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O social: a discussão entre o “natural” o “cultural”

10.REFLEXÕES E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: duplo aspecto das discussões acerca da maternidade o social e o

10.1. O social: a discussão entre o “natural” o “cultural”

A frase afirmativa, veiculada nos meios de comunicação pela publicidade de uma conhecida marca de produtos infantis e transformada por mim em questão, “Quando nasce

um bebê, nasce também uma mãe?”, parece, quando vasculhada nos interstícios do real,

deslocada de sentido. O desenrolar do presente estudo, em cada uma de suas etapas, aponta que, ao contrário do que sugere a propaganda, o bebê só nasce após a mulher ter vivenciado, de modo simbólico, uma gestação da maternidade. A mulher gesta a mãe.

E, para que essa gestação ocorra, casamento é peça fundamental nesse tabuleiro. O casamento, em nossa contemporaneidade, parece ocupar novo lugar numa sociedade que reconhece aos indivíduos a liberdade de instituir ou não um laço, a liberdade de formar ou desmanchar um casal. Paradoxalmente, ainda que os indivíduos tenham posse dessa liberdade de escolha, por assim dizer, o casamento parece representar uma obrigação social, na medida em que a partir dele, todos esperam que dali, de casal, se passe ao estatuto de família. Há a expectativa do nascimento de crianças, da formação de uma prole consanguínea, que de dois, se passe a três, quatro, cinco...

E é justamente sob essas novas perspectivas de convívio familiar, que as mulheres re- elaboraram os fracassos do amancebamento ocorrido na tenra juventude e tentam, nesse segundo enlace, usufruir de uma escolha que avaliam como mais consciente e madura. Disso decorre que longe de ser desvalorizado, até pelos desdobramentos da primeira união, o casamento encontra lugar, e um lugar importante, na vida delas.

Paralelamente, o amancebamento permanece visto como laço fragilizado, pois não é reconhecido como forma de união legítima. Isso ocorre talvez por falarem, atualmente, de um novo patamar em sua vida conjugal e social; as mulheres se sentiram mais livres para reproduzir a fala dos seus pais e familiares, condenando esse tipo de relação. Poderiam, talvez, silenciar, mas o habitus tem seu apelo... Apropriar-se do movimento histórico, das mudanças que têm ocorrido atualmente no âmbito da família, permite observar de modo crítico problemas que afetam esses laços familiares contemporâneos.

As desigualdades entre mulheres e homens no campo mesmo do mercado de trabalho, que continuam a expressar uma herança cultural onde o trabalho masculino é mais valorizado que o feminino, traduzem uma dificuldade nova para essas futuras mães: como conciliar, no meio urbano, longe da casa dos pais, portanto sem a rede de apoio comunitário, a vida familiar e a vida profissional? Ainda que a presença da mulher no mercado profissional seja, atualmente, considerada como processo social irreversível, as articulações e arranjos na esfera familiar e profissional permanecem relegadas aos cuidados da mulher. Nessa pesquisa, ficou clara a disponibilidade das mulheres em – até mesmo – abandonar o trabalho com o intuito de darem seguimento ao projeto de buscar uma nova gravidez, no que eram incentivadas pelo marido.

Fragilizadas pelas condições adversas do mercado de trabalho e pelo fenômeno da dupla jornada, as mulheres que participaram desse estudo continuam a ser responsáveis pela casa no que diz respeito ao trabalho doméstico, e ao cuidado das crianças. O primado maternal está presente em todos os segmentos e não apenas relacionado ao cuidado dos pequenos, e tem-se a seguinte racionalização: ao homem os cuidados de urgência, físico e exterior (e isso mais parece uma alusão aos genitais masculinos, o mesmo ocorrendo com a mulher, no outro pólo); à mulher, o cuidado cotidiano, afetivo e interior. Essas diferenças culturais, que são sutis e mesmo invisíveis no cotidiano, dada sua aparência de “natural”, são cruciais, e ajudam a demonstrar os limites da dinâmica de busca da igualdade.

Além dessa desigualdade entre os sexos, cujo “contrato de gênero”137 igualitário entre mulheres e homens está longe de se estabelecer, há as diferenças entre as mulheres mesmo. De um lado, mulheres que conseguiram estabelecer uma carreira profissional interessante, bem remunerada, e que lhe permite acompanhar suas crianças em virtude das facilidades de conciliação dos horários de trabalho, acomodações domésticas, redes de apoio no cuidado da criança, casas confortáveis, e que não encontram muita dificuldade em conciliar sua feminilidade, maternidade e crescimento pessoal. Num outro extremo, tem-se mulheres que praticamente subsistem em meio a tanta precariedade de recursos: faltam redes de apoio como creches próximas aos locais de trabalho, empregos sem flexibilidade de horários e que remuneram mal, o que dificulta o acompanhamento e cuidado das crianças, além do tempo gasto dentro de transportes coletivos insatisfatórios. Para essas mulheres, chegar a casa representa uma segunda jornada de trabalho, com todos os afazeres ao seu encargo:

organização doméstica, higienização das roupas e utensílios, além do preparo dos alimentos de todos. Elas se sentem fracassadas como mães, mas como mulheres também, como fica em evidência em seus discursos durante as entrevistas. Por isso a aposta alta no segundo enlace matrimonial.

Entre esses dois extremos de mulheres, as situações mostram que a conciliação de uma vida familiar e uma vida profissional, em muitos casos, é menos uma questão de identidade feminina em si mesma, mas um problema inegável de pertencimento social. Sublinhar essas desigualdades entre as mulheres leva a reformular duas questões tradicionais da discussão sobre a família: a significação do trabalho feminino, bem como certo movimento de “volta ao lar”, que tem aparecido de modo muito sutil nos diversos meios de comunicação como “solução para a atual decomposição da família”. BADINTER (2005) chama atenção sobre essa possível nova armadilha...

A volta da crença de que o retorno da mulher ao lar é um caminho a ser redescoberto pouco a pouco se imiscui na sutileza dos discursos bem intencionados e de fundo ecológico: até mesmo em nome da “mãe natureza”, seria importante que a mulher retomasse a casa como espaço privilegiado de ação. Dentro das classes privilegiadas, esse retorno pode ser que não seja tão sentido, afinal essas mulheres contam com ampla rede de apoio. Entretanto, nas camadas menos privilegiadas, a acumulação de dificuldades e de tensões cotidianas induz um profundo desencorajamento entre as mulheres. Para as que fizeram parte desse estudo, “voltar pra casa, ser do lar” pode parecer como um desejo, sobretudo nesse momento da vida em que tanto almejam uma criança para adquirir o reconhecimento frente a todos enquanto família. Mas esse desejo pode mascarar o risco de uma dependência econômica que repotencializa cada uma das dificuldades de sua história.

Mais que o desejo de revisitar a maternidade, as mulheres desse estudo almejam, de preferência rapidamente, uma criança consanguínea que personificará uma espécie de passaporte para a “normalidade” que todos que as conhecem parecem esperar dela e de seu marido: formar uma família de verdade. A despeito das consequências que podem daí advir em longo prazo.