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O Duplo padrão de género: continuidades que resistem à mudança

Entre as mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, uma das que sem dúvida mais se destaca é a que afecta a condição da mulher na sociedade e na família. No capítulo sobre mudança social (capítulo 3) verificámos como determinados factores (como a difusão da contracepção, o aumento do nível de instrução feminina ou a participação massiva das mulheres no mercado de trabalho) propiciaram não só a transformação das relações entre géneros na família, mas uma revisão mais ampla do papel social das mulheres.

Documentadas estão também as mudanças no campo da vida íntima e sexual que traduzem a atenuação do gap entre atitudes e práticas femininas e masculinas (Kimmel, 2004). No capítulo 4, vimos, de resto, como de geração para geração as biografias afectivas e sexuais reflectem uma evolução no duplo padrão de género, sugerindo a aproximação progressiva entre as experiências de mulheres e homens. E também do ponto de vista das representações, verificámos como homens e mulheres tendem, ao longo da sucessão geracional, a aderir a discursos mais igualitários, fazendo contrastar a ordem tradicional de género das gerações mais velhas com a emergência de um padrão tendencialmente menos diferenciador das normas femininas e masculinas.

De uma maneira geral, a máxima de que as mulheres querem amor e os homens querem sexo deixou de ser efectiva (Giddens, 2001; Allen, 2003). Actualmente, como nos diz Giddens (2001), a experiência sexual tornou-se mais acessível e a identidade sexual constitui uma parte central da narrativa do self. Neste contexto, não só os homens mas também as mulheres depositam na sexualidade uma parte importante da sua autonomia e realização.

Todavia, se por um lado as aproximações são evidentes, relevante é também o facto de elas não serem unânimes, transversais a todos os contextos, ou definitivas, continuando a realidade a ser, consideravelmente, segregadora das prescrições e das práticas legítimas de homens e mulheres. Nas palavras de Kimmel (2004: 232): “The evidence of gender conversion does not mean that there are no differences between women and men in their sexual expression. It still means different things to be sexual, but the rules are not enforced with the ferocity and consistency that they were in the past”. E também, como nos sugere Bourdieu (1999), o facto de a dominação masculina já não se impor, em todos os contextos,

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com a evidência do óbvio está longe de significar a sua erradicação. Para o autor, os princípios da visão dominante – os da dominação masculina - continuam activos ainda que sejam incorporados “sob forma de esquemas de percepção e apreciação dificilmente acessíveis à consciência” (Bourdieu, 1999:82).95

Assim, na sua relação com a sexualidade, o género continua a constituir um forte princípio de organização da realidade (Kimmel, 2004), e, naturalmente, a persistência do duplo padrão assume-se como obstáculo ao ideal de sexualidade liberta de constrangimentos e discriminações.

Quando questionados acerca das mudanças ocorridas no campo da sexualidade, os entrevistados edificam um reconhecimento – generalizado e transversal às diferentes gerações – de que muita coisa se alterou em virtude da revisão dos papéis de género na sociedade. Com efeito, os discursos tendem a atribuir às mulheres o epicentro das transformações, sendo os homens entendidos como retardatários de tais mudanças, na linha do que nos sugerem autores como Giddens (2001). Neste sentido, as mudanças verificadas nas trajectórias das mulheres parecem, aos olhos dos entrevistados, ser mais abruptas e significativas sendo as verificadas na vida dos homens, uma consequência necessária de adaptação da masculinidade às novas regras96

“Acho que a mudança do papel do homem se deve à mudança do papel da mulher. Ou seja, o homem não muda por livre vontade, porque quer ir trabalhar e porque lhe apetece cozinhar, mas acho que isso se impõe por uma maior afirmação do papel da mulher.” (Inês, 24 anos, Pós-graduação, Psicóloga, Solteira, Lisboa)

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Na primeira geração, as opiniões oscilam entre a apologia dos modelos de género tradicionais e a resignação face às evidências da mudança. Desta forma, como norma geracional (da qual, de resto, já temos vindo a dar conta), enquanto a masculinidade continua a ser associada aos valores do trabalho e da autoridade na família, a mulher é remetida para o

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Em certa medida, o que anteriormente se referiu acerca das representações da reciprocidade no prazer sexual pode, em nossa opinião, ser ilustrativo destes mecanismos de “subtilização” da dominação.

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Nomeadamente das regras da conquista, de acordo com Giddens (2001). Afinal, se a conquista sexual antes se baseava nos pressupostos da retracção feminina e, por conseguinte, da desigualdade, a passagem para contextos de maior igualdade entre homens e mulheres vem tornar obsoletos esses esquemas, podendo gerar nos homens, segundo o autor, a insegurança que está na base da compulsividade sexual.

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domínio da maternidade e da vida doméstica, sendo a honestidade e a dedicação afectiva ao outro consideradas as suas maiores virtudes.

“ [O mais importante para] um homem é não deixar andar a família abandalhada, não deixar os filhos andar para aí a estender a mão à caridade. Deve tentar evitar essas coisas. (…) [A mulher] deve ser honesta, principalmente. É a primeira coisa que eu acho que uma mulher deve ser. Honesta. (…) Ser honesta ao marido, não é? Tratar da vida de casa, que uma mulher, se tratar da vida de casa, já faz muito, tratar dos filhos quem tem filhos…” (Fernando, 85 anos, Ensino Primário, Proprietário de Terras, Casado, Ribeira de Pena)

Assim, não raras vezes, o contraste entre tais arquétipos e a realidade actual, mais igualitária e livre, resulta em muitas reservas. E mais ainda quando nos reportamos concretamente ao tema da sexualidade. Mesmo aquelas mulheres que testemunham (e lamentam) na primeira pessoa as desigualdades do passado, que criticam a falta de autonomia e a subserviência feminina aos desígnios masculinos, não deixam de erguer desconfianças face ao que consideram ser o actual “excesso de liberdades sexuais”, condenando com particular veemência as condutas femininas mais liberais.

“Eu acho que [as coisas] mudaram para melhor mas há coisas que exageraram um pouco (…). Acho que a virtude está no meio-termo e que há raparigas desta geração que exageram um bocado: muitos namorados, bebem, fumam demasiado, perdem tempo com coisas supérfluas que não têm interesse nenhum em vez de olharem para outras coisas com mais profundidade (…). [Acho negativo] o abuso da liberdade sem respeito às vezes pelos outros e por elas próprias.” (Amélia, 67 anos, Ensino Primário, Costureira, Separada, Loures)

“ [Para uma mulher é importante] ter juízo. Pertence mais a elas ter juízo do que a eles…” (Francisca, 83 anos, Sem Escolaridade, Doméstica, Casada, Celorico de Basto)

Na segunda geração, a celebração das conquistas femininas está na ordem do dia e, como temos visto, os discursos (tanto de homens como de mulheres) vão sendo investidos pelos valores da igualdade de género. Claro está que, tratando-se de uma geração transitória e, por isso, muito plural em termos de perfis sociais e normativos, as representações da mudança nesta geração não se pautam exactamente pela unisonoridade de perspectivas. Ainda assim, no que concerne às mudanças face à sexualidade, algumas tendências podem ser identificadas: se o aumento da informação, a educação sexual e o derrubamento de certos tabus merecem, nesta geração de entrevistados, uma aprovação mais ou menos generalizada, outras transformações continuam a ser reiteradamente encaradas com desconfiança, criticando-se

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sobretudo as questões da precocidade sexual dos jovens e a falta de compromisso e respeito entre homens e mulheres ou rapazes e raparigas. Para além disso, não obstante as posturas declaradamente mais liberais e permissivas que vão conquistando território nesta geração, verificamos que os pressupostos da divisão fundamental entre homens e mulheres continuam a ser mobilizados na avaliação das condutas, incorrendo-se frequentemente numa crítica à emancipação sexual feminina, por meio da condenação (mais ou menos sub-reptícia) de algumas condutas.

“ Hoje em dia, as raparigas acho que são um bocado irresponsáveis, até do tempo das minhas filhas para agora as coisas mudaram muito, até de geração em geração. (…) Até aqui, nesta terreola onde eu vivo que é uma terra pequena, miúdas que eu acho que até têm muita informação, que só não tem quem não quer, e engravidam assim com 15, 16 anos, acho que é uma irresponsabilidade. Um filho não é qualquer coisa, não é? E além disso, outras tantas coisas que (…) eu vejo aí em muitas miúdas, embora depois lá haja uma ou outra que seja mais certinha.” (Fátima, 52 anos, Ensino Primário, Técnica de oficina gráfica, Viúva, Loures)

Mas porque o que aqui pretendemos é questionar os limites dos discursos emergentes mais liberais, será sobre a geração mais nova onde, porventura, mais sentido fará incidir esta reflexão. De facto, quando analisamos os discursos juvenis sobre mudanças nas relações de género e na sexualidade, damo-nos conta – à semelhança do que já tem sido dito - da prevalência de posturas optimistas, que se consubstanciam na valorização de fenómenos tão diversos como a igualdade de género na vivência da sexualidade, a multiplicação de meios para a construção das experiências, o maior acesso a informação sobre sexualidade, a atenuação do controle (social, familiar…) exercido sobre as práticas de rapazes e raparigas, a pluralização de scrips da sexualidade, etc. Todavia, apesar da vastidão dos princípios de liberalização enumerados, quando confrontados com as práticas reais dos sujeitos ou com os seus julgamentos face às condutas concretas de outrem, a construção de um ambiente social efectivamente livre e igualitário parece mais ser um recurso estilístico que uma conquista real e inabalável nesta geração. Neste quadro, os discursos da geração mais nova de entrevistados revelam-se ainda muito ambivalentes, oscilando, no que ao género diz respeito, entre a celebração da igualdade de oportunidades e a reedição (normalmente, pouco consciente) do duplo padrão de género.

Com efeito, uma das tensões normativas que adiam a superação do duplo de padrão tem justamente a ver com o facto de, na sociedade ocidental contemporânea, a informação sobre sexualidade feminina e a diversificação das experiências das mulheres não aniquilarem dilemas relacionados com a respeitabilidade social e a decência moral das mulheres. Exemplo

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disso mesmo, na nossa pesquisa verifica-se como, ao longo da sucessão geracional, a autonomia sexual das mulheres vai conhecendo muitos impasses, constituindo um tema periclitante mesmo entre os mais jovens.

Apesar dos discursos amplamente difundidos do prazer sexual feminino e da aproximação dos comportamentos das mulheres aos padrões de diversidade masculinos (mais parceiros e maior actividade sexual), para vários autores, a dupla moral que qualifica as mulheres de “sérias/respeitadas” ou “fáceis” não caiu completamente em desuso, continuando a assistir-se à reprodução de esquemas associados a uma heterossexualidade compulsória (Rich, 1980), isto é, de uma concepção institucionalizada da sexualidade onde a mulher surge como dependente da orientação e da iniciativa masculinas.

Entre os discursos recolhidos nas entrevistas, verificamos que tal dicotomia é muitas vezes apontada pelos indivíduos como injusta e obsoleta, traduzindo uma desigualdade do passado. No entanto, continuamo-nos a deparar com um entendimento moral que associa a sexualidade feminina às noções de cautela e responsabilidade sob pena dos comportamentos serem julgados de provocatórios ou pouco adequados.

“Elas são muito mais promíscuas (…). São muito mais para a ‘frentex’. [Aos 13 anos] já têm relações sexuais e (…) eu vejo nas amigas da minha irmã, elas são muito mais espevitadas. Muito mais. E eu estou sempre em cima dela, sempre a chateá-la. Tem que se estar.” (Rita, 18 anos, Estudante de curso técnico-profissional, Solteira, Sintra).

No fundo, neste julgamento hegemónico da feminilidade, constatamos que a agência sexual feminina é muitas vezes entendida como um derivado negativo das liberdades sexuais conquistadas (Fonseca e Santos, 2009), sendo a ideia de que “hoje em dia as raparigas são piores do que os rapazes” um juízo comum entre os nossos entrevistados, especialmente (e paradoxalmente) entre mulheres e raparigas.

Por outro lado, refiramos que, para além de este escrutínio operar na produção de avaliação negativas sobre as condutas de outrem (de outras raparigas), também no que toca à auto-avaliação, os testemunhos das entrevistadas são pródigos em defender a sua própria conduta, reclamando para si um “certificado” de respeitabilidade sexual. No entanto, na maioria das vezes, esta salvaguarda assume uma forma mais implícita que explícita, integrando-se numa postura de suposta tolerância face ao outro.

“Não tenho nada a ver com a vida das outras pessoas, eu não o fazia, mas…” (Carolina, 18 anos, Estudante Universitária, com namorado, Loures)

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“Cada um sabe de si, não é? Eu não tenho feitio para isso, mas tenho amigas minhas que têm…” (Susana, 29anos, Curso técnico-profissional, Empregada administrativa, União de facto, Lisboa)

Chegados aqui, damo-nos conta que apesar da mudança nas relações de género ser indesmentível e ser até valorizada pela generalidade dos entrevistados das diferentes gerações, a divisão binária da sociedade em homens e mulheres continua muito actual e constitui um refúgio identitário importante, mesmo entre os mais jovens. Já vimos como, de facto, a reconstituição biográfica continua a traduzir diferenças nas trajectórias femininas e masculinas e como, do ponto de vista dos valores, também se vão edificando, por separado, os bastiões da feminilidade e da masculinidade.

Tal como Bozon (2002) refere, em matéria de sexualidade, homens e mulheres continuam a ser entendidos como seres opostos sendo, muitas vezes, esta oposição justificada em termos das diferenças de natureza psicológica de cada género. Em termos gerais, os homens são pensados como agentes “com desejo sexual” (desirants) e independentes e as mulheres são entendidas como objectos desse desejo, sendo a sua agência sexual pouco valorizada simbolicamente (como acabamos de ver).

Assim, as representações de género ou os discursos sobre as diferenças, produzidos no contexto das entrevistas, podem ser bastante elucidativos do quão actual e operante se mantém o duplo padrão. Com efeito, verificamos que se entre se mais jovens começam a ganhar visibilidade os apelos retóricos à fluidez das identidades de género (“Nem todos gostamos do mesmo e nem todos esperamos o mesmo dos outros, por isso as coisas não são assim. Não gosto nada que apregoe que homens são todos iguais ou que as mulheres são todas iguais”), por norma, a generalidade das pessoas assume as categorias de género como constitutivas da razão simbólica (Heilborn, 2002), fazendo recair sobre elas uma parte importante da sua consciência identitária e dos pressupostos das suas relações.

Para Jackson e Scott (2004), uma das antinomias que melhor caracteriza a dubiedade normativa contemporânea é a que se refere às expectativas que os indivíduos depositam nas relações de género. Segundo as autoras, a relação entre homens e mulheres quer-se de igualdade e, simultaneamente, de diferença – um paradoxo que resulta da tensão entre os ideais igualitários e a ênfase nas diferenças “naturais” entre sexos.

De facto, a análise dos discursos dos entrevistados – e em especial das nossas entrevistadas mais jovens – parece convalidar uma “situação de dualidade normativa entre valores e atitudes emergentes de tendência igualitária e as disposições incorporadas e materializadas em práticas quotidianas que tendem a reproduzir as distinções sociais de

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género.” (Coelho, 2008:28). No entanto, afirmar a coexistência entre os significados modernos e os arquétipos tradicionais de género na sociedade não significa apenas assumir que umas pessoas (gerações e grupos sociais) aderem a normas mais permissivas, enquanto outras continuam a protagonizar atitudes mais conservadoras. Trata-se antes de perceber que a pluralidade que ressalta no retrato social pode habitar cada um dos seus indivíduos, relembrando a natureza híbrida das identidades pessoais modernas num mundo repleto de múltiplos e contraditórios significados (Weeks, 1995).

É desta forma que constatamos que mesmo aqueles que mais se involucram na denuncia das desigualdades de género e que adoptam condutas mais liberais acabam, muitas vezes, por também protagonizar a acomodação a um essencialismo renovado e, consequentemente, ao reforço do esquema binário ordenado pela natureza. É isto que vemos acontecer, com alguma clareza, em casos como o de Raquel ou de Sara, por sinal, duas jovens cujas trajectórias e reflexividade discursiva as inserem entre os perfis mais emancipatórios e experimentalistas da nossa amostra, mas que, não obstante, também fazem afirmações como as seguintes:

“As mulheres são mais sentimentalistas e dão mais importância a tudo (…) [porque] as mulheres é que geram os filhos”; “Os homens têm muito mais, não é desejo que eu quero dizer, mas talvez impulso”; “Os homens são muito mais carnais, têm aquelas necessidades que têm que ser mesmo satisfeitas, as mulheres não, são mais emocionais”; “Elas é que têm a criança na barriga [e isso] tem tudo a ver”; “Eles são (…) muito parecidos entre eles, mas isso em conversas com raparigas nota-se que os homens são todos muito parecidos e que nós também somos todas muito parecidas.” (Raquel, 27 anos, Ensino Secundário, Assistente de Produção, com namorado, Almada)

“Acho que os homens têm muita razão quando dizem que as mulheres complicam, acho que eles têm razão. Têm muita razão. Nós somos umas chatas, somos muito chatinhas. Eles também são uns totózinhos às vezes. (…) É verdade que homens e mulheres pensam de forma diferente, ou pelo menos acho que os homens e as mulheres pensam as coisas de forma diferente e vêem as coisas de forma diferente.” (Sara, 28 anos, Pós-graduação, Assessora de Imprensa, Solteira, Lisboa)

Assim, apesar de aqueles que protagonizam a emergência da ética sexual moderna insistirem numa retórica de condenação do duplo padrão, a verdade é que muitas vezes as suas trajectórias bem como os seus discursos sobre experiências vividas derivam num reforço involuntário e até pouco consciente da lógica binária que diferencia a masculinidade da feminilidade. Concretamente, verificamos que a emancipação sexual feminina (premissa fundamental de um ideário libertário da sexualidade), sendo sobejamente aclamada pelos indivíduos e em especial pelos mais jovens, acaba por significar uma emancipação regrada

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dentro dos limites postulados pela reprodução das identidades de género, ou seja, pela ordem das suas desigualdades (Bloss e Frickey, 1994).