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O romance A audácia dessa mulher (1999) traz ao leitor um trabalho de intertextualidade e reescrita de um famoso texto literário brasileiro: Dom Casmurro. Não é a única releitura desse texto. Tivemos, pela mesma época, dois outros textos que buscaram dialogar com a obra machadiana: Capitu: memórias póstumas, de Domício Proença Filho (1998), e Amor de Capitu, de Fernando Sabino (2003).

Entretanto, a obra de Ana Maria Machado, objeto de estudo deste trabalho, consegue acrescentar ao texto a versão de Capitu sobre o seu possível adultério. É também dentre os três, a produção mais significativa adversa à lógica patriarcal existente sob o ponto de vista do narrador Bento Santiago. Trata-se de uma contraleitura que compara épocas diversas, gerando um contradiscurso.

A audácia dessa mulher traz, em seu próprio enredo, um contraponto a respeito do papel da mulher no século XIX e no final do século XX. O ponto de partida do romance é, como dissemos no capítulo anterior a criação de uma minissérie televisiva ambientada nos anos de 1800, em que Bia e Virgílio são convidados a participar. Ela, escritora de textos de viagem; ele, cozinheiro e dono de restaurante. Para justificar-lhes a presença na produção, o autor da série esclarece:

Acho que pode ser um contraponto interessante ter vocês dois conosco. Não só porque podem nos ajudar com o fim do século XIX, mas também porque, de certo modo, os dois encarnam muito bem este fim do século XX. Não sei se todo mundo reparou, mas é muito divertido ter esta oportunidade. Vamos contemplar uma época, afinal de contas, não tão distante (...), numa cidade que todos conhecemos porque moramos aqui, e apesar de toda essa proximidade podemos constatar que, embora a paisagem urbana da época tenha se transformado muito, o que realmente mudou mais fomos nós, as pessoas que aqui vivemos. E o Virgílio e a Bia representam isso melhor do que ninguém. (MACHADO, 1999a, p.17).

Dentro desse universo de mudanças sociais, podemos observar mulheres como Bia, alguém que toma decisões, possui um trabalho que a faz viajar e ausentar-se do lar

durante muito tempo. Por sua independência financeira, foge totalmente à figura feminina que associa mulher-casamento-maternidade, estimulada pela sociedade patriarcal.

É Bia que, dentro do romance, toma todas as iniciativas “tanto de começar a conversa quanto de encerrá-la”. Isso desperta insegurança em Virgílio, que, assim como Bentinho, não sabe lidar com uma figura feminina tão autônoma.

De fato, Bia, assim como Capitu, inspira certo medo em seu par ficcional por apresentar uma atitude que foge à passividade, característica bastante original nas mulheres. As duas têm em comum o fato de se portarem quase de igual para igual com os homens.

Assim como desejado por Beauvoir, a personagem Beatriz Bueno possui independência financeira, mas não necessita perder a atratividade ou pagar o preço da perda da sexualidade. Bia divide-se entre dois homens no romance, Virgílio e Fabrício, e consegue manter-se “feminina”, mesmo distante da idealização. Bia é independente financeiramente, porém não perde a sua sedução, ao contrário, é “disputada” por eles. A sua descrição física revela a distância da idealização, mas refuta a perda da sexualidade. Bia é “concretíssima”, nem por isso menos interessante. Certamente, A audácia dessa mulher, nesse sentido, nos traz uma nova imagem do feminino:

Virgílio olhava para ele e não conseguia chegar a uma conclusão: de quem ele tinha falado com tanto entusiasmo? Quem era a maravilha de mulher tão fascinante? Uma hipotética Fräulein contratada como preceptora no século XIX ou essa concretíssima magricela despenteada de jeans, que gesticulava, toda empolgada, sentada na cadeira em frente, com a perna esquerda na horizontal, relaxadamente apoiada sobre o joelho direito? (MACHADO, 1999a, p. 34).

Bia, vestida com seus jeans, símbolo da modernidade, aproxima-se do modelo de mulher do novo milênio: leitora e escritora. Talvez represente o que desejavam ser as mulheres que escreviam no século XIX, as pioneiras tanto da nossa literatura quanto da literatura mundial, tal como Jane Austen (1775-1817) ou Virgínia Woolf (1882-1941). Foi a escritora e crítica literária Virginia Woolf, responsável por técnicas narrativas de fluxo de consciência e monólogo interior, em contraposição ao tradicionalismo típico da

Era Vitoriana, uma das que melhor tratou o tema da mulher no papel de escritora e foi por mais de um vez citada na obra em estudo.

Em Um teto todo seu, Woolf discute a participação da mulher na literatura e observa que ela sofre uma série de discriminações no que se refere até mesmo à temática de seus textos, mais precisamente dos romances. A autora observa como as mulheres escreviam: inicialmente as escritoras eram nobres que, escondidas de seus pais e/ou maridos, entregavam-se à chamada “desocupação da pena”. Quando as escritoras deixaram de restringir-se somente à nobreza e estenderam-se à classe média inglesa, também seus livros eram escritos às escondidas, na sala de estar, expostas a toda sorte de interrupções. Enfim, a mulher que ousava dedicar-se ao ofício da escrita não tinha sequer um espaço todo seu para trabalhar.

Para explicitar com clareza o papel e as dificuldades enfrentadas pelas escritoras, Woolf cita um poema de Lady Winchilsea, nobre que viveu no século XVII:

Ai da mulher que tenta a pena! É vista como tão presunçosa criatura

Que nenhuma virtude pode redimir-lhe a falha Dizem-nos que confundimos nosso sexo e maneiras; Boa educação, moda, dança, roupas e divertimentos; Eis os dotes que deveríamos desejar;

Escrever, ou ler, ou pensar, ou indagar

Turvariam nossa beleza e esgotariam nosso tempo, E interromperiam as conquistas de nossa plenitude, Enquanto a direção tediosa de uma casa servil É tida por alguns como nossa maior arte e serventia. (Apud WOOLF, 1985, p.75).

Isso prova que as poucas mulheres que ousavam dedicar-se à arte da escrita, escondiam-se atrás do anonimato, corroborando o que dizia Péricles de que a maior qualidade da mulher é viver à margem da sociedade, ou que a publicidade da mulher é repudiável. Por isso, tantas esconderam-se atrás de pseudônimos masculinos.

Virginia Woolf pregava que a mulher que almejasse escrever deveria possuir renda anual e garantia de uma subsistência autônoma sem depender de um pai, de um

irmão ou de um marido. Deveria, primeiramente, buscar um teto que fosse totalmente seu e depois, sem cobranças de ordem financeira, dedicar-se ao ofício que desejassem.

Todavia, como ainda sofriam forte influência da opressão pregada pela sociedade patriarcal, as mulheres escritoras envolviam-se com os temas de denúncia e de protesto contra os homens. Isso fez com que elas, durante muito tempo, usassem a literatura como desabafo pessoal, o que foi observado por Woolf: “talvez a mulher esteja começando a usar a literatura como uma arte, não como um método de expressão pessoal” (1985, p. 99).

De fato, as escritoras vêm buscando na literatura mais do que um panfleto social. Podemos ver isso através das personagens femininas recontadas por mulheres. O que fez Ana Maria Machado ao escrever o diário e, principalmente, as cartas de Lina, foi estabelecer um diálogo com o texto de Machado de Assis. Mais do que um desabafo, temos uma preocupação em dialogar com uma obra literária precedente, Dom Casmurro. Isso nos comprova que a literatura produzida pela mulher, na atualidade, vem transformando-se. As escritoras e as leitoras contemporâneas estão escrevendo também para questionar os velhos moldes patriarcais.

O resgate de Capitu, agora Lina, em A audácia dessa mulher, parece trazer essa ousadia típica da personagem, que, quando menina, desejava aprender idiomas e não bordados. Agora, ela reaparece como escritora de sua própria história. A Capitu revista por Ana Maria Machado continua, portanto, uma mulher desafiadora, transgressora, e agora assumindo um novo papel: o de escritora.

Visão emancipatória no sentido de que a escrita de diários e cadernos de receitas acontecia dentro de um espaço tipicamente feminino, era uma estratégia de escrita da mulher o século XIX, tantas vezes admoestada, que encontrava refúgio e admiração social ao receber o título de “dona de casa” ou de “rainha do lar”. Em Um teto todo seu, Woolf questiona esses rótulos de falsa propriedade. Sendo a figura feminina dependente economicamente do homem, não cabe a ela a propriedade de bem algum. Logo, tais títulos apenas disfarçam e tentam amenizar sua real situação: a de mais uma propriedade masculina, de parte da casa. Rainha sim, proprietária nunca.

Para superar definitivamente a diferença entre os sexos, Woolf acreditava que era necessário muito mais do que educação, era preciso conscientização tanto de homens quanto de mulheres. Ao contrário de muitos, a escritora acreditava na diferença

entre os sexos, valorizando a versatilidade entre as pessoas. A igualdade defendida por ela era a de condições de trabalho, de escrita.

Além de desvantagem social, agora a mulher também enfrentaria a desvantagem linguística, componentes que juntos levam a falta de poder social. Inserida em uma sociedade propagadora do pensamento patriarcal, a escritora busca desvencilhar-se dele valendo-se da pluralidade de significados. Muitas vezes, os textos de autoria feminina trazem a marginalização da mulher e tendem a criticar o cânone, ser um texto contracorrente. Sobre isso, temos a palavra da própria Ana Maria Machado:

Sou mesmo contra a corrente. Contra toda e qualquer corrente, aliás. Contra os elos de ferro que formam cadeias e servem para impedir o movimento livre. (...) No fundo, tenho lutado contra correntes a vida toda. E remado contra a corrente, na maioria das vezes. Quando as maiorias começam a virar uma avassaladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em imaginar como aquilo poderia ser diferente. (MACHADO, 1999b, p.7).

Além de Bia, Ana Maria Machado menciona em seu romance exemplos de mulheres que mesmo no século XIX afastaram-se do patriarcado. São modistas, quitandeiras, caixeiras, fräulen. São mulheres que mostram que sempre houve questionamento relacionado à condição feminina.

Apesar disso, Bia reconhece-se como retrato da mulher que não se permite a condição antiga. Ela sabe que vive em uma época em que a consciência feminina e o mercado de trabalho lhe permitem ser independente. Sabe que é fruto também de uma sociedade de modismos e de mercadorias descartáveis e teme isso, inclusive em suas relações, mais especificamente em sua relação com Fabrício. É nessa relação que vimos a volatilidade e o desmoronamento das relações amorosas contemporâneas.

No mundo líquido em que vivemos, as relações parecem ignorar as singularidades de cada um, as diferenças que enriquecem a convivência social. A noção de compromisso e de casamento eterno, tão em voga nos séculos anteriores, perderam- se. Como nos diz Zygmunt Bauman, em Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos:

O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o compromisso incondicional e certamente aquele do tipo “até que a morte nos separe”, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a todo custo. (2004, p. 111).

Bia reconhece a distância cultural e social que a separa de Lina e possui um olhar franco sobre as condições do feminino, ontem e hoje. A mulher trocou o “olhar dissimulado” de outrora pelo “olhar corajoso, desafiador, ousado” de hoje. Isso é o que Bia enxerga ao ler o diário de Lina, escrito no século XIX:

Bia sabia que não podia olhar a menina com olhos de hoje. E que as promessas de só se enfeitar com o próprio marido (que, pelo menos, fosse deslumbrante, desejava-se) faziam parte de um arsenal de valores ancestrais. Não podia passar a olhar a menina com olhos críticos só por causa desses comentários submissos. (p. 127).

De fato, é feito um contraponto entre duas épocas diferentes, mas não uma mera comparação entre personagens femininas. O que é discutido pela autora é a reinvenção de personagens. A menina-mulher, dona do caderno de receitas-diário, não é a mesma Capitu de Dom Casmurro. Chama-se, agora, Lina, e assim como Bia, lutou pelo sustento enquanto estava sozinha na Europa com um filho pequeno. Conseguiu a sua independência financeira, e, mesmo vivendo no século XIX, comporta-se como uma mulher do século XX.

A união dessas duas mulheres se dá frente ao homem. Lina, ainda com vestígios de Capitu, apesar de momentos de submissão ao marido, une-se a Beatriz Bueno. Torna-se uma criação de Ana Maria Machado e é “escrita” por uma mulher, com uma visão tipicamente feminina. Os olhos de Capitu e os de Bia unem-se aos de Ana Maria Machado para recontar a história conhecida por todos nós.

A personagem Beatriz Bueno traz o relacionamento entre os sexos de modo a destituir a mulher e o homem de seus papéis, muitas vezes rígidos, ditados pela sociedade patriarcal. Hoje, o relacionamento aproxima-se da liberdade possível a ambos:

mas seu parceiro continua livre para ir e vir, e nenhum tipo de vínculo que possa manter você no lugar é suficiente para assegurar que ele não o faça. O conhecimento amplamente compartilhado – na verdade, um lugar comum – de que todos os relacionamentos são “puros” (ou seja, frágeis, fissíparos, tendentes a não durar mais do que a conveniência que trazem, e portanto sempre “até segunda ordem”) dificilmente seria um solo em que a confiança pudesse fincar raízes e florescer. (MACHADO, 1999b, p.112).

Uma inédita fluidez, fragilidade e transitoriedade em construção (a famosa “flexibilidade”) marcam todas as espécies de vínculos sociais que, uma década atrás, combinaram-se para constituir um arcabouço duradouro e fidedigno dentro do qual se pôde tecer com segurança uma rede de interações humanas. Elas afetam particularmente, e talvez de modo mais seminal, o emprego e as relações profissionais. (MACHADO, 1999b, pp. 112-113).

Muito próxima de Lina, está Ana Lúcia, secretária de Bia, moça de origem humilde que vem conseguindo a sua independência através do esforço de seu trabalho, mas que possui um noivo que corresponde totalmente aos ditames do machismo patriarcal. Giba é um homem que não permite que a noiva trabalhe ou saia de casa sozinha e possui um ciúme doentio. É uma versão moderna do ciumento Bento Santiago. Talvez, seja por isso que a primeira personagem a ter contato e apresentar empatia pelo diário tenha sido Ana Lúcia.

Dentro do romance, Ana Lúcia é a personagem mais jovem e de transição, é aquela que está rompendo com os laços do passado de dominação masculina e tentando desvencilhar-se, mesmo que de maneira dolorida, dos laços de machismo e de dominação do casamento, dentro da sociedade patriarcal.

Mais uma personagem feminina no romance, cuja presença nos remete a interessantes observações, é dona Lourdes, a mãe de Virgílio. Ela nos mostra a desconstrução da idosa, da tradicional figura da avó e dona de casa. Eis a sua história:

Ficara viúva aos quarenta anos, de repente, quando uma embolia lhe levou o marido de uma hora para outra. Os filhos eram adolescentes, e

ela se descobriu inteiramente despreparada para a vida. Nunca trabalhara, não tinha diploma nem profissão. Jamais tivera uma conta em banco. Não tinha pensão. Nem ao menos sabia com que bancos o marido trabalhava. Era apenas uma dona de casa exemplar. Em absoluta dependência em relação ao companheiro que desaparecera.(...) Botou os filhos para ajudarem no que podiam – inclusive nas tarefas domésticas, todos viraram excelentes cozinheiros. Foi aprender datilografia, trabalhou em alguns escritórios de amigos do marido, mas chegou à conclusão de que, como assalariada, não ia longe. Os filhos se dispunham a ajudá-la assim que crescessem mais e pudessem, mas ela percebeu que não queria passar de uma dependência para outra. A vida estava lhe dando uma chance. Tinha que aproveitar. (p.181).

Personagens como Dona Lourdes e Bia mostram a mulher sob uma nova perspectiva. A primeira, na figura de matriarca, é ativa e totalmente envolvida pela sociedade contemporânea. Afasta-se da figura materna, próxima da divindade. Exemplo seguido por Bia, protagonista e heroína da história, que pouco valor credita à fidelidade conjugal, motivo que, segundo Bentinho, teria condenado Capitu. Mas figurações femininas como as de A audácia dessa mulher nem sempre povoaram a nossa literatura, ou até mesmo a nossa realidade.

O que Ana Maria Machado fez foi partir de um texto canônico e dar a ele uma nova roupagem, uma visão e versão diferente da história, um olhar diferenciado, normalmente ignorado na versão original. Isso foi para a produção literária feminina uma forma de se inserir no cânone, assumindo o papel do outro, muitas vezes do outro marginalizado. É a reescrita de maneira subversiva que toma para si, através da linguagem, o discurso histórico para implementar nele um discurso novo. É uma maneira nova de reescrever tanto a história quanto a literatura, distante dos preconceitos muitas vezes presentes nos textos originais.

Além disso, dentro da relação leitor-livro, deve-se considerar a recepção do texto, pois cada leitor reage de maneira muito particular a uma obra, embora a recepção esteja relacionada ao social. Muitas vezes, o texto literário retoma um horizonte para depois contrariá-lo, como acontece com Bia ao se encontrar com Dona Lourdes.

Mas agora, no Recanto, de repente, contemplando o canteiro de rosas, ela via outro sentido na aparente mutilação daqueles tocos podados. Davam-se à sua decifração como se fossem uma bússola para humanos, mostrando que de vez em quando é preciso cortar sem dó para que a seiva não se disperse e possa se concentrar toda no rumo do que é essencial. Ousar uma perda efêmera para garantir a fartura da safra ainda guardada mais adiante. Ter a audácia de apostar no recôndito e na sua força, contra todas as evidências da superfície visível, com seu viço momentâneo e sedutor (pp. 204-205).

Os textos trazem consigo traços da cultura na qual estão inseridos e a revelam para as futuras gerações que podem reproduzi-la ou contestá-la. Esse é um dos poderes da literatura e um dos alicerces para se compreender a sociedade atual. Não podemos apagar textos antigos, mas podemos sim, reescrevê-los sob uma ótica contemporânea. É isso, o que fazem todas as personagens femininas de A audácia dessa mulher à medida que questionam e desautorizam paradigmas anteriores.

Isso nos mostra que os textos são obras inacabadas e funcionam como um caleidoscópio. Cada um reflete a sua própria luz, diferente, mas todos refletem-se sobre os outros. Logo, toda a literatura é intertextual e a reescritura e o diálogo entre os mais diversos textos é não só possível, mas também recomendável.

É justamente essa visão que coloca o gênero masculino como centro canônico que Ana Maria Machado deixa para trás. No romance em estudo, são relatadas as conquistas obtidas pelas mulheres a partir do século XIX, as mudanças que trouxeram uma nova mentalidade para as mulheres que são compartilhadas por Bia, a protagonista do romance. É com essa visão que autora e personagem voltam-se para o texto de Machado de Assis.

Dom Casmurro, escrito pela ótica do narrador Bento Santiago, traz o retrato do patriarcalismo. Embebido e conduzido por suas lembranças, algumas vezes confusas, o advogado Santiago acusa, julga e condena Capitu ao exílio e ao abandono. Como a narrativa é em primeira pessoa, somente com a voz de Bentinho, Capitu é silenciada e distanciada da linguagem, não possui discurso, não possui vez, não possui voz.

Mas, afinal, quem foi Capitu? Como teria sido a sua defesa? O que diria a sua voz? Foi esse resgate, essa voz que Ana Maria Machado fez aparecer em seu livro.

Seguindo a premissa de Virginia Woolf de que os livros são continuações dos outros, Lina, em A audácia dessa mulher, assume finalmente o direito à linguagem, negado há tantos anos a Capitu às mulheres, dentro e fora da literatura.

Ana Maria Machado releu o romance Dom Casmurro trazendo para ele influências contemporâneas com relação às discussões de gênero, sublinhando as conquistas femininas, comparando a situação da mulher hoje com a vivida por Capitu, agora Lina. Além disso, trouxe nova perspectiva ao texto literário, renovando-o e possibilitando a discussão de que é possível a releitura na literatura contemporânea. O cânone se enriquece e sobrevive às mais variadas épocas.

Isso se torna possível na medida em que Machado de Assis, ao criar uma personagem que não narra sua própria história, seguindo os moldes da sociedade

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