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Capítulo 2: A Casa e a rua: gênero, agência o poder

2.1 O Privado e o Público, a Casa e a Rua

2.1.1 O mundo da casa e o mundo da rua

A casa e a rua, por seus aspectos complementares e relacionais, são caracterizadas por Roberto DaMatta (1985, p.12) como “categorias

sociológicas” e, portanto, fundamentais para a compreensão daquilo que uma

“sociedade pensa” e para traduzir “aquilo que a sociedade vive e faz”. Seguindo o seu raciocínio,

[...] entre nós, [a casa e a rua] não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas (ibdem).

A casa e a rua não são categorias estanques, posto que são vistas como relacionais e, nesse sentido, uma só pode ser compreendida a partir da outra. São categorias dinâmicas, portanto. Embora sejam conceitos relacionais, percebe-se que, para o autor, a casa é o ponto de referência a partir do qual a rua vai ser percebida. Ou, em outras palavras, considerando a formação da sociedade brasileira, a casa se presta como lugar primeiro a partir do qual se olha o mundo exterior.

De fato, referindo-se à idéia de casa como local privilegiado de análise, o autor nos lembra que essa conotação surgiu nos estudos históricos e sociais brasileiros, onde a casa aparece como um “palco, um local físico a partir do qual famílias dotadas de poderio ‘feudal’ comandam pedaços da sociedade e são os verdadeiros atores da história social brasileira” (Ibid. p.12).

Sendo a casa mais do que uma simples oposição ao mundo da rua, a sua utilização, enquanto categoria de análise, torna-se pertinente na medida em que nela não está apenas o feminino. Na casa está também toda uma rede de relações que engloba o feminino e o masculino, portanto, relações de poder.

A casa, como diz DaMatta, “vai além da fita métrica” e não pode ser definida como uma medida, mas sim por contrastes, complementaridades e oposições. Mas não é exatamente nesses aspectos onde residem os jogos de poder, as negociações e as barganhas? Por sua vez, negociações e barganhas são ações que se dão entre atores sociais concretos: entre homens e mulheres, maridos e esposas, pais, mães, filhos e filhas.

Ao mesmo tempo, é importante lembrar que as diferenças existentes no

mundo da casa só fazem sentido quando relacionadas ao mundo da rua e, assim,

“o espaço definido pela casa, pode aumentar ou diminuir, de acordo com a outra unidade que surge como foco de oposição ou contraste”; pode invadir o espaço público, já que oferece uma visão de mundo onde qualquer evento “pode ser lido ou interpretado por meio de códigos da casa e da família” ( Ibdem).

Essa afirmativa poderia então ser ampliada para uma reflexão mais desafiante onde seria possível pensar situações onde o feminino do mundo da casa, invadiria o mundo da rua? Acredito que sim, e é o que farei no decorrer do trabalho. De fato, trarei situações baseadas nos dados coletados que se encaixam nesse contexto.

Mas apesar de enfatizar seu lado relacional, não se pode esquecer o lado “geográfico” que o autor menciona na sua explicação do mundo da casa. Esse pode variar desde o espaço privado e íntimo de uma pessoa, até o “espaço absolutamente público” quando por acaso alguém se refere ao Brasil como sua casa. Tudo depende do está sendo explícita ou implicitamente contrastado.

Ainda com relação à dimensão geográfica, esse pode se referir à demarcação dos espaços dentro da casa para explicar que tipo de comportamento é próprio de cada lugar. Há coisas que só podem ser feitas dentro de casa e nela há coisas que têm seus espaços apropriados: “desde cedo aprendemos que certas coisas só podem ser feitas em casa e ainda assim, dentro de seus espaços. Devo comer na sala de jantar e não posso mudar de roupa na sala de visitas o que cria uma rigorosa gramática de espaços, de ações e reações” (Ibid. p. 43).

Tal demarcação dá margem para que as dimensões masculinas e femininas sejam também pensadas no espaço da casa. Com essas dimensões é possível compreender o que é próprio de cada esfera no mundo da casa, visualizando melhor os espaços da atuação da mulher e das restrições impostas aos homens pelo código da casa. Ou seja, os espaços ocupados pelos homens restringem-se ao escritório ou biblioteca, ao terraço da frente ou simplesmente a uma determinada cadeira. Cozinha, dispensa, área de serviço, quarto de costura, são espaços onde dificilmente os homens circulam, estão sob a supervisão da mulher e sob o cuidado delas e constituem-se nos espaços femininos no mundo da casa. Como afirma DaMatta: “Na casa, há os lugares femininos por excelência, como a varanda de trás da casa onde as mulheres “sentadas em roda, costuram, fazem meia, renda, bordados ou coisas semelhantes, enquanto os homens ficam encostados” (Ibid. p.43).

Ao quarto das filhas crescidas, nem o pai nem os irmãos, devem entrar sem pedir licença. Existem áreas comuns de convívio onde todos os membros da família circulam. Porém, só a mulher, dona de casa e mãe, circula e tem acesso a todos os lugares porque supervisiona e comanda. Tal circulação não daria às mulheres informações inacessíveis a outros membros da casa que se constituem também em formas de controle e de poder? Possivelmente sim, como será visto no decorrer do trabalho.

Mas existe também a dimensão geográfica do mundo da rua que DaMatta informa a partir do olhar dos visitantes estrangeiros que vieram ao Brasil no século XVIII, como John Luccok, Sainte –Hilaire e Elizabeth Agassiz.“Na rua,

salão de danças” (Agassiz in DaMatta, pág.44). Ou seja, há um espaço alocado às mulheres. Tanto que permitiu ao olhar do estrangeiro a percepção do fato. Esse é apenas um exemplo da geografia da rua. Mais um sinalizador da existência de outras situações do mundo da rua que poderão ser demarcadas, mostrando como o espaço público pode também ser feminino.

A compreensão do que é masculino ou feminino, do espaço da rua, do espaço da casa e do poder depende de um horizonte, de “tradições específicas” e de “preconceitos específicos”, no sentido utilizado por Gadamer. Esses conceitos serão retomados no próximo capítulo. Por ora, é suficiente afirmar que eles formam a condição de entendimento e compreensão segundo esse autor ( Gadamer, 2007).

Da mesma forma que os visitantes estrangeiros registram a sociedade brasileira a partir do seu horizonte, no caso a sociedade européia do século XVIII, também as mulheres que estudamos olharão para as suas vidas informadas pela tradição que as informou e formou. Nos relatos que empreendem sobre suas mães e avós, está clara a diferença que marcam entre os tempos vividos pelas mães, por elas e por vezes, por mim.

Mas o que se constituiria na tradição para se entender o poder das mulheres na família? Em um primeiro momento, a tradição, que ajudará na compreensão a que quero chegar é a “família patriarcal brasileira”, estudada por Gilberto Freyre (1975), onde o mundo da casa e o mundo da rua se confundem, sendo o poder do patriarca mostrado como absoluto.

Por outro lado, em um segundo momento, em função das transformações ocorridas na economia, surge a “família conjugal moderna” estudada por

Antônio Cândido de Mello e Souza (1951). Aqui, já se verifica maior separação entre o mundo da casa e o mundo da rua e também a diminuição do poder do pai.

Freyre e Cândido são mais complementares do que antagônicos na análise do poder do “patriarca”. É preciso estar atento às transformações que o próprio Freyre indica na família colonial brasileira que se processa no século XIX. A separação entre o mundo da casa e o mundo da rua, a substituição da Casa grande pelo Sobrado e da Senzala pelo Mocambo, a diminuição do poder do patriarca e o surgimento de novos atores sociais protagonizando o poder, são transformações que estão contidas nos estudos do autor.

Antônio Cândido concentra-se no período em que se intensifica o processo de urbanização e industrialização no Brasil, utilizando já o termo família conjugal moderna. Partindo da tese de Freyre sobre a família patriarcal, faz uma revisão da estrutura que compõe a família patriarcal proposta pelo autor. Aqui, a separação entre o mundo da casa e o mundo da rua aumenta e a atividade produtiva fora da esfera doméstica, traz relações mais igualitárias para o casamento, de acordo com o autor.