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O paradoxo da justiça penal e seu embrião carcerário

A evolução da vida em sociedade trouxe em seu bojo a apropriação do direito de punir - jus puniendi - pelo Estado. Surge, então, a ideia de um terceiro imparcial ao conflito e com poderes outorgados pelo próprio Estado para solucionar as divergências que nascem naturalmente da convivência social. Na contemporaneidade, esse poder estatal tem encontrado dificuldades para dar respostas céleres e satisfatórias a todos os conflitos que chegam até seu conhecimento, seja por ter tutelado bens que por suas características intrínsecas não careciam da intervenção estatal, seja por ingerências do poder político ou por emergências do clamor público e midiático2.

O sistema legal, lastreado na crença da racionalidade penal moderna3, torna-se a mais antiga das estratégias dissuasivas para a prevenção de conflitos, e apenas um dos métodos disponíveis na sociedade moderna para a gestão e resolução de conflitos; legitimando e dando suporte teórico-ideológico para a punição como única forma de intervenção adotada pelo

2 ALCÁCER, Rafael Guirão.¿Protección de bienes jurídicos o protección de la vigencia del ordenamiento

jurídico? Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, v. 7, n. 11, Buenos Aires, 2001, pp. 293-335.

3 A racionalidade penal moderna é o sistema de pensamento desenvolvido na Europa entre os séculos XVIII e

XIX, caracteriza-se por uma maneira de pensar e construir o direito penal, que adquire uma forma de sistema de pensamento que tem como uma de suas principais características a naturalização da estrutura normativa. Neste contexto, legitima o mito da pena aflitiva como a melhor forma de assegurar a observância disciplinada das normas de comportamento, o que confere ao saber criminal o status de uma ciência voltada para o punitivismo.

direito penal4. A adoção do castigo, como resposta aos crimes, orientado por processo público

e aplicado de forma racional e humana, guarda relação visceral com a sociedade que se forma meio às revoluções e posteriormente governada pelas leis positivadas, planejadas e ordenadas, a sociedade disciplinar da lei e da ordem que vai ser erguida durante os séculos XVIII e XIX5. Ao adotar o paradigma da punição apostando na pena privativa de liberdade como única resposta a ser aplicada nas situações de crime, assume-se o risco de acabar gerando outra violência, tornando o Estado no principal violador dos direitos e garantias constitucionais, gerando insatisfação social e criando questionamentos e inquietações a cerca da legitimidade e eficácia do sistema penal vigente6.

O crime se apresenta como uma ofensa ao Estado soberano e o ofensor deve ser exemplarmente punido. As normas jurídicas, por sua vez, não são aplicadas de maneira isolada, mas, sim, na maioria das vezes, de forma generalizante, causando dificuldades e discrepâncias entre a regulação projetada para uma determinada realidade e a variabilidade com que essa realidade se concretiza, ou seja, a fluidez dos fatos da vida previstos em leis7.

O que se percebe, dentro dos muros do cárcere, são experiências de múltipla punição, que têm reflexo na privação da liberdade, judicialmente decretada, somada aos maus tratos que o sistema prisional patrocina, talvez, para satisfazer sentimentos sociais de vingança desenvolvendo, de forma reflexiva, esses mesmos sentimentos junto aos “condenados- vítimas”, das suas famílias e amigos. Sentimentos estes que podem ser traumatizantes e causadores de novos crimes e violências por meio da reincidência, diante da estigmatização e da ausência de oportunidades de reinserção social. E é aqui que a justiça restaurativa surge com seu potencial reintegrativo e restaurativo8.

O Estado entende a pena como resposta reativa ao delito, uma concepção de retribuição ou castigo punitivo, que tem como característica diferencial sua desvinculação ou (des) ligamento de qualquer fim social específico, e que remonta às origens de vindita da pena e ao princípio do Talião “olho por olho; dente por dente”. Já no plano jurídico filosófico liga-se,

4 ENTELMEN, Remo F. Teoria de Conflictos: hacia um nuevo paradigma. 1ed. Bacelona. Editorial Gedisa, S.A.,

2002.

5 FERNANDES, Daniel Fonseca. Racionalidade penal moderna e o mito da modernidade. XVI Revista do Cepej,

n. 16, 2015.

6 SICA, Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2002.

7 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3ªEd. Tradução de José Lamego. Lisboa: Ed. Calouste

Gulbenkian, 1991, p. 380.

8 DORES, António Pedro. A base social do Estado penal. Revista Crítica Penal y Poder, nº 12, marzo. OSPDH.

sobretudo, aos cânones do idealismo alemão. O aparato penal retribucionista é caracterizado pela capacidade de potencializar toda situação que envolve o delito. A resposta que o Estado oferece à sociedade carece de legitimidade ética porque sua medida é o mal que impinge àqueles que praticam o mal9.

A justiça penal foi, paulatinamente, abolindo outras formas de resposta ao crime, a exemplo da pena física do suplício, no sistema absolutista de punição, uma vez que, nas monarquias absolutistas, a punição apresentava-se muito mais como o símbolo do poder da majestade, para garantir a presença do rei, do que um efetivo instrumento de controle e coerção social. Também era composto por algumas outras espécies de punições como os trabalhos forçados, as penas de deportação e as de multa. Às vezes, as penas de banimento e de multa vinham acompanhadas, quase sempre, de uma dose de sofrimento e demais alternativas ao encarceramento10.

Nasce, então, As Casas de Correção como o embrião de nossa atual concepção de prisão e eram estabelecimentos dedicados à caridade, à correção e à disciplina de um modo geral. Apesar de não gozarem de primazia, enquanto modelo de punição, foram ganhando notoriedade tempos depois. Por um lado, as prisões deveriam ser reestruturadas de acordo com os princípios modernos da Escola Positiva. Por outro, “havia a experiência do funcionamento da Casa de Correção desde 1850, que demonstrava um acúmulo de problemas naquela que foi criada para ser a prisão modelo do Império brasileiro11”.

A Casa de Correção surgiu como proposta de pessoas com importantes posições

sociais como médicos, políticos e juristas. Essa instituição prisional foi constituída durante o século XIX de forma bastante paradoxal, pois o seu propósito era realizar um avanço em relação às práticas que dominavam aquele período histórico, e servir de modelo para a regeneração dos criminosos por meio do trabalho, educação e religião. Porém, foi palco de estratificações sociais e terminou por servir as demandas político-econômicas da época12.

O processo de criação das novas prisões, Casas de correção, tinha o condão de alargar a separação entre o mundo livre e a internação. Isso resultaria no bem estar de todos, por meio

9 CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de Política Criminal: Orientado para a Vítima de Crime. Coimbra:

Coimbra Editora, 2009. p. 29.

10 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do

crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

11 MAIA, Clarissa Nunes et al. História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 285. 12 Ref. 11.

do isolamento moral e sanitário dos detentos13. Segundo De Moraes (2005) a Casa de Correção

deveria ser construída em local elevado e distante do centro e dotada de uma pedreira onde os presos poderiam trabalhar para “ocupar suas mentes” por meio da penitência e, assim, por meio da correção, criar os valores que haviam sido esquecidos ou transgredidos. Deduzir-se- ia disto que, ressalvados alguns casos extremos, em que se tem por induvidoso que o afastamento de alguém do convívio social é imprescindível e estritamente necessário, a aplicação de penas restritivas da liberdade a autores de práticas delituosas, revela-se como uma medida penal inteiramente desaconselhável? A literatura especializada aqui manejada para responder positivamente à questão: de fato, se não aplicada dentro de uma dimensão absolutamente excepcional, ela pode trazer mais prejuízos do que benefícios à vida social14.

Quando o modelo retributivo passou a dominar o sistema penal com as promessas de reeducação, ressocialização e prevenção percebeu-se que, na prática, tais resultados não estavam sendo alcançados, e que o encarceramento e o endurecimento das leis penais não tinham influências na diminuição da criminalidade. Por outro lado, percebeu-se que o encarceramento, além de romper com os laços comunitários, tendia a aumentar os casos de reincidência, uma vez que o egresso do sistema carcerário não encontrava oportunidades diante da vigilância, controle e estigmatização pós-cárcere e pela criação de novas vítimas indiretas, como é o caso dos membros da família do infrator, que passavam a ter dificuldades financeiras, já que:

As prisões geram, igualmente, fortes indiferenças e emoções. Incluindo poder de atracção. O sistema criminal-penal, porque produz estigmas, é capaz de bloquear estruturalmente certo tipo de relações sociais e, ao mesmo tempo, criar saberes especializados15.

A transformação das abordagens cognitivas e restaurativas às prisões irá acontecer, inevitavelmente, com as transformações das relações das diferentes disciplinas de ciências sociais e sociais aplicadas, das prisões nelas mesmas, e da sociedade, em geral, pois o processo penal estigmatiza por toda a vida aqueles considerados culpados, e, para responder às constantes críticas que recebe, o sistema se utiliza de meios autorreferenciais, atribuindo o seu fracasso às técnicas e reformas do modelo. Assim, segundo Dores (2017), “A verificação

13 DE MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre

agentes penitenciários. IBCCRM, São Paulo, 2005, p.178.

14 ROCHA, Lilian Rose Lemos; CARDOZO, José Eduardo. Precariedade do sistema penitenciário brasileiro

como base temática para proibição ou legalização das drogas. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, dez. 2017, p. 723.

empírica da inviabilidade prática do arranjo penitenciário, em termos do cumprimento das finalidades de prevenção do crime e de ressocialização, não chega para invalidar a teoria que o inspira16”.

O não cumprimento de suas promessas de prevenção e diminuições da violência fez surgir diversos movimentos que questionaram a legitimidade e efetividade do modelo calcado no paradigma punitivo, que apontaram novas soluções para sua reforma e até mesmo extinção. A denúncia do fracasso do modelo de estado penal deve ser alargada à denúncia das intervenções do estado e das teorias sociais, cada vez mais intrusivas nas sociedades, a exemplo da justiça restaurativa17.

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