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BURTON E SEUS MÚLTIPLOS

B) as posturas apologética e analógica dos tradutores; C) as inquietações morais que os seus versos suscitam.

3.3 FRANK BAKER, O TRADUTOR

Vimos dois dos autores que escreveram A Kasīdah: primeiro, um orientalista heterodoxo, sir Richard Francis Burton, ocupado em ―naturalizar‖ (para usar um termo de Lefevere [1992]) um gênero poéti- co oriental, isto é, fazê-lo popular entre os ocidentais; depois, seguimos por um místico arredio, um porta-voz da cultura do Oriente, Hājī Abdū El-Yezdī.

Vamos, agora, seguir por outro dos autores que participaram da escritura de A Kasīdah: Frank Baker, seu tradutor.

Este já aparecera em 1865, como autor dum poema bastante ex- cêntrico, Stone Talk ou Papo de Pedra, como traduzo. Burton, com

quarenta e tantos anos, escreveu o poema atrevido em que atacava, co- mo em A Kasīdah, todo mundo. Então, já tínhamos um poema furioso. Entretanto, os versos de Stone Talk jogavam mais com a ironia que com os ataques diretos. Em um breve resumo, trata-se de um longo poema em que certo Dr. Poliglota (a personagem pode ser outro desdobramento de Burton) conversa com uma pedra que é a encarnação de um sábio hindu.

O tradutor, então, por seu temperamento iracundo, escolheu verter o poema raivoso do seu mestre, que levava às últimas consequên- cias a ironia de Stone Talk.

Mas quem é Frank Baker? Não podemos saber; sobram poucas informações a respeito. Dizemos, apenas, que se trata duma sorte de ―duplo‖ de Richard Francis Burton: assinou Stone Talk, como Dr. Poli- glota F. B.; quer dizer: sabia tantas línguas quanto Burton e Hājī Abdū El-Yezdī; depois, traduziu A Kasīdah do árabe; era um tradutor das línguas orientais.

Frank Baker, então, escreveu um poema e verteu A Kasīdah. Existe, todavia, outro ponto em que o capitão inglês e o tradutor do poema se parecem: nas estratégias de tradução. Por aí, podemos também afirmar, que a teoria tradutória de ambos é a mesma. Tento esboçá-la a seguir, por meio dum resgate das versões de Burton e do quanto escre- veu a respeito. Para concluir, mostro como as opiniões tradutórias de Burton se parecem à prática de Frank Baker.

3.3.1 Os tradutores Richard Burton e Frank Baker

Vamos começar pelo Kāmasūtra, famosa obra da literatura sânscrita, atribuída a Vātsyāyana e cuja tradução Richard Burton assi- nou.

Pouco se sabe a seu respeito, apenas que viveu entre os séculos I e VI da nossa era. Há boatos (como esclarece Arbuthnoth na ―Introdu- ção‖ ao livro [1883-1825]) de que viveu com prostitutas; outros, arris- cam que foi um asceta.

Burton não traduziu o Kāmasūtra sozinho. Para dizer a verdade não o traduziu. Um seu amigo, F. F. Arbuthnot (1833-1901), que, entre outras coisas, escreveu alguns livros sobre mitologia e sexo, também participou do processo. A verdade é que foi um orientalista. Apoiados num texto estabelecido por um bom erudito a partir de quatro versões, Arbuthnot e Burton partiram para a tradução. Ben Grant (2009) mostrou que se costuma divulgar de que forma os amigos buscaram minimizar a participação do erudito hindu na construção e edição do Kāmasūtra,

manipulando o trabalho de Vātsyāyana e impondo a própria autoridade política. Quer dizer, a despeito do esforço do intelectual nativo, sem o trabalho de ―crítica‖ e ―organização‖ dos europeus, a edição teria pouca valia. Isto é um lugar comum do colonialismo.

O processo de tradução, porém, foi muito mais conturbado. O próprio Grant (2009) descreveu que se acredita que, na verdade, dois eruditos hindus verteram o Kāmasūtra do sânscrito para uma linguagem moderna que, depois, um amigo comum de Arbuthnot e Burton traduziu para o inglês.

O famoso capitão inglês, aventureiro e tradutor das Mil e uma noites, entre outras tantas coisas, foi responsável por dar revisar a versão final do texto e encorajar Arbuthnot que escreveu a introdução e muitas notas. Todavia, ainda hoje conhecemos a versão ―de Burton‖ do Kā- masūtra. O nome do seu colega nem mesmo aparece em algumas edi- ções. Mas, se Burton, não traduziu, porque recordei este exemplo? Bas- tante simples: adotar a tradução, ainda que alheia, dum livro pornográfi- co e polêmico tem muito a ver com o autor britânico. Burton não foi de todo desonesto. Jamais afirmou: ―eu verti o livro hindu‖. Tampouco o negou. Emprestou o nome para servir de saco de pancadas aos críticos vitorianos que detestataram o trabalho, como mostrou Bem Grant (2009).

Frank Baker, o tradutor que Burton inventou, também empres- tou o nome a Hājī Abdū El-Yezdī, divulgando as ideias do escritor entre os vitorianos.

Em vários trechos do Jardim Perfumado, um manual de erotis- mo árabe, que Richard Burton, parece, traduziu duma versão francesa, o escritor britânico sugere trechos de Rabelais para substituir uma tradu- ção literal. As sugestões são postas em notas ou no próprio corpo do texto. Também na sua versão das Mil e uma noites, que tem milhares de notas, Richard Burton sugere as mesmas aproximações, num jogo arris- cado de simetrização das relações, sem dizer que sejam os costumes árabes piores ou melhores que os nossos.

Frank Baker, o tradutor de A Kasīdah, faz exatamente a mesma coisa ao longo do poema. O tempo todo faz ligações com a cultura oci- dental, numa tentativa desesperada de aproximar os árabes dos euro- peus, como, por exemplo, no livro quinto, quando depois de criticar as religiões asiáticas, ataca ferozmente também as religiões ocidentais, tentando colocar tanto ocidentais como orientais do mesmo lado: todos seriam crédulos.

Frank Baker é um alter ego do escritor britânico, do Richard Burton tradutor.

Temos três autores, então, para o poema A Kasīdah, um livro múltiplo, escrito a partir de vários pontos de vista, o que ilustra o pers- pectivismo de Burton que descrevo no próximo capítulo, no qual tam- bém comparo as visões acerca da existência que têm FitzGerald, Burton e Browning, com o propósito de mostrar que seus trabalhos fazem parte da rede textual que chamei de gurumania.

Capítulo IV

AS INVENÇÕES VITORIANAS: FitzGerald X Burton X Browning

Neste capítulo tenho por intenção descrever as posturas de FitzGerald perante a existência, apoiadas todas elas naquilo que acredi- tava ser a filosofia de Omar Khayyám, um poeta persa medieval. Faço-o por meio da leitura de sua tradução das Rubáiyát de Omar Khayyám. Depois, comparo suas concepções de mundo às de Richard Burton em A Kasīdah e de Robert Browning em ―Rabbi ben Ezra‖, para mostrar que, de uma forma ou de outra, estão interligadas por meio daquilo que cha- mei, no capítulo 2, de gurumania. É bom lembrar que o poeta persa de FitzGerald é, segundo Zare-Behtash (1994), uma invenção vitoriana: o tradutor, quando descobriu as Rubáiyát deu pouca importância para a literatura persa, ocupando-se antes em ilustrar o próprio epicurismo que verter a perspectiva de Khayyám.

Meu propósito é mostrar que Richard Francis Burton escreveu contra FitzGerald, esclarecendo que teria escrito A Kasīdah, de fato, na velhice, isto é, depois da tradução do poeta persa.

Divido este meu capítulo nas seguintes partes. Na primeira, começo descrevendo a vida de Omar Khayyám e as suas Rubáiyát como são compreendidas por eruditos e estudiosos na atualidade, para depois mostrar de que forma diferem das quadras de FitzGerald. Depois, na segunda parte, sigo por um bosquejo acerca da vida de FitzGerald que tem muito a ver com as quadras que traduziu. Assim, interpreto as Ru- báiyát, como uma ―invenção vitoriana‖ (Zare-Behtash 1994) e a descri- ção dum poeta persa que jamais existiu, porque muito diferente do Omar Khayyám medieval. A seguir, na terceira parte, oponho as visões de vida de Richard Burton às de FitzGerald, pondo às claras que A Kasīdah é um poema POSTERIOR à tradução das Rubáiyát; enquanto que o último é um poema epicurista, o primeiro é um violento arrozoado con- tra o mundo. Neste momento, também descrevo o perspectivismo de Richard Burton, tal qual aparece em A Kasīdah. Para terminar, na últi- ma parte, ilustro meu argumento acerca da rede de textos de gurus, opostos uns aos outros, e que chamo gurumania, por meio da interpreta- ção do poema ―Rabbi ben Ezra‖, de Robert Browning, escrito depois de

FitzGerald e de Burton, e que apresenta aos vitorianos outra alternativa frente à desgraça da vida.