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Epilogando a incursão aos ambientes normativos e, em particular, aos ideários sexuais que circundam cada geração, parece-nos que a análise admite uma insistência na importância dos

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mecanismos de cristalização e alteração dos patrimónios valorativos ao longo das gerações. Desta forma e em traços latos, pudemos constatar como as normatividades geracionais acompanham as tendências de diferenciação ideológica conhecidas na nossa sociedade, reflectindo, na sua generalidade, uma passagem dos valores institucionalistas e conservadores para valores mais modernistas, libertários e individualistas (Pais, 1998).

Paralelamente, do afloramento dos ambientes normativos das diferentes gerações parece sair reforçada a ideia da sexualidade enquanto aspecto central – simultaneamente produto e produtor – de transformações sociais mais abrangentes. A inscrição das normas sexuais nos contextos sociais geracionais, tal como a procurámos fazer aqui, lança pistas que nos convidam ao aprofundamento da relação que se estabelece entre os contextos de pertença dos indivíduos e a agência individual – algo que noutros campos (como na família ou na conjugalidade) já tem vindo a merecer maior atenção por parte da sociologia, mas que, no que à sexualidade diz respeito, continua ainda a carecer de aprofundamento.

Em suma, neste capítulo, começámos por perceber as importantes transformações que marcam as últimas décadas da sociedade portuguesa ao nível da organização da produção, dos indicadores demográficos, das concepções de família e das relações de género, tendo tido, depois, a oportunidade de caracterizar os ambientes normativos que têm servido de cenário à construção da intimidade nas diferentes gerações. Desta forma, completa esta parte da análise, constatamos como a sexualidade expressa, com alguma evidência, a atenuação da regulação social sobre os comportamentos individuais, abrindo margem para o entendimento do lugar do actor (Charton, 2005). No próximo capítulo, teremos a oportunidade de explorar, com maior incisão, biografias e discursos na primeira pessoa.

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IV. SEXUALIDADE EM TRÊS GERAÇÕES: BIOGRAFIAS E DISCURSOS NA PRIMEIRA PESSOA

Este capítulo pretende ser um lugar, por excelência, de análise do material empírico recolhido. Aqui, propomo-nos assinalar e reflectir sobre mudanças e continuidades nas formas de viver e dar sentido à sexualidade, seguindo uma abordagem geracional guiada por algumas das dimensões de análise que importam a esta pesquisa.

Como já tivemos oportunidade de referir anteriormente (ver capítulo metodológico), em resultado da combinação de uma metodologia plural, neste capítulo serão mobilizados dados empíricos de naturezas distintas. Para além dos discursos recolhidos no contexto das entrevistas qualitativas, a análise que nos propomos fazer contará igualmente com a descrição de resultados provenientes da aplicação, a uma amostra representativa da população portuguesa, do questionário “Saúde e Sexualidade” (Ferreira e Cabral, 2010). Desta forma, apesar dos discursos recolhidos no âmbito da pesquisa intensiva constituírem o objecto central da nossa análise, sempre que possível e oportuno, a descrição será complementada por dados estatísticos capazes de reflectir, na macro escala, traços da paisagem sexual e íntima de um universo populacional mais alargado61

Em termos substantivos, até aqui temos vindo a reforçar a ideia de que as representações e práticas da vida sexual e afectiva constituem uma dimensão de relevo da mudança social das últimas décadas. Neste contexto, sugerimos que, associadas à configuração de novas orientações normativas, novas formas de viver a sexualidade e as relações íntimas se vão cristalizando, revelando como a mudança se processa não só do ponto de vista das representações mas também no domínio das biografias e das práticas dos sujeitos.

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Por outro lado, também no plano ideológico e político, o carácter transformacional da sexualidade parece irrefutável. Neste contexto, já verificámos estar perante um terreno marcado por lutas e reivindicações, que nos mostram como a democratização da intimidade, mais do que pressupor uma revisão conceptual abstracta, é o resultado de circunstâncias históricas concretas que propiciaram a autodeterminação dos indivíduos.

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Ainda sobre esta questão, importa recordar (ver capítulo metodológico) que não obstante a recolha dos dados ter sido feita segundo os critérios e os objectivos definidos em sede própria do projecto “Saúde e Sexualidade”, e, portanto, de forma alheia a esta tese, cada um dos dados aqui apresentados é resultado de um tratamento estatístico próprio, realizado de acordo com os objectivos desta pesquisa de doutoramento.

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Contudo, também é certo que nem só de mudanças e de fluidez se trata quando nos reportamos à sexualidade. Com efeito, é igualmente comum e admissível pensar que, na maioria sociedades, a sexualidade desempenha um papel importante na legitimação da ordem estabelecida e que as significações mobilizadas para evocar as experiências sexuais contribuem para reforçar diferenças e, em particular, as de género.

Assim, identificar mudanças e continuidades referentes às práticas e representações da sexualidade (e, em concreto, da sexualidade vivida no contexto das relações a dois) é, pois, o grande objectivo deste capítulo. Seguindo a lógica da sucessão geracional, vamos analisar discursos e dados estatísticos sobre dimensões particulares das biografias afectivas e sexuais de homens e mulheres portuguesas. Concretamente, a análise desenvolver-se-á em torno de dois domínios principais: Quadros de iniciação sexual (4.1) e Intimidade e vida a dois (4.2). A ideia de convocar estes dois grandes temas prende-se com o facto de eles poderem congregar, no seu interior, importantes dimensões das trajectórias e das experiências da vida íntima e sexual dos sujeitos. Desta forma, esta abordagem (mesmo quando incidindo sobre valores e representações, como os valores face à virgindade, as motivações, etc.) procurará centrar-se nos aspectos vivenciais das narrativas, isto é nas experiências vividas na primeira pessoa e nos sentidos que os actores atribuem a tais experiências. Para o efeito, a análise focar-se-á tanto nos momentos inaugurais dessas trajectórias como na construção, a mais longo prazo, da intimidade conjugal. Mais concretamente, sobre o tema da iniciação sexual, serão analisadas dimensões como o valor simbólico da virgindade (4.1.1), os momentos (idades) de entrada na sexualidade com parceiro (4.1.2), e ainda as motivações e os quadros relacionais subjacentes aos contextos da iniciação sexual dos indivíduos (4.1.3). Na segunda parte da análise serão, posteriormente, tratados temas como a escolha dos parceiros (4.2.1), o número de parceiros sexuais ao longo da vida (4.2.2) e a intimidade quotidiana e sexual na conjugalidade (4.2.3). No final, terminaremos o capítulo com umas breves notas conclusivas (4.3).