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BURTON E SEUS MÚLTIPLOS

B) as posturas apologética e analógica dos tradutores; C) as inquietações morais que os seus versos suscitam.

4.3 COMO HĀJĪ ABDŪ EL-YEZDĪ VÊ O MUNDO

4.3.1 O perspectivismo leibniziano de Richard Burton

Existe uma longuíssima história do relativismo que começa com os sofistas, com a sentença célebre de Protágoras: ―o homem é a medida de todas as coisas.‖ Todavia, o perspectivismo, tal qual o desenvolveram Leibniz e Nietzsche, não é um relativismo.

Os trabalhos de destes dois filósofos alemães, explico adiante, e, nos dias de hoje, a descrição do perspectivismo ameríndio (que datam dos relatos dos primeiros contatos dos indígenas com os europeus) são diferente do relativismo cuja história começa com os gregos.

Digamos que o pensamento de Hājī Abdū El-Yezdī é leibnizia- no. De acordo com Gilles Deleuze, o perspectivismo do filósofo alemão tem uma particularidade. Ao invés de acreditar que o sujeito contrói o ponto de vista, Burton/ Hājī Abdū El-Yezdī pensam com Leibniz que é o ponto de vista que constrói o sujeito. Assim, a equação ―eu=ponto de vista‖ é perfeitamente válida.

Podemos pensar que se parece também ao perspectivismo de Nietzsche. Escreveu Deleuze (2006: 152):

Não estou seguro de que os dois tipos de questão possam ser conciliados. O senhor diz que a ques- tão: que é? precede e dirige o que está em questão nas outras. E que estas outras, inversamente, per- mitem dar-lhe uma resposta. Antes de tudo, não seria o caso de temer que, começando-se pelo que é?, não mais se possa chegar às outras questões? [...] Os dois tipos de questão parecem-me implicar métodos que não são conciliáveis. Por exemplo, quando Nietzsche pergunta quem, ou de qual pon- to de vista, em vez de "o quê", ele não pretende completar a questão que é?, mas denunciar a for- ma dessa questão e de todas as respostas possíveis

a essa questão. Quando pergunto que é? suponho haver uma essência atrás das aparências, ou, pelo menos, algo último atrás das máscaras. O outro ti- po de questão, ao contrário, descobre sempre ou- tras máscaras atrás de uma máscara, deslocamen- tos atrás de todo local, outros "casos" encaixados num caso.

Nada poderia definir melhor a questão do perspectivismo em Burton: que máscara há por trás da máscara de Hājī Abdū El-Yezdī? Não há essência, decerto. Mas pontos de vista:

There is no Good, there is no Bad; these be the whims of mortal will: What works me weal that call I ‗good,‘ what harms and hurts I hold as ‗ill:‘ They change with place, they shift with race; and, in the veriest span of Time,

Each Vice has worn a Virtue‘s crown;

all Good was banned as Sin or Crime: (Burton 1924: 59)

Poderia verter os versos de Burton nas quadras que não escreveu, por- que registrou os pensamentos em duas estrofes com dois versos longos. Prefiro, todavia, arriscar uma versificação diferente. Vejamos: meu pon- to é: creio que seja possível que vertamos perspectivas mais que textos. Então, se a ideia do trabalho de Burton é a ira, se o que informa A Kasī- dah é sua fúria contra o colonizado (não esqueçamos que assumiu, para escrever o livro, o ponto de vista do nativo), então, temos de vazar seu texto conforme escreveu Peter Sloterdijk (2012), que escreveu que a ira não cabe no verso fechado. De acordo com o filósofo alemão, é por isto que o salmos, que são uma coleção de maldições contra os inimigos de Israel, foram vertidos em linhas longas, em versos livres, por Martinho Lutero e seus subsequentes tradutores. Se tentássemos ―fechar‖ os ver- sos de Burton em quadras comportadas, de dez versos cada, estaríamos longe de expressar sua perspectiva. Por esta razão, os versos de Burton estão cheios de ―erros‖ métricos que Kalla (1989) registrou. Não se trata, como escreveu o estudioso, de descuido ou pressa. Trata-se de ira. De furor. Adiante, em capítulo apropriado, explico com mais detalhe meu trabalho de tradução.

O texto de Burton, que é um texto irritado, quase não se susten- ta dentro da forma métrica que escolheu que, muitas vezes, falha. A

contagem das sílabas quase nunca dá certo, porque o trabalho de Burton é irregular. Conheceu o verso árabe, conheceu o verso inglês, escreveu com competência a respeito, mas não os praticou porque não lhe impor- tavam quando escreveu A Kasīdah. O que lhe valia, então, era a ira. A briga e o combate. Então, traduzo assim as duas quadras:

não há bem não há mal são frescuras da vontade mortal àquilo que me dá prazer eu chamo bem

àquilo que me fere eu digo mal

bem e mal mudam com o lugar mudam com a raça

mudam com o tempo e todo vício já foi virtude todo bem já foi desgraça

Vejamos. Que quer dizer Burton? Que são as perspectivas que contam. Que são elas que valem alguma coisa. É o ponto de vista que constrói o sujeito determinando-lhe o mundo. Por esta razão, pode escrever também:

All Faith is false, all Faith is true: Truth is the shattered mirror strown In myriad bits; while each believes his little bit the whole to own.

Que traduzo por:

toda fé é falsa toda fé verdadeira

a verdade é um espelho arrebentado em cacos

cada um crê que o seu

tem toda a verdade

E o têm, de fato. Por isto Burton é leibniziano. O filósofo alemão, diz Deleuze (2013), acreditava que, de toda mônada, podíamos espiar o

mundo todo. Toda perspectiva gera o mundo inteiro. Deleuze mostrou-o também em seu curso acerca de Leibniz.

O filósofo francês escreveu: ―Eu exprimo todo o mundo, mas obscuramente e confusamente, como um clamor.‖ (Deleuze 2013: 170)

Com Burton, é isto mesmo. Todo seu trabalho é um clamor confuso e raivoso, obscuro, por assim dizer. De vez em quando, esclare- ce Deleuze, conseguimos exprimir uma porção mínima do mundo, clara e distintamente, que todos os outros sujeitos exprimem obscura e confu- samente.

Da mesma forma, exprimimos com confusão parcelas do mun- do que os outros exprimem com clareza. Seja como for, exprimimos o mundo todo. A obra de Burton, porém, a parte que nos importa, é um clamor, um grito. Lembro que, em algum lugar, Kazantzakis escreveu que sua vida foi um grito e sua obra a explicação deste grito. Não vejo melhor caracterização de Burton.

O perspectivismo do escritor britânico não deixa que pensemos num mundo, mas em mundos plurais. Esta riqueza é fruto das experiên- cias múltiplas de Burton como nativo em outras partes do mundo que não a Inglaterra.