicos em qualquer
ramo das atividades de saúde, o que não ocorre com as outras
profissões (PIRES, 1998, p. 87-102).
Exemplo disso é o fato de que espera por votação, na Comissão de
Assuntos Sociais do Senado, o projeto de lei 25/2002, de autoria do senador
Geraldo Althoff (PFL/SC), que institui o Ato Médico. Esse projeto prevê a
centralização do acesso aos serviços de saúde numa única profissão, a
63
medicina, que se responsabilizaria pelo diagnóstico e prescrição de qualquer
ação terapêutica na área de saúde, o que limitaria o exercício e a autonomia
dos demais profissionais, que teriam seus saberes submetidos ao saber
médico, cuja vertente admite culturalmente a saúde ao modelo clínico e
biológico.
Carvalho et al. (2010) observaram, também, a influência das políticas
neoliberais para os setores de saúde e educação. Os autores traçam, sobre
esse contexto, um retrato de desastre social e global que o ideário presente
nessas políticas acarretou para a coletividade: aumento das desigualdades,
subcontratação de profissionais, terceirização dos serviços públicos,
precarização do trabalho e aumento das insatisfações dos trabalhadores em
relação à qualidade e ao resultado de suas ações.
Para Kuenzer (2004), estas medidas acabaram com a esperança de
vários profissionais da saúde e da educação em trabalhar nos serviços
públicos, onde, supostamente, a relação entre custos e benefícios seria outra.
O alastramento do ideário capitalista para os serviços públicos, como forma de
expandir ainda mais o capital, esvazia o sentido do trabalho, pauperiza a
remuneração e, consequentemente, aumenta a exploração. Como está inserida
no contexto de reprodução capitalista, a compra e venda de prestação de
serviços constituiu-se, também, em uma atividade altamente lucrativa
(BRAVERMAN, 1987).
É nesse sentido que os serviços de saúde, quando configurados aos
moldes das organizações de produção capitalista, passam a reproduzi-la e a
gerar excedentes. Cita-se como exemplo os hospitais públicos ou privados que,
pela implantação do fator econômico no processo saúde/doença, tornaram-se
viabilizadores de consumo daquilo que se poderia chamar de “indústria da
saúde”, comprando e vendendo produtos destinados ao controle de doenças e
assistência à saúde, tais como medicamentos, tecnologia hospitalar,
internações, cirurgias e consultas médicas, nas mais diversas especialidades.
Outro aspecto verificado por Ayala e Oliveira (2007), a partir do modelo
de produção capitalista aplicado ao trabalho em saúde, é a supremacia do
trabalho quantitativo que, em virtude de controles gerenciais (secretaria da
saúde, chefias de divisão, coordenadores em geral), estabelecem relações de
poder e padronização de atividades, impondo aos trabalhadores de saúde
64
metas que devem ser atingidas pelos diversos setores da assistência e os tipos
de serviços oferecidos para a população.
Segundo esses autores, a regulação do trabalho em saúde, orientado
pela quantidade, impossibilita aos trabalhadores que eles determinem, por si
próprios, a forma de alocar seu tempo para a satisfação das próprias
necessidades de trabalho. A gestão, ao desconsiderar que o processo
saúde-doença é perpassado, também, por condições econômicas e sociais, passa a
entendê-lo apenas como necessidades totalmente previsíveis, que devem ser
ligeiramente atendidas pelo profissional.
O controle dos gestores, no que concerne à quantidade e às ações que
se devem ou não ser realizadas nos serviços de saúde, acarreta, inclusive,
sofrimento aos profissionais que, impedidos de participar nas decisões de suas
atividades, ficam ansiosos diante da possibilidade de não cumprimento das
metas impostas pela gerência (AYALA e OLIVEIRA, 2007).
Na interpretação de Ayala e Oliveira (2007), a presença da lógica
capitalista no setor da saúde desconsidera as peculiaridades de cada
atendimento e as particularidades das intervenções de cada profissional.
Busca-se, assim, a homogeneização do atendimento e revela-se, com isso, a
tentativa dos gestores em reduzir ao mínimo possível o tempo de trabalho
socialmente necessário para a resolução das necessidades dos usuários. São
os gestores que estabelecem as metas a serem atingidas pelos profissionais e
“os tipos de serviços que serão oferecidos à coletividade e as formas e
características que esses serviços devem assumir” (p.220).
Ayala e Oliveira (2007) observaram, por exemplo, que, ao determinar a
forma e o processo de atendimento dos trabalhadores em saúde, os gestores
demonstram claramente o caráter que define e norteia a divisão do trabalho em
saúde, qual seja, aqueles que são destinados à execução não participam da
organização e elaboração do trabalho. Perde-se, com essa forma de
gerenciamento do trabalho, a riqueza da integração interdisciplinar que, de
acordo com Pires (1998, p.162), possibilitaria “um salto qualitativo no patamar
de conhecimento e na prática assistencial em saúde.”
Segundo Pires (1998, p.162), a ordem capitalista impulsionou a
especialização do conhecimento na área da saúde e possibilitou que novas
práticas assistenciais fossem vinculadas ao processo saúde-doença. Porém, a
65
organização do trabalho e a fixação do profissional a uma determinada etapa
do processo terapêutico, sem que ocorra a reflexão e envolvimento dos
diversos trabalhadores no processo de planejamento, no pensar e organizar o
trabalho em saúde, “ao invés de possibilitar avanço, gera fragmentação e
alienação”. Desse modo, o trabalho em saúde se materializa em práticas e
responsabilidades diferenciadas, de acordo com o grau de saber de seus
diferentes agentes, acarretando para si a divisão entre trabalho manual e
trabalho intelectual, demonstrando que o setor sofre forte influência do modelo
taylorista na organização de seu trabalho.
Germano (1993), por exemplo, ao observar o contexto da
institucionalização do trabalho da enfermagem em suas subcategorias, revela
que a organização de suas práticas na assistência à saúde é
concomitantemente desenvolvida a partir da organização do trabalho em geral.
Por este prisma, a enfermeira passa a ser vista como trabalhadora central,
assumindo o papel de gerente, frente aos auxiliares e técnicos de enfermagem,
cuja educação profissional apenas a ela possibilitaria executar esta atividade:
Os trabalhadores de enfermagem têm graus de formação
diferenciados e dividem o trabalho, seja nos “cuidados integrais”, seja
nos “cuidados funcionais”, garantindo, ao enfermeiro, o papel de
detentor do saber e de controlador do processo de trabalho da
enfermagem, cabendo aos demais trabalhadores de enfermagem o
papel de executores de tarefas delegadas (PIRES, 1998, p.189).
Entre os estudos relacionados à divisão e organização do trabalho da
enfermagem, cita-se Pereira e Ramos (2006) e Ribeiro (2009) que, ao
analisarem as ações de qualificações desenvolvidas para os profissionais de
saúde de nível fundamental e médio, observaram que a lógica taylorista de
trabalho permeia, inclusive, os cursos de formação profissional, e que esta se
faz notar pela curta duração e rapidez dos treinamentos, que são reduzidos a
uma mera “qualificação mecânica”. Perpetua-se, com essa dinâmica, a ideia
histórica e capitalista de que bastava a formação de bons gerentes, no caso da
enfermagem - ladies nurses, recrutadas das classes mais privilegiadas,
possuidoras de instrumental teórico, para que pudessem controlar o trabalho
de outras trabalhadoras, nurses - de origem pobre, cuja educação ficava
66
Ainda, de acordo com Pereira e Ramos (2006), as vicissitudes do mundo
do trabalho, sofridas, a partir do final do século XX, com suas constantes
transformações tecnológicas e organizacionais, trouxeram a flexibilização da
produção e a reestruturação dos trabalhadores frente às suas ocupações e às
novas situações de trabalho em saúde. Passou-se a exigir um trabalhador
competente e comprometido com seu aperfeiçoamento, sendo postas
exigências, como escolaridade básica e capacidade de adaptação, cuja
educação profissional contemplasse a superação do trabalho fragmentado e
repetitivo, substituindo o modelo tecnicista, restrito ao posto de trabalho, pelo
trabalho flexível, autônomo e integrado em equipe que, porém, sob a égide do
capital, tem se reduzido ao trabalho polivalente e a meros treinamentos
(PEREIRA e RAMOS, 2006).
Destacadas as evidências de que a divisão técnica do trabalho em
saúde e a sua hierarquização seguem a divisão social consolidada pelo
capitalismo, passa-se à reflexão histórica do desenvolvimento da enfermagem
no Brasil, para apreender como ocorre essa formação, com destaque aos
trabalhadores de nível médio (técnicos de enfermagem).
67
CAPÍTULO II
2. Momentos da Formação Profissional em Enfermagem no interior do
desenvolvimento histórico do capitalismo brasileiro
As atividades relativas ao cuidado e à administração do espaço
assistencial, que genericamente constituem o trabalho da
enfermagem, só passam a ter características profissionais a partir de
1860, quando, na Inglaterra, Florence Nightingale cria um modelo de
formação e de prática assistencial que se difunde para o mundo todo
(PIRES, 1998, p.85)
Para circunscrever, historicamente, a construção do espaço legal que
rege o momento de realização do estágio, na formação do técnico em
enfermagem, neste capítulo, tendo por base a estrutura conceitual de análise
do capitalismo desenvolvida por Marx, apresentar-se-á a estruturação do
campo da enfermagem no Brasil, a partir do século XIX.
No documento
RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA NO TRABALHO NA ÁREA DA SAÚDE:
(páginas 61-67)