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3 ENTRE TRAFICANTES, POLÍTICOS E BACHARÉIS: AMIZADE, FAMÍLIA

3.3 ENTRE A EUROPA E O BRASIL, A VIDA E OS NÓS ACONTECEM E SE

3.3.1 Fazendo amigos com livros

Não era apenas a política que unia esses dois amigos políticos, Zeferino e Pedro de Araújo Lima: os livros faziam parte dos favores entrelaçados com a criação dos filhos. Em 16 de abril de 1824, Zeferino escrevia carta falando de José Faustino dos Santos; mas, pedia encomendas, para as quais, receberia dinheiro através do Sr. Martin Laffitte491. As indicações das compras são tão curiosas que deixaremos quem lê saber de algumas: “um prato de vidro para uma pequena máquina elétrica [...]”, “um relógio de ouro, que custe até oitenta mil réis”, “o manual de eletricidade”, “os melhores, e mais modernos publicistas, e economistas políticos, que tem aparecido”; mas, “adverte-se que não devem vir Montesquieu”492. Ou seja: Zeferino confiava na experiência e leitura do amigo, que era bom leitor, para mandar-lhe o que havia de melhor, na Europa, sendo estudado, sobre política. Já deveria conhecer os livros de Montesquieu, tanto as “Cartas Persas” como “O Espírito das Leis”, obras pedidas por Pedro de Araújo Lima, quando estudante em Coimbra. Araújo Lima responde a missiva enviando as encomendas: “achará entre os livros o que há de melhor sobre cada um dos ramos que compõem a ciência do governo493”.

488 MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Caneca ou a outra Independência. In: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei

Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: 34, 2001, p. 46.

489 IHGB. Arquivo Marquês de Olinda. DL. 211.13. Carta de Manoel Zeferino dos Santos para Pedro de

Araújo Lima. Pernambuco, 2 de setembro de 1825.

490 CAMARA CASCUDO, Luiz da. O Marquez de Olinda e seu tempo (1793 – 1870). Op.cit., p. 99.

491 IHGB. Arquivo Marquês de Olinda. DL 211. 13. Carta de Manoel Zeferino dos Santos para Martin Lafitte.

Rio de Janeiro, 16 de abril de 1824.

492 IHGB. Arquivo Marquês de Olinda. DL 211.13. Carta de Manoel Zeferino dos Santos a Pedro de Araújo

Lima. Rio de Janeiro, 16 de abril de 1824.

493 IHGB. Arquivo Marquês de Olinda. Lata 210 Documento 26. Carta de Pedro de Araújo Lima para Manoel

Pedro de Araújo Lima era um aficionado por livros. Os amigos encomendavam, a ele, esses itens, por saberem do seu apreço. Em 1843, J. J. Young, que não sabemos quem seja, envia missiva sobre encadernações de obras. Comenta as encadernações francesas serem atacadas por bichos e as inglesas serem “livres desta peste494”. Como a organização do arquivo que acondiciona a documentação de Pedro de Araújo Lima, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, junta, em pastas, matérias diversas, não temos como saber se as folhas de catálogos de editoras francesas, acondicionadas junto à carta de Young, são partes de um mesmo documento. Entretanto, parece que não. Algumas páginas são, presumíveis, da década de 1850. Talvez, Araújo Lima tivesse correspondentes na Europa que fizessem, para ele, transações de envios de volumes.

Pedro de Araújo Lima parece que se interessava por tudo. Autores eram variados: Descartes, Fleury, Flavius Joseph, Platão (República), Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Políbio, Robertson, Guicciardini, Machiavelli, Santo Ambrósio, Tertuliano, Santo Agostinho, São Bernardo, Lamartine. De Santo Agostinho, anotou, em francês: “Confissões” e “Meditações”. Se interessava por “Dicionário português, ultimamente publicado por Lacerda Bispo do Porto”, Obras dos Freis Francisco de S. Luis, Garção, Padre Caldas e do Bispo D. J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. Também parecia interessado nas “História de Portugal” e “História da Inquisição”, de Herculano. As “Ordenações Filipinas” faziam parte do jogo da possível biblioteca do político. Também incluía a tradução em português do “Concílio de Trento”495. Pelo visto, grande parte do que pediu, ou leu, não sabemos se comprou, realmente, é de livros ligados à religião; talvez por ser um canonista, Araújo Lima estivesse interessado nisso tudo.

O nome do bispo, que foi de Olinda, Azeredo Coutinho, não espanta, nesse rol. Jaime Rodrigues já havia bem lembrado: para o prelado, “o tráfico, provedor da mão de obra, deveria acabar gradualmente, na medida em que os avanços técnicos fossem introduzidos496.” Rodrigues ainda indica ser “a gradualidade defendida por Azeredo Coutinho [...] uma maneira de defender o tráfico dos ataques que vinha sofrendo497.” Para um político que estava todo

494 IHGB. Arquivo Marquês de Olinda. Lata 211 Doc. 20. Carta de J.J Young para Pedro de Araújo Lima.

Londres, 1 de dezembro de 1843.

495 IHGB.Arquivo Marquês de Olinda. DL . 211.20. Anotações e catálogos de livreiros europeus.

496 RODRIGUES, Jaime. O Infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o

Brasil. (1800 – 1850). Campinas: UNICAMP, 2000, p. 34.

imerso na malha do tráfico, nada melhor do que uma boa bibliografia para justificar o seu argumento, mesmo que o texto não fosse do bispo, mas, atribuído a ele498.

Uma das obras que aparece, também, naquela lista, é “La Cabane de l’oncle Tom”, por Madame Beecher Stowe. Se tratava, nada mais, nada menos, que uma tradução para o francês do famoso livro abolicionista “A Cabana do Pai Tomás”, que, inclusive, foi lido por Joaquim Nabuco499. Segundo Ricardo Alexandre Ferreira, a obra “Uncle Tom’s Cabin, or Life among the Lowly” foi publicada nos Estados Unidos em 1852500 e em 1853 já havia tradução para a língua portuguesa501. Não sabemos se Pedro de Araújo Lima leu esse romance, ou, apenas, estava citado dentro das listas e catálogos recebidos. Se tiver lido, ou, ao menos, estivesse em sua biblioteca, Araújo Lima tenderia a conhecer as duas faces da moeda: a dele, de escravista e a do outro, abolicionista. Como ávido leitor, pode ter, ao menos, passado os olhos naquelas páginas.

Chama atenção do investigador que se depara com esse documento, alguns livros descritos em francês, como “Pneumatologie – Des esprits et leurs manifestations fluidiques – Memoire adressé a l’Academie par J. Eudes de Mirville502” e “Moeurs et pratiques des démons ou des esprits visiteurs, d’après les autorités de l’Église, les auteurs païens, les faits contemporains, etc, par M. le Chev. Gougenot des Mousseaux, auteur de Dieu et les Dieux, ou Un voyageur Chrétien devant les objets primitifs des cultes anciens503”504. Anotado, separadamente, Araújo Lima parece ter se interessado, também, pelo “Dieu et les Dieux”.

Pelos títulos acima, percebe-se que Araújo Lima, talvez, estivesse interessado nas maneiras de religião bem heterodoxa, divergindo de como a Igreja Católica pensava os espíritos. E se observarmos os outros autores da lista que apresentamos, faz todo sentido: Pedro de Araújo Lima estava estudando os espíritos e suas interações com os vivos. Dentre os livros descritos na documentação, como as “Confissões”, de Santo Agostinho, podemos indicar a

498 Rafael de Bivar Marquese e Tamis Parron falam sobre isso: MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, Tamis.

Azeredo Coutinho, Visconde de Araruama e a Memória sobre o comércio de escravos de 1838. In: Revista de

História. São Paulo, Nº 152, 2005, pp. 99 – 126.

499 BETHEL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. Introdução. In: BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo

de. Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos – correspondência 1880 – 1905. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2008, p. 15.

500 FERREIRA, Ricardo Alexandre. Prefácio: A parábola do Bom Senhor: Escravidão, fé e martírio. In: STOWE,

Harriet Beecher. A cabana do Pai Tomás. Barueri: Amarilys, 2016, p. 7.

501 Idem, p. 20.

502 Em tradução livre: “Pneumatologia – Espíritos e suas manifestações fluídicas – Memória dirigida a Academia

por J. Eudes de Mirville.

503 Tradução livre: “Costumes e práticas dos demônios ou espíritos visitantes [em tradução literal “espíritos que

vagam”], de acordo com autoridades da Igreja, autores pagãos, fatos contemporâneos, etc., pelo Sr. Chev. Gougenot des Mousseaux, autor de Deus e os Deuses, ou um viajante cristão diante dos objetos primitivos dos cultos antigos.”

afirmação anterior. O bispo de Hipona observou a alma, com foco na alma humana505. E se encontramos, também, Platão, dentre os autores, ele estava, possivelmente, seguindo ideias umas após as outras, já que Agostinho de Hipona foi um dos intérpretes do filósofo grego506.

Todavia, não viemos, até agora, para, simplesmente, provar a erudição de Pedro de Araújo Lima, que já era notável entre os sujeitos do Oitocentos. O que nos interessa, nesse jogo de bibliografias extensas, que só demonstramos singelo fragmento, é: Pedro de Araújo Lima parece desviar-se do catolicismo romano mais ortodoxo, se afastando da religiosidade propagada pelo Papa. E, se assim for, outro seu companheiro das Cortes de Lisboa seguia caminho semelhante: Padre Diogo Antonio Feijó. Mesmo que as obras sobre espíritos e demônios, em suas manifestações, possam ser da década de 1850, demonstram o gosto pela outra visão de religião. Araújo Lima deve ter conversado com Feijó, entre as décadas de 1820 e 1830. Deve ter expressado suas ideias; e o sacerdote de Itu, também. Mas, para encerrar esse assunto: só para recordar, dentre outras ideias pouco ortodoxas do padre Feijó, estava o fim do celibato sacerdotal, que incomodava o bispo D. Romualdo desde 1826, quando o padre- deputado de Itu o procurou para prosear sobre o problema507. Pedro de Araújo Lima pode ter conversado com o padre sobre isso, e, até o apoiado. Talvez, um dos motivos para que Diogo Antonio Feijó tenha chamado Pedro de Araújo Lima ao seu lugar, em 1837, de Regente do Império, seja afinidade de algumas ideias; além de Araújo Lima não fazer oposição a ele na Câmara, como fizeram Vasconcellos e Hollanda Cavalcanti. Talvez, o regente de 1835 pensasse que o seu sucessor pudesse implementar, com mais força, os pensamentos religiosos. Então, poderia ser esse o segundo motivo da simpatia entre os dois regentes: a partilha dos dias de Cortes, em Lisboa, e a afinidade de pensamento religioso. E apenas para reforçarmos o nosso argumento: em 1870, quando da morte de Araújo Lima, alguns chegaram a dizer: ele havia sido chamado “perante o tribunal da divina justiça” para dar conta do apoio à “questão do esbulho das propriedades das ordens religiosas508.” Nem ele ou a Igreja deveriam se dar muito bem.

Mesmo com tudo isso, a lista de obras possivelmente armazenadas na biblioteca de Araújo Lima é extensa, com tantos outros livros. Se fez fama de estudioso, era por ter lido muito e conhecido gente que, igualmente, se interessava pela leitura. E, pelo visto, os livros aproximavam as pessoas. Zeferino deveria ser um, dentre tantos, a pedir páginas e mais páginas por indicação e saber. Assim, ao que parece, o hábito do estudo forjava o político hábil e

505 NIEDERBACHERS, Bruno. A alma humana: o caso de Agostinho para o dualismo corpo-alma. In: MECONI,

David Vicent; STUMP, Eleonore. Agostinho. São Paulo: Ideias & Letras, 2016, p. 161.

506 GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2010, p. 25. 507 SOUSA, Otávio Tarquínio de. Diogo Antonio Feijó. Brasília: Senado Federal, 2015, p. 92. 508 HEMEROTECA DIGITAL. Diario de Pernambuco. Recife, 21 de julho de 1870. N° 162.

refinado. As alianças se faziam ao sabor dos interesses políticos; entretanto, o ser político passava pelas páginas lidas, escritas, copiadas e pensadas. Araújo Lima não deveria ser qualquer um naquele mundo de tantos analfabetos. Ostentava erudição. E o saber nunca deixou de ser uma riqueza. E foi pela natureza dos estudos e trabalhos que o Instituto Histórico da França o fez Sócio Correspondente de 1ª Classe (História Geral), na década de 1830, através de convite de Eugene Garay de Monglave509, o colocando como uma das celebridades governamentais do Brasil. Assim, o saber de Pedro de Araújo Lima ultrapassava as fronteiras nacionais, chegando a ser reconhecido na Europa.

Não esqueçamos: o estreitamento de laços entre Manoel Zeferino dos Santos e Pedro de Araújo Lima se deu entre a Europa e o Brasil, com o traçado dos filhos, da política e dos livros. Em 4 de novembro de 1826, Araújo Lima chegava ao Engenho Antas, às nove da noite, depois de ter passado entre França e Itália. Em 5 de março de 1827, partia do engenho para o Recife, levando três escravos: Noque, João José e Francisco Cozinheiro. Embarcou para o Rio de Janeiro em um brigue francês, armado em guerra, aos 26 de março de 1827, chegando no destino final em 15 de abril de 1827. Estava eleito deputado geral510.

3.4 ENTRE A CÂMARA E O CURSO JURÍDICO DE OLINDA: FAVORES, AMIZADE E