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Família, Género e Conjugalidade na mira dos processos de mudança

“As famílias são lugares onde se espelham os efeitos dos processos de transformação global, mas também um espaço próprio e dinâmico de construção de mudança”: assim o afirmam Wall et al. (2011:4), sugerindo que as grandes tendências de recomposição demográfica e social verificadas nas últimas décadas em Portugal se fazem acompanhar de importantes mudanças nas formas de organização familiar. Das alterações nos padrões demográficos, às mudanças políticas38

Neste sentido, importa, pois, perceber de que forma estas mudanças têm expressão na vida das famílias portuguesas e de que maneira se consubstancia, afinal, tal modernização. Para começar, a evolução dos agregados domésticos (a que já fizemos breve referência no ponto anterior deste capítulo) parece ser um indicador demográfico relevante: a diminuição do número médio de pessoas por grupo doméstico (3,1 em 1991 e 2,6 em 2011), o incremento das famílias monoparentais (que mais do que duplicaram entre 1992 e 2012), o aumento dos agregados de pessoas sós (que em 2012 correspondiam já 19,1% do total dos agregados domésticos

, passando pela aproximação do país a padrões normativos de outras sociedades ocidentais, vários são os factores que operam na transformação das famílias em Portugal, fazendo deste campo um meio privilegiado para observar os efeitos da modernização sobre os comportamentos privados.

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No que respeita a tendências específicas da conjugalidade, o tipo de agregados domésticos parece confirmar a centralidade da vida a dois na constituição da família, no sentido em que, não obstante as mudanças introduzidas, mais de 60% das famílias continuam por ter na sua génese a formação de um casal. Em particular, e ainda que se denote um aumento da proporção de casais sem filhos (que, de 15% em 1960, passaram a representar 37,1% do total de casais, em 2012) é o casal com filhos que subsiste enquanto formato

) e a diminuição dos agregados numerosos (apenas 2% em 2009) reflectem, por si só e com propriedade, a consolidação de modelos familiares que se distanciam dos do passado (fonte: INE/PORDATA).

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Não sendo o nosso objectivo aprofundar o tema das políticas de família, é importante reter que o processo de modernização familiar em Portugal não se tem produzido unicamente por via dos efeitos retroactivos das mudanças históricas sobre a vida privada mas que, muitas vezes e até de uma forma mais evidente e linear, as mudanças derivam da implementação políticas públicas concretas, e, nomeadamente, por meio da produção legislativa que regula campos como o casamento, o divórcio ou a parentalidade.

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predominante das famílias portuguesas (Fonte: INE/PORDATA. Proporções calculadas com base nos valores absolutos).

Contudo, nem só de continuidades se revestem as tendências face à conjugalidade na nossa sociedade. Pelo contrário, desde a forma de escolher um parceiro à forma de com ele partilhar uma vida, filhos e projectos são muitas e evidentes as mudanças operadas nesta esfera da vida familiar, nas últimas décadas (Aboim, 2011). Para além de uma quebra bastante expressiva da nupcialidade, os dados estatísticos mostram como o casamento em si tem vindo a sofrer transformações, sendo contraído cada vez mais tarde: se em 1980 a idade média ao primeiro casamento era de 25,4 anos no caso dos homens e 23,3 no das mulheres, em 2011 os valores fixavam-se nos 31 e 29,5 anos, respectivamente (fonte: INE/PORDATA). Por outro lado, vemos como o casamento por “contrato civil” (por oposição à união católica) se instaura como modelo dominante, contrastando, em absoluto, com a tendência do passado: se em 1960 a percentagem de casamentos não católicos se cingia a 9,3% e a 27,5% em 1990, em 2012 essa proporção atingiu 59,9% dos casamentos celebrados (fonte: INE/PORDATA).

Além disso, outras tendências caracterizam o panorama familiar actual indiciando a crescente pluralidade de percursos de conjugalidade: para começar, a coabitação pré-nupcial, que terá duplicado no período intercensitário de 1991 a 2001 e que se consolida como estádio inicial (mais prolongado ou transitório) da vida conjugal; em segundo lugar, o incremento das uniões de facto - uma alternativa ao casamento civil (consagrada na lei, desde 1999, para casais heterossexuais e, desde 2001, também para homossexuais) que vem estabelecer os direitos e deveres de quem vive em conjugalidade sem, no entanto, estar casado; em terceiro, a evolução do divórcio, que não cessa de aumentar desde 1975, colocando Portugal acima da média europeia em matéria de taxa de divorcialidade (Wall et al., 2011), e, finalmente, a consagração na Lei, em 2010, do casamento entre pessoas do mesmo sexo40

Por seu lado, e tal como já foi sugerido anteriormente, também as mudanças operadas ao nível da divisão do trabalho profissional têm vindo a pressupor alterações na organização das relações de género, com efeitos sobre a vida familiar e conjugal. No entanto, a transição acelerada para o modelo dominante de duplo emprego (em que ambos os cônjuges exercem

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Em Maio de 2010 foi publicada em DR a Lei nº 9/2010 que veio permitir o casamento civil entre duas pessoas do mesmo sexo, estipulando a alteração no Artº 1577 do Código Civil, o qual passaria a definir o casamento como “contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”. Antes desta alteração, o mesmo artigo definia casamento como “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo

diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das

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profissão) não apagou os traços da desigualdade entre homens e mulheres nas famílias41, já que continuam a ser as mulheres as mais sobrecarregadas com as responsabilidades domésticas, dedicando, em média, mais 10 horas semanais que os homens a estas tarefas. E embora no que diz respeito a “cuidados com os filhos” vários autores (André, 1993; Torres e Silva, 1998; Guerreiro, Torres e Lobo, 2009) assinalem um maior equilíbrio entre a participação de ambos os cônjuges, a verdade é que a diferença de 7 horas semanais de média de dedicação às crianças (23h das mulheres contra 16h dos homens) é ainda bastante significativa (Wall et al. 2012)42

Assim, chegamos a um retrato da mudança na vida familiar que, sendo construído de realidades estatisticamente quantificáveis como as que aqui identificámos, convida também à interpretação dos seus significados implícitos ou das lógicas normativas que estão por detrás destas tendências. Com efeito, do ponto de vista dos valores, vários estudos realizados no âmbito da sociologia da família têm procurado entender de que forma as mudanças objectivas operadas no país potenciaram novas orientações normativas na vida conjugal e familiar dos portugueses. Sobretudo a partir das décadas de 1970 e 1980, com a difusão dos ideais democráticos e de liberdade, diferentes análises dão conta de “uma tendência ideal modernista em que ganham relevo orientações normativas legitimadoras da igualdade de género, do primado da afectividade, da democraticidade da vida familiar e da realização pessoal.” (Aboim, 2005:170). Na mesma linha, e no quadro das tendências mais enfáticas e generalizadas na família, destaca-se o movimento de privatização que, derivando de mudanças estruturais na sociedade como a melhoria das condições de vida ou a incorporação das mulheres no mercado de trabalho, se traduz, como vimos, numa autonomização dos grupos familiares e, consequentemente, na passagem de relações familiares formais e hierarquizadas para relações assentes no companheirismo, no centramento na educação dos filhos, no fechamento sobre a família conjugal e numa progressiva igualdade de género.

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Assim, a modernização parece chegar às famílias portuguesas pela mão de um movimento tendencial que Burguess, Locke e Thomes (1960) descreveram pela primeira vez como passagem da “instituição” para o “companheirismo”. No entanto, tal como ressalvam alguns autores (Torres, 2002; Aboim, 2005) e como bem espelha a hesitação de alguns indicadores estatísticos, o afrouxamento dos valores tradicionais e institucionalistas não

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Em rigor, nem na vida doméstica nem no mercado de mercado de emprego já que este continua a reservar para as mulheres posições geralmente mais precárias, mal pagas e menos qualificadas que as dos homens.

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significa a sua completa erradicação. No que à conjugalidade diz respeito, não podemos falar de uma incorporação generalizada de valores de coesão e de perfis de fusionalidade ou, utilizando a distinção ideal-típica supracitada, numa passagem definitiva da tónica institucionalista para os valores do companheirismo. Por outro lado, analisar as famílias portuguesas contemporâneas sob uma qualquer perspectiva dicotómica (que, em sentido lato, tenha como finalidade última distinguir o tradicional do moderno) revela-se algo insuficiente, tendo em conta a pluralidade de modelos normativos em coexistência.

No fundo, se algum traço pode ser caracterizador ou emblemático do panorama de normas face à família e à conjugalidade em Portugal será com certeza a grande diversidade de modelos que o compõem e, consequentemente, a sua não redução a tendências de carácter dominante - podendo este traço, em si mesmo, ser interpretado como decorrente da privatização dos afectos e da recusa da ingerência social e institucional sobre a vida a dois e familiar.