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Capítulo 2: A Casa e a rua: gênero, agência o poder

2.3 Gênero e Linguagem

2.3.2 Preconceito, Tradição e Fusão de Horizontes

Mas como entender o preconceito? De fato, essa questão merece uma reflexão, pois é ela que vai condicionar o significado da compreensão. Ou seja, como se pode ter certeza do que o que se está entendendo tem um significado que faz sentido para o sujeito que se quer compreender? Poderia o preconceito ser compreendido como pré-noções que o observador possui ao que busca compreender?

Warnker (1987, p. 78), discorrendo sobre as explicações dadas por Gadamer sobre a natureza do preconceito, traz pontos que ajudam a situar essa noção que causa, à primeira vista, um desconforto quando se trata da investigação científica. Segundo ela, no processo de interpretação, as controvérsias trazidas para o processo de interpretação não se referem apenas às preocupações individuais do intérprete, mas referem-se a controvérsias e interesses que se desenvolvem dentro da tradição histórica a que se pertence. A

tradição contém diferentes interpretações sobre ideais como democracia, por exemplo, e essas interpretações podem ser contraditórias.

No entanto, como argumenta Hekman (2003, p.194) a partir de Gadamer, é necessário que o intérprete seja capaz fazer uma distinção entre os preconceitos “cegos” que obscurecem o entendimento e outros preconceitos que iluminam o entendimento. A preocupação é saber o que distingue preconceitos legítimos dos incontáveis preconceitos que se precisa superar. A superação do preconceito, entretanto, tem que ser visto à luz do que Gadamer considera o objetivo de sua hermenêutica, que é a possibilidade do preconceito ser ao mesmo tempo examinado e revelado. Assim sendo, a análise do preconceito possibilita a distinção entre verdadeiro e falso preconceito.

Preconceito, como dito anteriormente, é uma das condições de entendimento. Interpretando Gadamer quanto ao papel desempenhado pelo preconceito na aquisição do conhecimento e do entendimento, Freudenberger (2003, p. 266) ressalta que inicialmente o conceito de preconceito

refere-se apenas ao fato de que nós não encontramos outras pessoas, textos ou objetos no mundo a partir de um lugar indefinido (nowhere), mas sempre trazemos conosco preconceitos e expectativas determinados historicamente, socialmente, culturalmente e biograficamente, a partir dos quais nós compreendemos e interpretamos. Esses preconceitos ou expectativas podem ser revisados e mudados; nosso “horizonte” pode então se expandir.

Para Gadamer (2008, p. 132) “o intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio horizonte e todo compreender representa uma fusão desses horizontes.” Sendo o observador parte de uma tradição é também informado por ela e, assim, ao se aproximar de um fenômeno que quer compreender, vai situá- lo a partir de um determinado lugar, ou horizonte.

Mas aqui, torna-se importante ressaltar a natureza dialógica da concepção do conhecimento colocado por Gadamer. Como diz: Warnker (1987, p. 4)

Se a atenção prestada por Verdade e Método à questão do preconceito e à influência do passado é importante, não menos importante é a sua tentativa de ressuscitar uma concepção dialógica do conhecimento. Compreensão (Verstehen) para Gadamer é antes de tudo chegar a um

entendimento (Verständigung) com outros.

Tem-se, pois, uma concepção de conhecimento que resulta de uma “conversação” entre um eu e um tu ou entre um eu e vários outros. Tanto esse tu como esses outros podem ser representados por um texto escrito ou por um texto oral. Pode-se tomar o autor ou autores como representando um tu e, pode-se tomar o texto oral resultante de uma conversação como representativa de outros. Essa é a forma como penso tratar o problema que enfrento nesse estudo, onde tenho como interlocutores o texto escrito que informa a dimensão da tradição e o texto oral resultante das entrevistas realizadas.

O texto escrito representa a tradição e informa o modelo masculino e feminino, as relações de gênero e poder que se formaram no contexto da família patriarcal brasileira, consideradas e abordadas deste capítulo. O texto oral resulta das várias entrevistas realizadas com as mulheres nascidas no início do século XX onde as mesmas interpretam suas vidas a partir de uma tradição específica.

Essa conversação, entretanto, remonta à noção de horizonte. O eu, no caso o intérprete, dialoga com um tu a partir de um horizonte que é locado em um contexto específico. Da fusão desses horizontes é que resultará a compreensão do fenômeno que se quer compreender. No caso, o fenômeno que se busca compreender, como mostrado no capítulo anterior, é o poder feminino e

sua relação com os espaços de circulação da mulher que tanto ocorrem no espaço doméstico como no espaço público.

Entra-se, assim, numa “conversação” com o outro ou outros para interpretar as diversas interpretações. Entretanto, como assegurar que o que se compreende é de fato informado por uma dimensão da verdade e não fruto de preconceitos? Ao que parece, Gadamer, ao sugerir a conversação entre um eu e um tu, está considerando que essa conversação se dá a partir de horizontes distintos e que o diálogo deverá considerar as possibilidades de uma abertura entre esses horizontes. É assim que se dará a possibilidade da compreensão. Restam ainda duas questões: o preconceito e a autoridade da tradição. Como saber se o que se compreende não é fruto de subjetividades e preconceito negativo do intérprete? Como abordar a dimensão de autoridade da tradição?

A autoridade da tradição, quando se estabelece o diálogo, pode ser questionada e vista a partir do horizonte do autor e do intérprete. Na fusão de horizontes é possível o questionamento da autoridade. Não foi assim, por exemplo, que se percebeu as diferenças na constituição do feminino e do masculino, nos textos sobre a família patriarcal aqui considerada como tradição? Não está na interpretação desses autores “glimpses” ou antecipações que deixam perceber a agência do poder feminino? Não seria a fusão de horizontes entre o autor e o intérprete, condicionada por fatores de sua localização, a possibilidade de questionamento e de compreensão da tradição?

Vale salientar que Gadamer, ao falar de localização ou horizonte, não define exatamente que elementos o constituem. É bem verdade, que se refere permanentemente à existência de um tempo histórico, que se pode traduzir por

horizonte histórico o qual é requerido para se compreender uma dada tradição. Mas a compreensão não significa o deslocamento a esse tempo histórico. “Ao contrário, para poder nos deslocarmos a uma situação precisamos já possuir um horizonte” (Gadamer, 2008, p. 403 [310]).

Portanto, ter um horizonte significa estar situado em um ponto de um determinado tempo histórico que se desloca com o sujeito. Se para entender o outro eu preciso me deslocar para o seu tempo, significa que tenho que me deslocar junto com a minha própria localização no tempo, com o meu horizonte, e não como uma abstração de mim mesma.