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GURUS E POETAS

2.5 O FAQUIR DE BURTON

Destaco que em fins do século XIX, nos tempos da rainha Vitó- ria, os ingleses, entre os quais Richard Burton, começaram a perder a fé no cristianismo (Kalla 1989), voltando os ouvidos para as respostas que os orientais davam para os problemas do mundo.

Por isto temos textos como os de FitzGerald ou Browning, que descrevem gurus como filósofos debruçados sobre a questão de existir. Burton também tem seus faquires25 que não distam dos místicos arredios que tomaram conta da Europa:

When a man appears as a Fakir or Darwaysh, he casts off, in process of regeneration, together with other worldly sloughs, his laical name for some brilliant coat of nomenclature rich in religious promise.26

25 Como já destaquei alguns parágrafos acima, meu uso dos termos guru e faquir como sinônimos tem a ver com a confusão que os autores do século XIX fizeram acerca do termo. Os faquires, a rigor, nada teriam que ver com gurus, posto que pretencem à tradição islâmica, ao passo que os últimos à hindu.

26 Quando um homem aparece como faquir ou dervixe, ele se livra, no pro- cesso de regeneração, junto com outros termos mundanos, do seu nome

Assim escreveu Richard Francis Burton (1994: 14) nos começos da famosa Narrativa pessoal de uma Peregrinação a al Madinah e Me- ca. Para que situemos o leitor, informo que o aventureiro inglês decidiu conhecer a cidade de Meca que, por aquele tempo era proibida aos olhos ocidentais. Bastante curioso e, por que não dizer, intrépido, Richard Burton escolheu fingir-se de dervixe ou médico afegão. Ao longo do texto, descobrimos seus disfarces que são descritos com cuidado.

Os relatos de viagem do escritor britânico são diferentes dos demais porque, como lembrou Said (2007), Burton sabia que os homens têm jeitos que outros homens podem imitar. Da mesma forma que Pedro Vermelho, o macaco do conto ―Um discurso para uma academia‖ de Kafka, decidiu imitar os homens para ser deixado em paz, Richard Bur- ton tentava emular naturezas diferentes catalogando os hábitos (mas não as essências, nosso aventureiro, curiosamente, não cria nelas) de outros povos.

Descontente com ser apenas inglês, aprendeu o árabe e outras tantas línguas, estudou as suas literaturas e viveu entre nativos para tornar-se um. Por esta razão, os seus relatos não são como os dos outros. Apesar das notas abundantes em seu trabalho, não quer traduzir os nati- vos nos termos culturais ingleses, mas em relação com eles.

Burton é um esquizofrênico.

A primeira vez que se vestiu de outro, foi quando fingiu-se de mercador afegão para investigar a pederastia nos bordéis de Karachi.

Se acreditamos no capitão inglês, seu disfarce foi um sucesso (Burton 1903 (?) vol. 10). Quando foi à Meca, disfarçado de médico, místico e erudito árabe, recebeu gente de todo o tipo que lhe batia à porta procurando conselhos ou remédios. Os disfarces de Burton jamais foram descobertos.

Podemos perceber, lendo A Kasīdah, o quanto a multiplicidade dos mundos afetou Richard Burton.

O faquir de Richard Burton, que é ele mesmo, está longe do he- rói byroniano ou do curandeiro malfeitor. Em Burton, é um caminho para o mundo nativo. O próprio Burton é uma figura liminar à maneira do guru de Kipling, porque não é um Ocidental (na medida em que des- preza e é desprezado pelos seus) e não é um Oriental (posto que nascido laico em favor de um brilhante apelido rico em promessas religiosas. Tradu- ção minha?

na Inglaterra). Esta liminaridade que se parece àquela que teorizou Vic- tor Turner em O processo ritual, é o entre-lugar em que ―se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte‖.

É o espaço em que Burton promove ―classificações periódicas da realidade e do relacionamento do homem com a sociedade, a nature- za e a cultura‖ (Turner 1974: 156).

Este espaço de liminaridade é o que o aventureiro escolheu para espalhar os elementos entrópicos dos seus trabalhos.

Isto posto, lembro que a figura do faquir serve, para Burton, como dispositivo de deslocamento. Está imerso, sempre, numa atividade tradutória febril, posto que na pele do sábio persa, o capitão inglês ―ex- perimenta‖, ou julga fazê-lo, o ponto de vista nativo. É quase uma ativi- dade xamânica que tem a ver com a tradução.

Neste ponto, para prosseguir, resgato algumas conclusões do perspectivismo ameríndio para mostrar que Richard Francis Burton não está longe do xamanismo das terras altas amazônicas.

A verdade é que, de acordo com os indígenas, são muitos os ―sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem [o mundo] segundo pontos de vista distintos‖ (Viveiros de Castro 2002: 347). O perspectivismo, que é um multinaturalismo, diz Viveiros de Castro, não é um relativismo.

Os seres, desde homens a bichos ou árvores, representam o mundo diverso partindo de alguma ―unidade fenomenológica‖ (Viveiros de Castro, 2002: 379). A perspectiva não é prerrogativa do espírito, mas do corpo. O xamã, verdadeira exceção à regra, é capaz de ocupar, se necessário, as perspectivas de outras criaturas. A troca de perspectivas é chave importante para o entendimento indígena do mundo. Pensemos, por exemplo, o matador tupinambá e o pedaço do inimigo que, quando devora, modifica-lhe o corpo permitindo-lhe, entre outras coisas, um novo nome. Ou o xamã wari‘ que se torna um jaguar.

Seu trabalho [o do xamã amazônico] é, diz Manuela Carneiro da Cunha (1998), reconstruir sentidos, porque, viajante de outros mun- dos, comunica-os através duma linguagem peculiar, ordenando-os e fazendo-os inteligíveis. É um apaixonado da tradução porque constrói uma copiosa rede de significações e as ordena de forma a compreender o mundo. Para Viveiros de Castro (2002: 358):

o xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-

específicas, de modo a administrar as relações en- tre estas e os humanos.

Trata-se, portanto, de transcrição numa língua alternativa, não raro feita mais de gestos que palavras. O sucesso xamânico é o do conhecimento.

Daí dizer também Viveiros de Castro: ―O xamanismo é um mo- do de agir que implica um modo de conhecer‖ (p. 358), que é tomar a perspectiva do outro, seu ponto de vista. Por isso as relações entre o xamã e os animais são tão estreitas.

Descola (1998) anota sobre o xamanismo ameríndio que atesta os bichos e plantas como legítimos interlocutores, porque repartem o mesmo plano ontológico com os homens. O feiticeiro é doutrinado pelas recordações das suas viagens. Homem sem mundo, porque enxerga as diligências dos seus e dos bichos, prescinde de toda a realidade.

Mais que isso, rabisca a vida toda um livro inexistente (perdoe- me o leitor a metáfora excessivamente gasta), um manual dos viveres de todas as criaturas, interferindo, diretamente, no mundo, porque agente sem prévio rosto ou desenho, viajando, transformando-se, transforman- do.

Que tem tudo a isto que ver com Burton? Que têm índios e bi- chos a ver com o escritor britânico?

Para dizer a verdade, se vamos construindo uma nova versão, uma outra imagem de Richard Burton, tudo isto tem relação com o tra- dutor das Mil e uma noites. Burton, que viveu às margens, que viveu nos interstícios das culturas, se parece com o xamã ameríndio. Mais que viajar para muitos lugares, Richard Burton arriscou experiências com o ponto de vista nativo.

Naturalmente, desenvolveu certa sensibilidade para com a histó- ria dos povos dominados pelos ingleses. Por esta razão, em poemas como Stone Talk (1865), faz críticas veementes ao império britânico, arrolando as desgraças que impuseram a todos os povos do mundo. Per- gunto: é possível que um homem experimente outras racionalidades?

Se não, ao menos podemos tentar entendê-las como fazem os antropólogos. Isto quer dizer, mais ou menos, que penso que o Burton que escreveu a Kasīdah foi mais árabe que inglês. Decerto, não de todo árabe. Basta lembrar o livro terceiro do poema de inspiração darwinista. A teoria evolucionista não é o cerne do texto, como alguns quiseram, mas um elemento de ligação entre os rostos árabe e inglês de Burton.

Mas por que um britânico, no auge do Império, brincava de na- tivo? Por que se meter no lugar dessa gente humilhada? Salman Rushdie (2007: 246), escrevendo sobre um amigo diplomata, recordou-lhe dizer:

O segredo da diplomacia é estar parado na estação quando o trem chega. Se você não estiver na esta- ção, não reclame de perder o trem. O problema, claro, é que o trem pode chegar a muitas estações, então dê um jeito de estar em todas.

Burton, como bom xamã, como bom diplomata, percorreu todas as estações que pode. Percebeu que ser inglês não passa duma alternati- va. Por isso, quando fingiu-se de árabe, fingiu a dor que deveras sentia.