• Nenhum resultado encontrado

As décadas de 1960 e 1970, comummente definidas como apoteose da modernidade (Simon, 1996), representam a culminação de conquistas importantes, nomeadamente de acesso ao prazer sexual. Cada vez mais flexíveis e adaptativas, as orientações normativas acompanham (ou fundamentam) o processo de individualização dos comportamentos e mesmo as expectativas quanto ao prazer na sexualidade parecem individualizar-se (Bozon, 2002).

Questionar os ideários do prazer é, antes de mais, recusar uma visão naturalista do mesmo. Trata-se de salientar os significados culturais inscritos na satisfação e na realização sexuais e assumir que o prazer, longe de constituir um efeito simples e natural, se trata de um processo complexo, resultante da combinação de diferentes níveis de scripts (Simon, 1996, Gagnon e Simon (2009 [1973]). Tendo por base um argumento de pendor claramente construtivista, o objectivo desta análise consiste, em suma, em fazer notar a persistência de constrangimentos no acesso e no júbilo público do prazer sexual.

Para o efeito, a análise procurará endereçar-se a dois níveis de discursos sobre prazer: por um lado, o prazer enquanto súmula abstracta de realização pessoal, obtida através da sexualidade ou da actividade sexual, numa perspectiva longitudinal; e, por outro, o prazer enquanto gratificação mais imediata, derivada e integrada na sequência da interacção sexual. Em ambos os níveis, procuraremos perceber a interferência das categorias de pertença como diferenciadores de discursos, instigando uma crítica aos ideais (mais optimistas) que postulam a liberalização massiva do prazer sexual na contemporaneidade.

138

Para começar, vale a pena perceber até que ponto o experimentalismo sexual se constitui como meio legítimo para a edificação dos discursos emancipatórios da realização pessoal. Não obstante a ideia de que a sexualidade representa um palco importante da agência (pós)moderna, de facto vale a pena perceber que tal fenómeno não ocorre de forma transversal aos diferentes contextos e perfis sociais, conhecendo, na sua real expressão, diversos impasses e interdições.

Com efeito, os dados empíricos - pelo menos, os referentes a contextos caracterizados pela prevalência de identidades e estilos de vida heteronormativos ou pouco disruptivos, como os aqui estudados - vêm revelar que o acesso ao prazer sexual e, em especial, ao seu regozijo continua a ser valorizado mediante condições cuidadosamente reguladas.

Primeiro, e para contribuir com exemplos concretos, verificamos que a importância atribuída ao prazer sexual surge amplamente legitimada quando integrada na valorização do sentimento amoroso e do projecto conjugal. Fora desses termos, ela não deixa de suscitar resistências e desconfianças. Mesmo os homens das gerações mais velhas, cujas trajectórias afectivas e sexuais denunciam (como vimos) uma separação exímia entre a esfera da experiência e a dos afectos, tendem a adoptar um discurso desvirtuador do prazer sexual obtido por meio de relações ocasionais ou fora dos relacionamentos afectivos, retirando-lhe legitimidade e importância, ou considerando-o moralmente condenável.

“Eu tenho de achar mal, mas também não sou ingénuo.” (Filipe, 77 anos, Licenciatura, Engenheiro e Administrador de Empresas reformado, Casado, Lisboa )

“Eu já estive, como lhe disse, meia dúzia, uma dúzia de vezes [em relações sexuais sem amor]… não tem sentido nenhum.” (Victor, 73 anos, Curso Complementar do Comércio, Gerente Comercial, Casado, Sintra)

Também a geração mais nova de entrevistados - depositária, por princípio, da nova ética de libertação do prazer - não supera totalmente a desconfiança face a condutas declaradamente hedonistas e experimentalistas, continuando a lançar suspeitas sobre o valor do prazer sexual despojado de investimento afectivo. Desta forma, se é certo que as normas se flexibilizam enormemente com a mudança geracional, também há que admitir que elas não são tão libertadoras como para se promover massivamente uma representação do prazer sexual livre das amarras dos afectos e do projecto relacional.

“Acho que sou uma pessoa muito emotiva. E acho que quando uma pessoa é muito emotiva, não vê lógica na coisa. Qual é a lógica? Não vale a pena, é um bocado assim! Mas conheço imensa gente que o faz e… pronto, ‘vocês é que

139

sabem de vocês’”. (Susana, 29 anos, Curso técnico-profissional, Empregada Administrativa, União de Facto, Lisboa)

Provavelmente como reverso da mesma medalha, também as condutas que reflectem um certo “nomadismo sexual” merecem, por parte da generalidade dos entrevistados, a sua desaprovação. Uma vez mais, e em certa medida, esta inclinação normativa vem sugerir que, só em condições particulares, a satisfação e realização sexuais são amplamente aceites e valorizadas nos discursos. Concretamente, num exigente equilíbrio entre contenção e diversidade de experiências91

“Se calhar questionava até que ponto essa pessoa, mais tarde ou mais cedo, não se iria sentir insatisfeita, pronto. (…). Não tenho nada contra porque cada um satisfaz-se à sua maneira, mas questiono-me, de alguma maneira, até que ponto uma pessoa pode passar a vida inteira assim [a trocar de parceiro], e se não vai ficar muito triste ao final de algum tempo. Só nesse sentido.” (Luísa, 50 anos, Doutoramento, Antropóloga, União de Facto, Lisboa)

, o prazer sexual nunca deve perder o seu carácter de “excepcionalidade”, sob pena de se vulgarizar e perder virtudes.

E uma vez mais, tais “condicionalismos normativos” não são exclusivos de gerações portadoras de uma moral tradicional ou daquelas onde os valores românticos e conjugalistas se intensificam, podendo refrear as aspirações individualistas. Na verdade, eles são igualmente reproduzidos por rapazes e raparigas da geração mais nova, coexistindo pacificamente com ideais mais progressistas face à sexualidade.

“Acho que isso não é bom, principalmente para o estado psicológico da pessoa. Eu falo por mim, não era saudável eu ter vários parceiros sexuais, isso só demonstrava que alguma coisa estava mal, que estava á procura de alguma coisa em sítios que não deveria estar, claro que sexo é muito bom... (…) Desde que estas relações sejam duradouras, 2 anos, 3 anos, não vejo problema nenhum agora se forem encontros casuais acho que isso só revela que existe algum problema” (Inês, 24 anos, Pós-graduação, Psicóloga, Solteira, Lisboa) No que concerne a representações do prazer (físico) auferido da actividade sexual, foi objectivo da pesquisa empírica qualitativa privilegiar a produção de discursos comparativos entre a satisfação masculina e a feminina. E, de facto, se o desejo sexual é uma prática regulada e reguladora das relações de género (Weeks e Holand, 1996), o mesmo se poderá dizer do prazer na sexualidade. Já sabemos que, numa espécie de confirmação da

91

Um equilíbrio particularmente difícil nos dias de hoje, se pensarmos que a “não-experiência” também não parece ser opção valorizada e a fronteira entre “experiência suficiente” e “demasiada experiência” pode ser bastante ténue.

140

masculinidade hegemónica (Connell, 1987), os discursos masculinos sobre a sexualidade tendem reforçar as questões do prazer e da experiência, e que, por seu lado, os discursos das mulheres procuram, mais frequentemente, combinar prazer e sentimento amoroso dando sentido a uma feminilidade enfatizada (Connell, 1987) ou a uma identidade social construída em torno dos afectos (Pais, 1998).

Assim, também aqui, as representações (expressas tanto por homens como por mulheres) sobre a gratificação sexual masculina tendem a desvinculá-la do projecto afectivo, reforçando a ideia de prazer enquanto derivado da experiência e da performance individual (“Os homens conseguem ter uma relação mais centrada no que é físico. Os homens são mais físicos”). Por seu lado, o prazer físico feminino, tal como o próprio desejo, tende a ser representado de forma mais implícita sendo, inclusivamente, caracterizado de enigmático, quase místico. Neste contexto, a integração da satisfação sexual feminina na narrativa dos afectos volta a constituir uma característica transversal a todos os discursos geracionais, sendo mencionada tanto por homens como por mulheres.

Curioso é notar que, ao longo da sucessão geracional, os discursos sobre o prazer se vão especializando, desvendando, pouco a pouco, a complexidade e a individualização associadas a este tema. Assim, na primeira geração, constatamos que os discursos são menos abundantes em considerações e diferenciações: basicamente, os homens tendem a desvalorizar as diferenças entre a sua satisfação sexual e a das suas parceiras, enquanto, do lado feminino, a norma parece atribuir uma ligeira vantagem aos homens, ainda que as opiniões oscilem entre um ideal de igualdade no prazer e a suspeita de que as relações possam ser mais satisfatórias para os parceiros.

“O prazer é igual, deve ser igual.” (Fernando, 85 anos, Ensino Primário, Proprietário de terras, Casado, Ribeira de Pena)

“Os homens têm mais prazer do que as mulheres. Outras vezes os homens têm [prazer] e as mulheres não.” (Alice, 66 anos, Sem Escolaridade, Doméstica, Casada, Loures)

“Ah! O homem tem mais prazer que a mulher (…). Comigo dava-se isso…não sei porquê mas era assim.” (Odete, 84 anos, Sem Escolaridade, Costureira reformada, Viúva, Lisboa)

Na segunda geração, os discursos – incumbidos agora de uma retórica de igualdade – tendem a apontar para uma aproximação em termos de “direito ao prazer” ou de legitimidade no seu acesso. Tal como para os homens, para as mulheres, a actividade sexual quer-se, por princípio, satisfatória e prazenteira.

141

“Hoje em dia já não há tanto a ideia como havia antigamente de que o homem é que podia ter prazer. Eu acho que hoje em dia a mulher também tem…Hoje em dia com os meios que as mulheres têm ao dispor, também estão mais despertas para (…) o papel de poderem desfrutar mais do sexo e não ser apenas o homem. Como se calhar, aqui há uns anos atrás, se poderia pensar que a mulher tinha um papel mais passivo do que os homens.” (Elisa, 54 anos, Pós-graduação, Auditora Bancária, Casada, Lisboa)

Não obstante, os discursos desta geração não deixam de reforçar diferenças, considerando-se que, ainda que o prazer físico feminino e masculino se equivalham, o desejo, a gratificação mais subjectiva ou a natureza dessa gratificação continuam a distanciar-se, complexificando-se substancialmente no feminino.

“Se me está a falar em termos de orgasmo, acho que não há diferença entre o prazer do homem e o da mulher. Agora, na relação que depois isso vai ter com a parte afectiva acho que sim. Eu acho que a mulher leva o sexo muito a sério.” (Manuel, 56 anos, Licenciatura, Professor, Casado, Lisboa)

“Nas mulheres acho que o prazer é sempre mais afectivo. Acho que o processo sexual começa até, se calhar, com um bocadinho mais de afectividade necessária para as mulheres do que para os homens.” (Miguel, 46 anos, Licenciatura, Director Jurídico de uma empresa, Casado, Lisboa)

É, finalmente, na geração mais nova que a especialização dos discursos do prazer parece atingir o seu auge. O consenso pela igualdade entre o prazer físico masculino e feminino reforça-se ainda mais, mas, ao mesmo tempo, multiplicam-se as posturas no que toca a diferenças de género em termos de desejo sexual, de entrega emocional, bem como das formas (desempenhos e performances) para alcançar o prazer físico. Sem dúvida, os discursos juvenis revelam-se mais abundantes e individualizados, chegando, em alguns casos, a sugerir a dissociação entre as lógicas inscritas no género e o tema do prazer - este último considerado, acima de tudo, uma experiência individual e irrepetível, variável de pessoa para pessoa, e, por isso, independentemente do facto de se ser homem ou mulher92

“Acho que é igual, acho que o prazer é igual. O desejo não sei, mas o prazer é igual” (Raquel, 25 anos, Ensino Secundário, Assistente de Produção, com namorado, Almada)

.

“É diferente mas pode ser igual. A questão é que os meios para atingir o clímax podem ser diferentes, mas o clímax pode ser tão intenso no homem como na mulher. Agora a maneira de o atingir pode ser mais prolongado na mulher, pode ser mais difícil de atingir na mulher, e nos homens se calhar é

92

Uma postura que podemos considerar mais próxima do ideal moderno (libertário e individualizado) do prazer.

142

uma coisa mais momentânea, mais fácil, mais palpável.” (Inês, 24 anos, Pós- graduação, Psicóloga, Solteira, Lisboa)

“Para já, na mulher, [o prazer] tem de ser muito mais trabalhado, é uma coisa muito mais elaborada, tem que se dar ali muitas voltinhas. E eles são muito mais imediatos, então tem que haver ali um encontro para que consigam mais ou menos acompanhar-se um ao outro. Quanto à intensidade [do prazer], gostava de ser homem para sentir [o que eles sentem], mas não faço ideia [se é diferente].” (Marta, 25 anos, Ensino Secundário, Assistente de Bordo, Casada, Lisboa)

“Acho que varia de pessoa para pessoa, acho que não tem mesmo nada a ver o ser homem ou mulher, varia de pessoa para pessoa.” (João, 23 anos, Estudante Universitário, com namorada, Lisboa)

Na pesquisa extensiva, o prazer nas relações sexuais foi também um tema investigado, e os dados obtidos vêm, uma vez mais, contribuir para aferir diferenças significativas entre homens e mulheres. Desta vez, no lugar de questionar valores e representações sobre o prazer, pedia-se deliberadamente aos inquiridos que, de acordo com a sua experiência pessoal, avaliassem, com base numa escala de frequência93

Entre as respostas masculinas, verificamos que a opção “Tenho sempre prazer nas relações sexuais” é claramente maioritária em todos os grupos etários em análise. De resto, o valor mais baixo verificado nesta opção corresponde ao do grupo de homens com idades compreendidas entre os 60 e os 65 anos, e, ainda assim, contabiliza 55,4% do total de respostas.

, a sua satisfação sexual.

94

No caso das mulheres, a opção “Na maior parte das vezes tenho prazer” é a mais respondida. Embora esta escolha continue a sugerir uma distribuição de respostas com E embora possamos associar o avance da idade dos inquiridos a uma distribuição maior das respostas pelas várias opções, constatamos que aquelas que ilustram os cenários mais pessimistas (“algumas vezes tenho prazer”, “poucas vezes tenho prazer” e “nunca tenho prazer”) permanecem sempre com proporções de respostas reduzidas, reforçando-se, desta forma, a ideia de gratificação sexual como prevalecente entre os homens.

93

Tendo por referência a seguinte escala: “Tenho sempre prazer”; “Na maior parte das vezes tenho prazer”; “Algumas vezes tenho prazer”; “Poucas vezes tenho prazer”; “Nunca tenho prazer”.

94

Apesar do valor mais baixo verificado ser relativo ao grupo etário mais velho, na verdade, não podemos afirmar que, no caso dos homens, o prazer sexual evolua de forma linear e inversamente proporcional à idade dos inquiridos. Na verdade, e para exemplificar, os homens com idades compreendidas entre os 40 e os 49 anos apresentam uma percentagem maior (71,9%) de respostas na opção “Tenho sempre prazer”, que o grupo de 18 a 29 anos (64,6%) – o que, em certa medida, pode estar relacionado com outra questão já abordada no capítulo anterior: a vulnerabilidade das fases iniciais das carreiras sexuais dos indivíduos.

143

tendência optimista face à frequência do prazer, ela é já reveladora de alguma desvantagem por comparação às respostas masculinas. Por outro lado, no caso das mulheres, a associação entre o avance da idade e o declínio da satisfação sexual parece ser mais nítida e efectiva. Se, no grupo dos homens, as proporções de respostas que sugeriam a infrequência ou ausência de prazer permaneciam sempre baixas, no caso das mulheres, elas vão conhecendo aumentos significativos nos grupos etários mais avançados. Concretamente, se somarmos as percentagens registadas nas opções (menos optimistas) de “algumas vezes tenho prazer”, “poucas vezes tenho prazer” e “nunca tenho prazer”, verificamos que elas vão crescendo significativamente, representando 9,9% das respostas femininas no grupo etário de 18-29 anos, 21,4% no de 40-49 anos, 43,2% entre as mulheres de 50 a 59 anos e, atingindo o seu valor máximo de 55,4% das respostas, entre as inquiridas com idades compreendidas entre 60 e 65 anos. Assim, na medida em que são as mulheres quem mais expressa o declínio da satisfação sexual com a passagem do tempo, a análise dos dados extensivos permite não só falar de uma interferência da variável da idade no acesso ao prazer sexual, como vem ainda mostrar que o género, uma vez mais, não sai incólume desta afectação.

Outro tema que nos ajuda a pensar os limites do acesso ao prazer é o da sua reciprocidade no contexto das relações sexuais. E, também aqui, como se verá, as questões de género surgem como um diferenciador por excelência das representações dos sujeitos. É certo que sexualidade constitui uma dimensão da vida social, e que, neste sentido, os discursos produzidos a seu respeito vêm refletir normas e valores culturais mais amplos. É neste contexto que Braun et al. (2003) entendem a valorização do princípio da reciprocidade e é sobre ele que se propõem a reflectir criticamente, chamando a atenção para o facto de os discursos sobre sexo serem uma importante janela de acesso às formas como os imperativos culturais podem ser subliminarmente sustentados ou interrompidos.

De facto, como referem estes autores, na relação sexual (e em especial na heterossexual), a reciprocidade tende a adquirir, simbolicamente, um valor muito positivo, evocando esquemas que se opõem aos de controlo, dominação e subordinação entre parceiros. Desta forma, representando um processo de erotização da igualdade de poder e do benefício mútuo na relação (Braun et al., 2003), a reciprocidade integra com distinção o ideário moderno de direito ao prazer.

Também os dados empíricos parecem, de resto, confirmar a centralidade da reciprocidade (e o problema que supõe a sua ausência) na representação das relações (hetero)sexuais. Neste contexto, os discursos são pautados por descrições de dar e receber

144

prazer (“two people giving and receiving pleasure” (Braun et al., 2003:244)), sendo esta mutualidade um ideal preconizado pelos sujeitos e uma garantia da qualidade das relações.

“Há homens que só estão preocupados é em ter prazer. A mulher também quer dar. Há homens que é o contrário. Mas acho que a maior parte dos casais tenta que ambos tenham prazer.” (Carolina, 18 anos, Estudante Universitária, com namorado, Loures)

Não obstante, no lugar de entenderem os discursos da reciprocidade como um inegável benefício para a relação e para os sujeitos, alguns autores têm procurado mostrar que a mutualidade não nega, por si só, a assimetria das relações, tratando-se de uma igualdade ilusória e de uma retórica que merece ser questionada. Para começar, ao recair na visão de dar e receber prazer, a reciprocidade não consegue demitir o princípio gerador da desigualdade. Para além disso, consubstanciando-se o prazer sexual na resposta orgástica, reforçam-se diferenças simbólicas tradicionais entre o feminino e o masculino, as quais pouca afinidade terão com as visões mais libertárias de direito ao prazer.

De facto, segundo Braun et al. (2003), quando representada a sequência de eventos que compõem a actividade sexual, o orgasmo feminino tende a ser pensado não só como uma garantia da reciprocidade mas também como um resultado da competência sexual (“sexpertise”) masculina. Por seu lado, o orgasmo masculino tende a determinar o fim dessa sequência sexual, sendo entendido como um derivado linear da própria relação.

No fundo, o que os autores sugerem é que o imperativo da reciprocidade pode actuar como um constrangimento e significar, inclusivamente, o recuo da agência sexual feminina: “It is ironic (…) that the ‘enlightened’ male discourse, in which men take some responsibility for their partner’s pleasure, is yet another example of men abrogating power to themselves, as they take away women’s ability to be an independent sexual agent” (Gilfoyle et al., 1992 citado por Braun et al., 2003:251). Para além disso, o discurso de “dar e receber prazer” parece ainda incutir uma certa obrigatoriedade nas relações, criando constrangimentos face ao medo de falhar, de não ter ou não dar prazer. Sendo que neste vaivém entre o direito ao prazer e a sua obrigatoriedade, a reciprocidade parece estar longe de constituir, por si só, uma libertação.

É certo que a adesão a discursos igualitários reflecte uma mudança social muito significativa à qual ninguém pode estar indiferente. No entanto, também sabemos que os significados sexuais estão longe de serem unitários e lineares, pelo que é necessário adoptar um sentido crítico também na análise de um discurso tão poderoso e consensual como é o da reciprocidade do prazer. Só desta forma, podemos perceber como a ordem tradicional vai

145

sendo dissimuladamente reeditada e, assim, desvendar a obrigatoriedade e a desigualdade camufladas na libertação.