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Capítulo 3: Interpretando as mulheres

4.2 Fissuras na Tradição

A forma como os três preconceitos mencionados são imbuídos de significado só pode ser compreendida ao se levar em consideração a estrutura social mais ampla no seio da qual eles se manifestam. Assim, a expansão do setor econômico e dos setores sociais médios implica em diferentes arranjos através dos quais uma nova forma de feminilidade vai sendo pouco a pouco construída . Ora esses arranjos apontam para um avanço, quando as mulheres se inserem no mercado de trabalho - independentemente da motivação que as levou

a isso, ora apontam para um retrocesso, quando ao casar dele se retiram. Em ambas as situações, há a preocupação com a manutenção da posição de classe.

Voltar a não trabalhar é também uma agência. Novamente é possível a percepção dos recursos utilizados. Dessa vez a posição de casada é um recurso autoritativo que está vinculado a um recurso alocativo que diz respeito à disponibilidade financeira do marido que a isenta de trabalhar. A conservação também é uma escolha como diz Gadamer ( 2008, p. 373)

Mas ser criada para casar não significa, como se tem mostrado, uma adesão inquestionável aos valores alocados às mulheres. Há resistências e transgressões aos modelos ideológicos femininos. Letícia faz um relato interessante sobre algumas transgressões que veio a tomar conhecimento. A transgressão implica na ruptura do modelo em sua forma mais radical e o silêncio em torno desses casos apenas confirmam a importância do controle e dos valores vigentes:

Uma moça quando se casava era diferente de hoje porque ela não tinha liberdade excessiva, nem coisa nenhuma, então a gente ficava com cerimônia. Eu estou falando por mim...eu não sei se tinha gente muito liberal naquele tempo - mas deve ter tido...sempre tem não é? Porque inclusive no colégio teve gente que engravidou (antes do casamento), havia uns casos de gravidez, a escola evitava falar para não haver um escândalo, a maioria eu acho que não era como eu, porque eu tinha o sentimento de pecado (Letícia)

A percepção implícita dessas fissuras no modelo ideal possibilita que as mulheres identifiquem, de forma mais ou menos consciente, os valores de feminilidade que se apresentam para elas. Por exemplo, é o comportamento diferente de outras pessoas que faz com que Maria Odete se perceba como alguém sobre quem incide uma vigilância mais intensa.

A observação desses pequenos fatos conduz à percepção das contradições existentes nas crenças e modelos vigentes. Ao tratar como preconceito a afirmação, contida no texto oral produzido pelas mulheres, de que eram educadas para casar, várias questões eclodiram trazendo uma compreensão mais abrangente de aspectos e situações da vida das mulheres que estava encoberto por tal afirmativa.

Na verdade, ser educada para casar representa, sobretudo, a necessidade da vigilância “pública” sobre a conduta das mulheres para que não paire qualquer dúvida sobre os valores habilitadores para o bom casamento e para o exercício da maternidade, verdadeira vocação da mulher.

Ao mesmo tempo, as mulheres não perdem a oportunidade oferecida pela sociedade de entrar em um curso superior ou de exercer uma profissão quando a oportunidade aparece. Em geral, essas situações eram tratadas como provisórias pelas mulheres, ou seja, permitidas enquanto o casamento não chegava. Entretanto, mesmo encobertas por essa suposição, abriram oportunidades para as mulheres desempenharem novas funções, buscar melhores oportunidades para si próprias e utilizarem a seu favor as regras de comportamento impostas, na medida em que essas permitiam transitarem no espaço da rua de forma mais autônoma. Se a profissionalização através de um curso superior é, na melhor das hipóteses, considerada como algo transitório enquanto o casamento não chega, não se pode negar o impacto que causa na transformação da vida das mulheres que vão paulatinamente adentrando o “mundo da rua”.

A vigilância até então mantida através do confinamento das mulheres no espaço da casa como forma de controle do patriarca sobre as mulheres da família, especialmente das filhas, passa a depender de outros mecanismos. Nesse segundo momento, outras instituições como a Igreja e a Religião, bem como pensadores e ideólogos, passam a definir os dispositivos normativos para que a mulher possa sair para o mundo da rua comportando-se de forma adequada para preservar sua reputação. Da mesma forma que há referência a feminização do ensino ou da carreira do magistério, pode-se inferir o surgimento de um espaço de circulação feminino no espaço da rua. Ou seja, é possível ir ao mundo da rua, ao mundo do trabalho desde que “caminhando” por dentro de um corredor feminino que é o resguardo do próprio corpo. É como se as mulheres carregassem no corpo, através das roupas, das atitudes e gestos, o próprio caminho por onde circulam. Apesar do seu caráter opressivo, não se deve desmerecer uma certa positividade desse aspecto na vida das mulheres. De certa forma, trata-se da transferência do poder do pai, existente no mundo da casa, da tradição que passa para o espaço público representado por pensadores que normatizam a conduta das mulheres no desenvolvimento de suas atividades de trabalho, colocando, em última instância, nas mãos das próprias mulheres a responsabilidade da sua reputação.

Como se viu, embora reguladas por códigos e manuais de conduta, controladas através de vários dispositivos, circunscritas a padrões de comportamento rigorosos, elas ultrapassam os limites do mundo da casa, alcançam alguma autonomia e, até certo ponto, a responsabilidade sobre si próprias no que diz respeito ao comportamento em público. Pouco a pouco

adquirem mais autonomia. Não é o que faz Maria Odete quando não espera pela acompanhante para voltar para casa, ou quando coloca para o pai as condições para assumir a função de professora?

Ao olhar o percurso seguido pelas mulheres junto à família, considero que foi através do seu papel na família que muitas mulheres conseguiram obter acessos aos mais diversos tipos de recursos e construir espaços de influência e autonomia. De fato, os estudos sobre família no o Brasil do final do século XIX e inicio do século XX sugerem uma mulher bastante regulada institucionalmente, porém com maiores oportunidades para o exercício da autonomia. Em outras palavras, uma mulher com maiores oportunidades de agência surge no cenário, como mostra Louro (1997) ao se referir a “uma certa autonomia” adquirida pelas “mestras” ao saírem do mundo da casa para o mundo da rua.

Se, por um lado, uma mulher mais atuante vai surgindo e novas configurações e arranjos familiares se organizam, permanece sempre a idéia da subordinação e dependência. Uma situação de igualdade com os homens ainda permanece distante. Os espaços de ruptura com a tradição que se forjaram nem sempre são percebidos como tais pelas mulheres e isto, como pretendo demonstrar, pode limitar sua agência. No próximo capítulo, tentarei expor a forma pela qual as mulheres interpretam o que se apresenta a elas como recursos.