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FAMÍLIA

6.3 Família, família

A família, o doméstico, possui função reguladora fundamental dentro da sociedade. É uma arena formada pelo espaço físico mesmo (a casa), mas também pelas relações entre os indivíduos e pelo simbólico, que norteia essas relações atribuindo-lhe uma espontaneidade que ganha ares de “naturalidade” no cotidiano. E não há a necessidade de uma mediação do tipo “somos da mesma família” ou “esse fato ocorre dessa forma porque ela é da minha família”. A família mostra-se como um universo privilegiado de construção social da realidade.

O indivíduo está subordinado à família que, junto às outras instituições existentes em todos os meios sociais, é essencial à sociedade civil. A família é quem garante a moralidade que circula e parece ser “natural”, que parece “estar lá desde sempre”. Portanto, quando se falava (mais raramente nesse início de século XXI) em “filho ilegítimo”, por exemplo, estava não apenas se referindo a um estatuto jurídico, mas igualmente a um estatuto social e simbólico: essa criança estava fora da ordem familiar, podendo ter sido resultado de um deslize, fruto de um adultério, logo, fora dos preceitos estabelecidos por essa mesma ordem.

26 Para muitas civilizações, essas questões giravam tanto em torno do casamento e da constituição da família,

como também do nascimento da “pessoa”: quando se é um humano? Quando podemos ser considerados uma pessoa? Para alguns povos era no momento em que a criança fosse capaz de se comunicar e andar; antes disso, a perda do bebê concernia somente aos pais e não representava grande perda no conjunto da comunidade. No cristianismo, há uma adoção da postura mais “psicológica”, segundo GOODY (1985): o fato de proibir relações sexuais após a concepção denota a crença de que um ser está a caminho, portanto seria uma pessoa.

De modo semelhante, uma família, como foi acima citado, com um único progenitor, suscita questionamentos, uma vez que “falta” um dos elementos que completaria a família27. E essa “falta” tem muita força na ordem simbólica cotidiana.

Junto a essa imagem que busca certa uniformidade do que viria a ser uma família, tem- se também difundida a ideia de que ela constitui um espaço de resguardo subjetivo dos indivíduos. É o lugar da intimidade e do exercício da afetividade. No seio familiar, os indivíduos podem ser autênticos, não precisam fazer uso das firulas de civilidade que lançam mão no ambiente de trabalho ou entre amigos; é espaço de solidariedade, de privacidade. Paradoxalmente, existe também a ideia que na família não se pode ser autêntico, há cobranças de todos os lados, o que suscita um sentimento de opressão, de obrigação, de atos violentos e de egoísmos.

Todas essas ideias, que são correntes, podem ser ouvidas diariamente, em diversificados espaços sociais, seja em tons de queixa, seja em tons de alegria. Pululam no imaginário de todos e se perpetuam através das gerações. Ressignificam e reforçam um

habitus. E esse movimento é tão intenso que existem algumas expressões que escapam do seu lócus de origem: “empresa familiar”, “essa firma é como a nossa família”, cuja conotação é

atrelada a noção de afetivo, muito embora os objetivos buscados no balanço do final de cada mês sejam friamente calculados. Assim como ocorre, também, vez por outra nos programas políticos do país, quando os dirigentes carregam nas tintas da emoção ao exaltar ao povo a necessidade de se resgatar “os valores familiares”; ou ainda, expurgar da “família social” os bandidos e criminosos que mancham a honra dos lares.

Como se vê, são extensos os usos e conotações do termo família. O que é interessante ressaltar em todo esse universo de aplicações, significados e usos do termo “família” é o que há em comum tanto no discurso “a favor”, quanto no discurso “anti/contra”: seu aspecto a- histórico e, por outro lado, a estereotipização da família como uma realidade inteiramente apreensível, homogênea e admirável, não importando o contexto histórico ou social. Como se existisse “a” família.

27 Mesmo no século XXI ainda causa discussões calorosas a questão que diz respeito à maternidade solitária,

onde mulheres bem sucedidas financeiramente, buscam bancos de esperma para, junto ao serviço de reprodução humana assistida, conceberem de modo independente: sem casamento e sem marido. Recentemente (2010) dois filmes abordando esta temática estiveram em cartaz nos cinemas do circuito comercial: “Plan B” (Plano B, na tradução para o português) e “Switch” (Coincidências do Amor, na tradução para o português), ambos da indústria americana de cinema.

Os trabalhos no terreno sociológico, antropológico, etnológico e de história social28, entre tantos outros, têm mostrado o quão complicado é falar “a” família, uma vez que existem muitas variedades de conformações familiares não apenas nessa virada de século, como também nas experiências familiares do passado. Frente a toda essa diversidade é incontestável a impossibilidade de reconstruir um modelo único e completo de família. Como diz SARACENO (1992), a história da humanidade apresenta um quase inesgotável repertório de modos de organizar e atribuir significados a: geração, sexualidade, alianças entre grupos de indivíduos, enfim, construção familiar.

Na sociedade ocidental, a família tem suas raízes no casamento monogâmico, através de consentimento livre e mútuo e baseado no amor. Por outro lado – conforme já foi dito anteriormente – durante muito tempo e em algumas circunstâncias, o melhor casamento era o arranjado, pois era garantia da ampliação e da perpetuação do patrimônio. Assim, a família é uma construção social racional, voluntária e possui uma moral.

Outro aspecto ainda a ser ressaltado nessa discussão é a divisão sexual do trabalho: é a família o lugar onde se percebe claramente a cisão sexual dos papéis de mulheres e homens, calcada principalmente em caracteres tidos como “naturais”, seguindo oposições tais como passivo/ativo, interior/exterior, frio/quente, entre outros. A realização substancial do homem estaria no seu trabalho no mundo exterior, nas lutas sociais; a mulher se destinaria a cuidar da moralidade objetiva da família, dos afazeres ligados à educação.

Complexo ator social e fonte de reflexões e estudos, a família é, ainda, interpretada pelos “liberais” como uma comunidade “natural”, é a chave da felicidade individual e, por consequência, do bem público29. Também para os “tradicionalistas”, ela constitui objeto de preocupação, sobretudo com sua manutenção nos moldes hierárquicos com que exerce papéis e funções “naturais” muito claramente delimitados. O respeito às hierarquias é uma condição para o equilíbrio social. Aqui a família é uma sociedade de linhagem que afiança a estabilidade, a duração e a continuidade. E nessa estruturação, o pai é o chefe “natural”, que estabelece as leis e garante seu cumprimento. Nesse sentido, o divórcio para os “tradicionalistas” é execrado, uma vez que é intrinsecamente perverso e cujas consequências são ruins para as mulheres e seus filhos por seus desdobramentos morais. Os “socialistas” se