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O ambiente distópico das prisões no Brasil e em Portugal

A prisão parece representar uma perfeita instituição disciplinar capaz de, por meio de um programa de controle sistematizado e dotado de mecanismos promotores de coerção constante, gerar corpos dóceis44.

Para Dores (2017), as prisões se configuram como ambientes socialmente construídos com o escopo de impor o que denominou de subculturas penitenciárias, em que a imposição de tal mudança poderia ser motivadora de estados nascentes, de iluminações, de rebates de consciência. Porém não é o que costuma acontecer, pois na prática não se observa a transformação dos modelos de comportamento entre os prisioneiros. Os estados de espírito criados nas prisões têm efeitos sociais dimensionados na presença de sentimentos de desumanização e vingança.

O Estado, ao optar pela pena aflitiva e restritiva de liberdade, retirando das partes o poder de conduzir a resolução do desencontro, condena-as às frustrações e angústias causadas pela sensação de impotência experimentada diante da insuficiência do modelo adotado pela justiça penal. Esta reação penal tradicional traz em seu âmago a punição irracional, o castigo e a violência punitiva, que ao traduzirem as principais características da reação penal, apenas infundem nos cidadãos o ideal de sofrimento como dado essencial da justiça e, como resposta, avolumam a própria violência que os oprime. Assim sendo, a justiça penal deve dispor da mínima força e sempre que possível abdicar do recurso à violência legalmente prescrita, reconhecendo que o conflito, o desvio às regras de convivência, por fazerem parte da natureza humana, são constantes impossíveis de eliminar45.

44 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da Prisão. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1989. 45 Ref. 40, p. 5.

A defesa dos direitos humanos no Brasil e na Europa contemporânea parece contrastar com a exclusão social, no mundo e no seio das sociedades mais modernas. Posto que, se por um lado as sociedades manifestam-se extremamente sensíveis à condenação e também na reabilitação dos egressos do sistema carcerário, por outro celebram ignorância, ressentimentos e desejos de vingança que servem como instrumentos mantenedores da discriminação e da exclusão de classes sociais previamente eleitas46, já que:

Há gente que não deve estar na prisão – não necessariamente por ser melhor que outros, mas sobretudo por ser parecida connosco, por nos podermos identificar com ela. Como dizia um especialista inglês, as prisões não foram desenhadas para acolher pessoas de classe média ou superior. Para estas, antecipa-se a normal integração social. Para outros a exclusão47.

No Brasil, o discurso de combate ao crime tem servido como álibi para fomentar a exclusão social e a constante violação dos direitos humanos, seja por ação ou omissão do Estado. O cientificismo tem se ocupado em analisar a pobreza tentando, inclusive, vinculá-la ao cometimento de ilícitos penais, porém, sem buscar as estruturas e dinâmicas do problema, apontando para sua nascente reproduzida pelas elites econômicas, políticas e intelectuais de países periféricos a exemplo do Brasil, e até mesmo em Portugal onde “à liberdade temerosa dos de cima, mantida com forças de segurança, corresponde à farsa da igualdade dos de baixo, mantida com assistência social e prisões48”.

Frente a crise de hipertrofia do sistema penal, em grande parte causada pelo “emergencialismo de tipificação de condutas” e pela “opção política equivocada em fundamentar o sistema sobre tendências autoritárias, demagógicas e expansivas”, despreza-se o princípio da intervenção mínima, em que o direito penal somente deveria intervir na ordem jurídica e social quando os outros ramos do direito fracassam nesta função, dessa maneira o Estado anulou a característica residual e de subsidiariedade do direito penal banalizando todo o sistema penal49.

O descrédito na eficiência do sistema penal e carcerário tem gerado discursos a favor do endurecimento das leis em detrimento a outras estratégias coercitivas menos ofensivas à dignidade humana que, embora já estejam previstas na Lei de Execução Penal (LEP), por não

46 DORES, António Pedro. A casa dos espelhos. Revista Crítica Penal y Poder, nº 13, octubre. OSPDH.

Universidad de Barcelona, 2017b. p. 97.

47 Ref. 46, p. 104. 48 Ref. 47, p. 97. 49 Ref. 6.

serem efetivadas aumentam a sensação de inoperância de todo o sistema de justiça criminal brasileiro. No caso português, a lei de execução de penas prevê como única finalidade das penas a ressocialização dos presos, sabendo-se que os serviços de reintegração social sempre funcionaram sob a tutela dos serviços prisionais e na prática servem exclusivamente para efeitos técnico-jurídicos. Produzem os relatórios previstos por lei para informar os processos judiciais, sem consequências práticas nas vidas das pessoas com necessidades de reinserção50. Já no Brasil, as desigualdades sociais, ao contrário do que ocorre na Europa, não são sentidas como algo a se envergonhar, e sim uma necessidade de afirmação quotidiana diante de uma guerra de classes e da adoção de uma postura permanentemente defensiva e agressiva perante um imaginário e imaginável ambiente selvagem e hostil. Isto é consequência da divisão herdada das experiências de colonização, em seus graus diversos de desigualdade, que “remete a prisão para o lugar de uma instituição do terceiro mundo, de que estão praticamente dispensadas as pessoas civilizadas. Eis um instrumento de defesa social!51”

O paradigma punitivo tem servido para legitimar esse fenômeno, uma vez que, na medida em que se percebe a apropriação do poder punitivo pelo Estado dito democrático, lastreado no discurso de manutenção da ordem e defesa da sociedade em geral, pode-se identificar a escalada das práticas de controle em que medidas que deveriam ser consideradas como excepcionais, são normalizadas pela sua frequente ocorrência, tornando cidadãos em objetos de controle, tal como os ditos criminosos. O paradigma restaurativo surge como um novo modelo, mais humanizado, retirando do Estado e devolvendo a vítima e a sociedade em geral o controle e a resolução do conflito delitivo, o que aproxima as partes realmente envolvidas e afetadas pelo delito, devolvendo-lhes a competência de resolução dos conflitos52. As decisões de Estado originariamente extraordinárias e temporárias, passam a ser empregadas como técnicas de governo, sendo aplicadas de forma rotineira na sociedade transformando-se em um verdadeiro paradigma, muitas vezes referendados e legitimados pelo Direito e pelo Judiciário, como se percebe ao analisar o artigo 86 da Lei de Execuções Penais no Brasil, das Casas de Correções de ontem e dos estabelecimentos penais de hoje, com sua aparente permissividade à pena de degredo na medida em que autoriza construção de presídios em áreas distantes do local da condenação do apenado.

50 Dores, António. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel),

2018.

51 Ref. 48, p. 106. 52 Ref. 42, p. 748.

Diferente do que ocorre no Brasil, em Portugal o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, em seu artigo 47º, nº 4 prevê a participação voluntária do recluso em programas de justiça restaurativa, nomeadamente através de sessões de mediação com o ofendido. Essa participação do preso nos programas restaurativos pós-sentenciais, admitidos pela legislação portuguesa, esta vinculada às finalidades da pena e das medidas de segurança privativas de liberdade, com vistas à reinserção do ofensor na sociedade de modo que, por meio da responsabilização, este não reincida em crimes, e seja um protetor e defensor da sociedade e seus dos bens jurídicos53.

O estado de exceção compreendido como paradigma de governo54 e como princípio político surge por meio de leis integradas ao corpo do direito vigente, utilizando-se deste calhamaço legal para atingir a classe social previamente selecionada para sofrer determinado controle por meio da criminalização de condutas a eles dirigidas e das constantes violações dos direitos humanos; têm-se, por exemplo, o descaso pela obrigatoriedade trazida na Lei de Execuções Penais brasileira relacionada à assistência educacional do preso e do internado. Também a inexistência de uma assistência social direcionada ao egresso com vistas a sua reintegração na sociedade serve para denunciar o sistema carcerário como violador dos direitos humanos perpetrados pelo próprio Estado, com a anuência das instituições responsáveis pelo cumprimento e fiscalização das leis, e sob os olhos de uma sociedade silente, afinal, a prisão e o sistema prisional quando se traduzem, ao menos no discurso de seus proponentes, em espaços de punição, e também de correção ou reabilitação, tornam-se, ao que tudo indica, as únicas instituições que já nascem reclamando sua reforma55.

As constantes notícias de rebeliões nos estabelecimentos penais espalhados pelos estados brasileiros, com suas imagens de barbárie e de extrema violência, dignas de filmes de terror são exemplos de violação dos direitos humanos e desatenção para compatibilidade da lotação dos estabelecimentos prisionais. Por outro lado, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, em uma demonstração de esforço para adoção das ferramentas restaurativas, vêm instituindo alternativas penais como “mecanismos de intervenção em conflitos e violências, diversos do encarceramento, no âmbito do sistema penal, orientados para a restauração das relações e promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade56”. E assim mitigar a ocorrência de presídios

53 Ref. 52.

54 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. 55 Ref. 13, p. 150.

superlotados que denunciam a aporia da abordagem do sistema punitivo atual, que tem seu fracasso retratado pela anomia do Estado por meio do desalinhamento da lei formal com os anseios da sociedade atual diante da conduta desviante. Se uma instituição básica de uma sociedade se apresentar como justa e razoável nas respostas aos casos concretos, todos os endereçados têm o dever natural de obediência. Parece-nos não ser o caso do sistema carcerário como instituição humana57, visto que a prisão fabrica delinquência, pois faz as famílias dos apenados caírem na miséria; o rótulo de criminoso e a constante vigilância, por vezes, fazem com que o egresso reincida na ação delituosa.

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