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Famílias Picornaviridae e Flaviviridae

No documento Virologia Humana, 3.ª Edição (1) (páginas 107-111)

A síntese proteica nos picornavírus é iniciada a partir do reconhecimento de uma região de estrutura secundária complexa, independente de cap, denominada sítio interno de entrada de ribossomas (IRES, internal ribosome entry site), presente na extremidade 5′ UTR do genoma desses vírus. Nos flavivírus, que contêm cap na extremidade 5′, a tradução é iniciada pelo mecanismo dependente de cap comum aos RNAm da célula hospedeira. As consequências dessa diferença para a célula hospedeira e para a eficiência da expressão dos genes virais serão discutidas em outra seção deste capítulo.

O início e o prosseguimento da tradução das proteínas virais dependem de fatores celulares que reconhecem e se associam às estruturas secundárias no RNAm viral. Uma proteína celular importante para a tradução da poliproteína dos picornavírus é a poly(C) binding protein (PCBP), que se associa ao IRES e favorece a tradução. A participação da proteína celular que se liga à cauda poliadenilada (poly(A) binding protein – PABP) também é importante no processo de tradução, pois leva à aproximação das extremidades 5′ e 3′ do RNAm e aumenta a taxa de síntese proteica. Apesar de a cauda poli(A) estar ausente no RNAm dos flavivírus, duas regiões bem conservadas presentes na extremidade 3′ UTR (uma estrutura CS1, que contém o sinal de circularização, e a estrutura em grampo [stem loop, hairpin ou hairpin loop] da extremidade 3′ UTR denominada 3′ SL) são responsáveis pela aproximação das extremidades 5′ e 3′ e consequente circularização do RNAm. A forma circular do genoma dos flavivírus durante a replicação viral é essencial para a tradução da poliproteína e para a replicação do RNA genômico, como será discutido adiante.

Em geral, a síntese proteica acontece durante as primeiras três horas de infecção e leva ao acúmulo das proteínas virais no citoplasma da célula infectada. Modificações pós-traducionais em determinadas proteínas não estruturais virais, ou a presença de trechos de resíduos de aminoácidos básicos nessas proteínas, determinarão seu direcionamento para a face citoplasmática de membranas internas celulares (retículo endoplasmático, complexo de Golgi, endossomas modificados, etc.). Na maioria das vezes, o encaminhamento para estruturas de membrana acontece antes mesmo do processamento parcial ou total da poliproteína precursora, o que garante a localização conjunta de proteínas que desempenharão funções complementares ou formarão complexos proteicos funcionais durante a replicação viral.

Figura 4.4 Modelo de replicação dos vírus de RNA de polaridade positiva. São representados os modelos gerais dos vírus das famílias Picornaviridae (A) e Flaviviridae (B). A primeira etapa do ciclo replicativo desses vírus é a transcrição e a tradução de uma poliproteína precursora que contém todas as proteínas virais. Após o processamento da poliproteína, para a transcrição de um RNA complementar de polaridade negativa, a replicase viral (RpRd) utiliza o mesmo RNA positivo que foi molde para a síntese proteica. O RNA complementar de polaridade negativa será, por sua vez, molde para a transcrição de novos RNA genômicos. VPg = proteína viral ligada ao genoma; RpRd = RNA polimerase-RNA dependente.

Figura 4.5 Modelo de replicação dos vírus de RNA de polaridade positiva que apresentam RNAm subgenômicos. A primeira etapa do ciclo replicativo desses vírus é a transcrição e a tradução de uma poliproteína precursora que contém somente as proteínas virais não estruturais. Após o processamento da poliproteína, a replicase viral (RpRd) utiliza o mesmo RNA positivo, que foi molde para a síntese proteica, para a transcrição de um RNA complementar de polaridade negativa completo, que, por sua vez, será molde para a transcrição de RNAm subgenômicos (RNAmsg), que serão moldes para a tradução das proteínas virais estruturais; e transcrição de novos RNA genômicos de polaridade positiva. RpRd = RNA polimerase-RNA dependente.

Quando a poliproteína viral é processada, as proteínas não estruturais se associam ao RNAm viral para o início da transcrição da fita negativa de RNA, iniciando assim o processo de replicação do genoma viral (Figura 4.4A).

Uma regulação importante acontece nesse ponto. Já foi determinado para os picornavírus que é necessária a interrupção da tradução para que ocorra o início da transcrição. Quem regula esse processo de parada da tradução e início da transcrição é a associação da proteína precursora viral 3CD (protease + RpRd) à estrutura secundária na extremidade 3′ UTR, denominada clover leaf (trevo-de-três-folhas). Quando a 3CD se liga a essa estrutura e estabelece interações tanto com a PABP na 3′ UTR quanto com a PCBP na 5′ UTR, a tradução é inibida. A inibição da tradução acontece porque a 3CD promove o desligamento da interação da PCBP com o sítio IRES presente no 5′ UTR e, consequentemente, dele com a cauda poli(A) na extremidade 3′.

Dessa maneira, inicia-se a fase de transcrição dos genomas virais. A transcrição acontece em associação íntima à face citoplasmática de membranas perinucleares. Quem se associa a essas membranas é a precursora 3AB (3A + VPg), que está fortemente associada ao RNAm viral e se liga em 3CD. Essa ligação determinará a uridinilação do último resíduo do aminoácido carboxiterminal de 3B (precursor de VPg), originando assim o iniciador necessário para a síntese do RNA negativo. A 3AB é então processada, ficando VPg associada à extremidade 5′ do RNA recém-sintetizado. As novas moléculas de RNA negativo servirão como molde para a síntese de novos RNAm genômicos por um processo de formação do iniciador, idêntico ao citado para a síntese do RNA negativo. A existência das fitas negativas de RNA é sempre detectada sob a forma de intermediários de replicação, que são formados pela fita negativa mais a fita positiva de RNA.

Durante a fase de replicação, as sínteses das novas moléculas de RNAm genômico e da fita negativa complementar ocorrem em uma taxa de cerca de 30 a 70:1. O excesso de RNA genômicos em relação à fita negativa complementar garante quantidades suficientes de proteínas virais sendo sintetizadas e de RNA genômico para empacotamento nos novos vírions.

Nos flavivírus, a circularização do RNAm genômico é igualmente fundamental para o aumento da taxa de síntese proteica no início da replicação e para a mudança da fase de tradução para a fase de transcrição da fita negativa de RNA. As interações entre as extremidades 5′ e 3′ da molécula de RNAm são estabelecidas em cis via estruturas secundárias complementares presentes em cada extremidade. Conforme o precursor poliproteico se acumula durante a fase de tradução e as proteínas começam a ser processadas, há o aparecimento da RpRd viral (NSP5). A interrupção da síntese proteica e o início da transcrição da fita negativa de RNA são determinados pela ligação da NSP5 a uma estrutura secundária de grampo (stem loop) presente na extremidade 5′ UTR (denominada SLA). Uma vez associada, a NSP5 é transferida para a extremidade 3′ do RNAm exclusivamente por interações RNA-RNA. As novas moléculas de RNA negativo servirão de molde para a síntese de novos RNAm genômicos (Figura 4.4B). A NSP5 apresenta atividade cap metil-transferase, e é responsável pela adição da base 7-metil-guanosina à extremidade 5′ dos RNA recém-sintetizados.

Assim como acontece com os picornavírus, a síntese dos RNAm virais em relação à síntese dos RNA negativos é cerca de 10 a 100 vezes maior. Propõe-se que a síntese preferencial dos RNAm em detrimento dos RNA de polaridade negativa seja favorecida pela ligação da NSP5 ao SLA.

No documento Virologia Humana, 3.ª Edição (1) (páginas 107-111)