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A família nos novos modelos de assistência em saúde mental: desafios e perspectivas

Qual a participação da família em todo esse processo de construção de reformas na saúde mental e proposições de reorientação de modelo assistencial? Parece que, contemporaneamente ao tempo de Reforma Psiquiátrica, o tema família e o cuidado com a pessoa em sofrimento psíquico assumem lugar de destaque, posto que se constituem grande desafio para os atores sociais envolvidos na questão como os familiares, os próprios usuários, os operadores da saúde mental e as instituições de saúde que se pretendem substitutivas ao modelo asilar, hospitalocêntrico, uma vez que põe em discussão o grande desafio do cuidar em liberdade.

Para Melman21, a desospitalização e o movimento de crítica e reforma na Psiquiatria, configuraram uma nova realidade na qual um número crescente de pessoas passou a ser assistido em serviços extra hospitalares e, como consequência, novos elementos foram introduzidos no campo de negociações entre famílias e o campo da saúde mental, obrigando as partes implicadas a rediscutirem as bases de uma nova relação.

A elaboração de grupos de discussão e informação, de grupos psicoterapêuticos voltados para a família foi um dos passos na direção de uma maior interação do serviço com a instituição familiar.

De acordo com Heller22, é no cotidiano, na vida concreta de todo homem, que se realizam muitas das atividades relacionadas ao provimento de cuidado. Este cuidado materializa-se por meio de atividades rotineiras que permitem a perpetuação da vida, possibilitando sua recriação, transformação. O cuidado com uma pessoa em sofrimento psíquico, segundo o autor, exige um trabalho complexo que se constrói no ensaio e erro da experiência cotidiana. Nessa construção, os familiares sofrem e aprendem, muitas vezes sem o suporte necessário, sendo exigido dos mesmos um saber e uma prática competentes sobre a

21 MELMAN, J. Família e doença mental: repensando a relação entre profissionais de saúde e familiares. São

Paulo, Escrituras Editora, 2008.

matéria que, na maioria dos casos, eles não dominam, mas que o internamento, antes, respondia às demandas de cuidado total.

Vasconcelos23 pontua que o atual processo de Reforma Psiquiátrica apresenta muitos

paradoxos e desafios. A exemplo, os novos serviços de saúde mental ainda não conseguiram desenvolver a sensibilidade necessária, ou mesmo implementar o apoio efetivo e amplo demandado pelas famílias dos usuários frente ao provimento do cuidado cotidiano com a doença mental, centralizando todo o discurso no problema do internamento e das práticas asilares, perdendo de vista a complexidade da questão.

Nesse ponto, cabe destacar que a família muitas vezes é culpabilizada, pelos serviços de saúde mental, por não estar prestando a atenção devida ao doente mental como, por exemplo, administrar corretamente a medicação prescrita, conduzi-lo à unidade de saúde diariamente, supervisionar a higiene do paciente, etc. Os familiares nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a exemplo, são convocados a participar de reuniões rotineiras, que têm como objetivo esclarecer sobre a doença mental sobre os cuidados na abordagem e convivência cotidiana com um portador de transtorno psíquico. Quando estes não comparecem, são advertidos e responsabilizados por eventuais problemas no decurso do tratamento do usuário que frequenta as atividades do serviço.

Murta24, ao considerar essa responsabilização imputada à família no provimento de

cuidados ao usuário dos serviços de saúde mental chama a atenção para as dificuldades encontradas por esses familiares que muitas vezes têm limitações no cuidar por conta de um desconhecimento da doença. Além disso, adverte que nem sempre os profissionais de saúde mental são sensíveis a essas tensões vivenciadas, sobretudo em contextos de desinstitucionalização que preconizam a necessidade do envolvimento da família no processo de tratamento.

Contribuindo com essa reflexão, Rodrigues e outros colaboradores25, asseveram que apesar dos avanços obtidos com este novo modelo, a integração da família no projeto terapêutico dos pacientes ainda representa um desafio que, na prática, não se fez acompanhar

23 VASCONCELOS, E. M. Do hospício à comunidade: mudança sim, negligência não. Belo Horizonte, Segrac,

1992.

24 MURTA, Genida Ferreira (org.). Saberes e práticas: guia para o ensino e aprendizado de enfermagem. São

Paulo: Difusão Editora, 2008.

25 RODRIGUES, F.D.,GONZE,G.G. e BENFICA,T.M.S.A inserção da residência no Centro de Atenção

Psicossocial da Infância e Adolescência: considerações preliminares. In: FILGUEIRAS,M.S.T., RODRIGUES,F.D. e BENFICA,T.M.S.(org).Psicologia Hospitalar e da Saúde: Consolidando práticas e saberes na Residência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

pela infraestrutura necessária ao cumprimento dos objetivos reabilitadores propostos pela Reforma.

O campo da atenção psicossocial tem sustentado um conjunto de ações teórico- práticas, político-ideológicas e éticas que consideram, prioritariamente, o indivíduo em sua existência-sofrimento. Para realizar o cuidado, são utilizados, no modelo psicossocial, dispositivos terapêuticos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), ambulatórios especializados, leitos/unidades em hospital geral, atenção básica, entre outros, compondo a Rede de Atenção Integral em Saúde Mental, que deve ser articulada entre si e com os demais serviços do sistema de saúde). A rede deve trabalhar sob a lógica da territorialidade, na perspectiva de que a pessoa em sofrimento psíquico possa ressignificar suas relações e atividades dentro da comunidade e da sua família. Nesse debate, destaca-se a importância dessa rede contemplar em seu desenho as necessidades da família, oferecendo suporte para o cuidado com familiar parente, por meio de espaços de escuta, acolhimento, construção e manutenção do vínculo entre serviço, usuário e família, buscando fortalecer as relações que podem produzir saúde, não esquecendo que a família faz parte de uma rede social também envolvida nos processos da atenção psicossocial, não podendo ser excluída, sob pena de reforçar processos de adoecimento.

Além disso, Rosa26, aponta a questão da sobrecarga da família que convive com um

indivíduo em sofrimento psíquico, referentes às consequências que afetam o cotidiano, tais como os gastos financeiros, a desestruturação social, profissional e familiar e sua consequente reorganização; as tarefas extras que a família assume em alguns casos como higiene, transporte, controle das medicações, alimentação, lazer, acompanhamento do tratamento e os comportamentos de seu familiar. Essas questões geram desgaste físico, mental e emocional, com os quais a família se depara cotidianamente.

A atenção psicossocial propõe que as famílias sejam escutadas em espaços de participação, criando estratégias que efetivem a inclusão no cuidado, uma corresponsabilização entre todos envolvidos no contexto: usuários, familiares, equipe de saúde e comunidade no enfrentamento dos desafios.

Nesse sentido, a participação das famílias nos novos modelos de assistência em saúde mental não pode prescindir do uso das tecnologias relacionais como dispositivos de promoção

da qualidade de vida, a partir da expressão das subjetividades e das demandas desses cuidadores, na perspectiva de uma atenção psicossocial qualificada.

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