• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: A Casa e a rua: gênero, agência o poder

2.1 O Privado e o Público, a Casa e a Rua

2.1.2 A Família Patriarcal e a Família Nuclear

A família patriarcal é o modelo dominante da sociedade colonial brasileira e tem entre suas características a família extensa, formada pelo patriarca, sua esposa, os filhos legítimos e ilegítimos, concubinas e uma enorme rede de parentesco, onde se inclui parentes, escravos, compadres, todos

conectados por laços de sangue, de solidariedade e de amizade. Além disso, esse grupo apresenta uma distribuição hierárquica de papéis masculinos e femininos, o controle sobre a sexualidade e a reprodução feminina, enquanto que a sexualidade masculina é “livre” 1.

A base sobre a qual tal modelo se assentou foi a economia açucareira, voltada para exportação, ancorada no trabalho escravo e reunindo “uma variedade enorme de funções sociais e econômicas onde se inclui a do mando político”exercido pelo patriarca que não apenas representava mas era ele próprio o poder ( Freyre, 1975, p. 23).

A conseqüência do entrelaçamento entre o modo de produção econômico e o modelo de família que se estabeleceu fez com que o relacionamento entre seus membros se apoiasse na autoridade paterna e na solidariedade entre os parentes (Samara, 1989, p. 15). O que se percebe, portanto, é que, estando as funções social e econômica concentradas na família, a autoridade e o mando do patriarca abarca as duas esferas: o privado e o público, ou melhor, o mundo da casa e o mundo da rua que, na verdade, não se encontram tão separados como passam a ser posteriormente.

Entretanto, em termos mais concretos, a abrangência do poder do patriarca era de tal vulto que chegava, em algumas localidades do país, a influenciar instituições como a Igreja e o Estado e exercer controle sobre as mesmas2( Samara, 1989, p.16-17).

1

Os estudos contemporâneos sobre masculinidade vêm questionar a suposta liberdade da sexualidade masculina. Ver, dentre outros, Heilborn e Carrara, 1998 e Carvalho, 1998.

2

Para estudos sobre a família patriarcal vista a partir de Gilberto Freyre, conferir, entre muitos, Vianna (1974); Pereira de Queiroz ( 1976).

A explicação que se dá para a dimensão que o poder do patriarca assume no Brasil colonial, aponta para inexistência da sede de um poder governamental local e também para a natureza rural da empresa açucareira. Formou-se, portanto, uma estrutura de poder onde a família patriarcal substitui o Estado, surgindo o que se chamou de uma sociedade de parentes, dando origem a um

familismo que vai marcar toda a vida colonial brasileira (Samara, 1989). Mas que

espaços ocupam as mulheres nessa estrutura de poder?

Para Freyre (1981), a estrutura da família patriarcal tem fortes conseqüências para os papéis masculinos e femininos com relação à distribuição do poder: enquanto o chefe possuía uma autoridade quase absoluta, as mulheres passavam da tutela do pai para a do marido, cuidando da função doméstica que lhe estava reservada e que incluía o cuidado com os filhos e com o marido (ver também Samara,1989).

É verdade que o próprio Freyre destaca situações onde registra variações da família patriarcal. Destaca mulheres que eram “verdadeiras matriarcas”, que assumiram o comando de suas fazendas, tomaram decisões importantes na vida familiar, geriram os serviços domésticos. A importância da mulher também é mostrada através dos filhos adotando o nome de família materno, quando esse era mais conhecido e importante do que o nome de família paterno (Freyre, 1981, p. 288; 133). Embora na família patriarcal tratada por Freyre ele já aponte a possibilidade do exercício do poder feminino, é Antônio Cândido quem vai enfatizar um aumento do poder feminino na esfera doméstica ao mostrar a maior separação entre a casa e a rua a partir do surgimento da família nuclear moderna.

A outra referência para entender a tradição é o estudo de Antônio Cândido, “The Brazilian Family” (1951), que analisa a estrutura e a organização da família patriarcal brasileira. Segundo o autor, a estrutura dessa família possui duas partes: um núcleo central onde estão o casal branco e seus filhos legítimos e netos, tanto do lado paterno como do lado materno, e um núcleo periférico formado por escravos, concubinas, filhos ilegítimos ou de criação, parentes agregados, afilhados, amigos e serviçais. Essa parte periférica incluía, ainda, vizinhos, trabalhadores livres e migrantes que, em função de razões econômicas, achavam-se sob a influência da família patriarcal.

A partir do processo de urbanização e de industrialização, que traz mudanças para a economia, muda também a composição familiar: desaparece o núcleo periférico, permanecendo apenas o núcleo central, resultando na perda da antiga autoridade paterna e na transformação de relações mais igualitárias no casamento (Cândido, 1951).

Enquanto na família patriarcal espaço público e espaço privado se confundem, mantendo a dominação do patriarca e a submissão feminina, na família apresentada por Cândido (1951) surge o espaço privado, reduto da família nuclear, com relações mais igualitárias entre homem e mulher com a diminuição do poder do pai sobre os filhos, tornando visível e possivelmente ampliando o poder feminino.

Sendo assim, a alusão à variação da família patriarcal no tempo e no espaço se dá em função de dois pontos: o primeiro diz respeito aos estudos que questionam a validade do modelo patriarcal de família como modelo único e monolítico para a sociedade brasileira. Esses estudos oferecem uma nova

interpretação e mostram a variedade de famílias existentes. Além disso, incorporam dimensões da vida cotidiana das mulheres, tornando visíveis lugares ocupados pelas mesmas ao longo da sociedade brasileira e suas conexões com o poder3.

O segundo diz respeito a minha adoção pela interpretação do modelo patriarcal de família assumido por Gilberto Freyre como explicação da “tradição”, no sentido de um ideal a ser seguido. Ou seja, não se trata de ignorar as variedades constatadas por outras interpretações, mas de reconhecer que embora o modelo patriarcal não fosse universal na realidade colonial brasileira, ele era, sem dúvida, o modelo dominante, percebido como ideal a ser alcançado.

Nesse sentido, sigo o caminho de Mendes de Almeida (1987) para quem, ao se referir ao trabalho de Sérgio Buarque de Hollanda, a família patriarcal assume um papel ideológico e torna-se a célula básica da sociedade brasileira. Segundo ela:

“Esse tipo de família, tornou-se uma espécie de matriz que permeia todas as esferas do social: a da política, através do clientelismo e do populismo; a das relações de trabalho e de poder, onde o favor e a alternativa da violência preponderam nos contratos de trabalho e na formação de feudos políticos, muito mais do que a idéia de direitos universais do cidadão” (Almeida, 1987, p. 55).

É este o modelo hegemônico que a partir do qual as mulheres investigadas possivelmente interpretam suas vidas, dando os subsídios necessários para que eu possa compreender a dimensão do poder feminino.