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Fernández Martínez (1994): aquisição dos morfemas verbais no Espanhol madrileno

2 ESTUDOS SOBRE A EMERGÊNCIA DAS CATEGORIAS TEMPO E MODO E AS

2.4 Fernández Martínez (1994): aquisição dos morfemas verbais no Espanhol madrileno

de haver similaridades na aquisição do Inglês e do Português brasileiro é ainda mais interessante do que o observado entre Lopes et alii (2004) e Scliar-Cabral (2007), já que ambas tratavam da aquisição da mesma língua, logo as semelhanças nos resultados são mais esperadas. Sendo o Inglês e o Português línguas com sistemas morfológicos diferentes, a constatação de que há similaridades no processo de aquisição dessas línguas vem reforçar o caráter universal dos traços, das categorias funcionais e da aquisição.

No que diz respeito ao Espanhol, que é o sistema linguístico de maior interesse nesta tese, destacaremos alguns estudos. O primeiro a ser mencionado é o de Fernández Martínez (1994), sobre a aquisição da morfologia verbal no Espanhol, que é um tema mais geral sobre aquisição das formas verbais, entre elas as de futuro. Em seguida, citaremos trabalhos com foco mais específico na aquisição das formas de futuro e do traço de Tempo.

2.4 Fernández Martínez (1994): aquisição dos morfemas verbais no Espanhol madrileno

No capítulo intitulado “El aprendizaje de los morfemas verbales. Datos de un estudio

longitudinal”, Fernández Martínez (1994) explora como a criança adquire as estruturas

gramaticais envolvidas nas expressões de Tempo e Aspecto. Os dados da análise procedem da fala espontânea de uma criança madrilena, María, da idade de 1;7 aos 3;0 anos. A autora estabeleceu quatro fases do desenvolvimento: fase I (1;7 a 1;8), fase II (1;9 a 1;10), fase III (1;11 a 2;0), fase IV (2;1 a 3;0). Os resultados da pesquisa revelam o seguinte:

- Na fase I (1;7 a 1;8): a criança utiliza uma mesma forma para caracterizar distintas funções semânticas. Por exemplo, a forma “pi” se refere tanto a um nome como a um verbo: “Mamá

ete pi no” (Mamãe, este lápis não); “Mamá pi guauguau” (Mamãe, pinta o cachorro). Sobre as

formas verbais, há produção de formas de imperativo (consideradas formas protoverbais) e formas de infinitivo em estruturas do tipo [a + protolexema], como em “amí” (a dormir); “aná” (a comer). Esta estrutura é utilizada para distintas funções enunciativas:

1- para antecipar uma ação (40%): “Bibi aná” (Muñeco va a comer.: Boneco vai comer.); 2- para expressar ordem-desejo (30%): “abuá cana, papá atás” (A guardar el teléfono, papa a

sentar.: Guarda o telefone, papai, senta.);

3- para anunciar uma ação em curso (20%): “E bibi amí no” (El muñeco no quiere dormir.: O boneco não quer dormir.);

4- para expressar uma ação finalizada (10%): “¡Ui! ¡Acá nene!” (¡Se ha caído el nene!: O bebê caiu!)

A pesquisadora explica que o fato de a criança produzir uma forma para mais de uma função e mais de uma forma para a mesma função (estrutura [a + protolexema] e imperativo, ambas com função imperativa), sugere a aquisição de léxico para nomear ações e, ao mesmo tempo, nomear objetos e pessoas, o que corresponderia a uma primeira descrição linguística das expressões perceptivo-motoras, em que há uma não-diferenciação entre forma e função.

A autora menciona que, nesta fase, não há distinção temporal nem de pessoa. Por esta afirmação, entendemos que a pesquisadora se refere à distinção temporal realizada através de morfemas, e não à noção de temporalidade, uma vez que, segundo os exemplos mencionados, a criança expressa, através da estrutura [a + protolexema], noções de presente, passado e futuro.

- Na fase II (1;9 a 1;10): a estrutura [a + protolexema] funciona já praticamente como [a + infinitivo] e continua sendo utilizada para distintas funções enunciativas, sendo a antecipatória a mais frequente (50%), seguida da expressão de uma ação em curso (28,5%) e de ação finalizada (21,5%). Com relação à função imperativa, esta apresenta um declínio acentuado, havendo apenas 1 ocorrência. Por outro lado, as formas imperativas passam a ser muito frequentes, o que demonstra o primeiro ajuste entre forma e função verbais.

Também são produtivas as formas do presente do indicativo, principalmente na 3ªp. sg. Sobre isto, Fernández Martínez (1994) esclarece que, como em Espanhol a forma de 2ª p. sg do imperativo (bebe tú, p. ex.) coincide com a forma de 3ªp. sg. do presente do indicativo (él/ella usted bebe, p. ex.), este fato linguístico favorece a aquisição da estrutura do presente do indicativo.

Nesta fase, ocorre a primeira distinção entre pessoas, o que acontece apenas em dois verbos: na idade de 1;9, a criança produz “sentar” em 1ª e 3ª p. sg; na idade de 1;10, a criança produz os verbos “sentar” e “pintar” na 1ª, 2ª e 3ª p. sg.

Conforme visto, esses resultados sobre a distinção entre pessoas também foram identificados por Lopes et alii (2004) no Português brasileiro. O que estes resultados mostram é que, também no Espanhol, na idade de 1;9, as crianças fazem marcação de pessoa, mas não de número, portanto, os traços de AGR ainda estão sendo adquiridos.

Por fim, ocorre também uma forma de particípio, uma forma de pretérito perfeito simples (“sacabó”: Se acabó) e uma forma impessoal.

- Na fase III (1;11 a 2;0): além do imperativo, as formas de presente do indicativo são altamente produtivas, surgem formas de pretérito perfeito e a estrutura [a + lexema] se converte em [ir + a + infinitivo]. A criança apresenta, portanto, três tempos verbais para

codificar passado, presente e futuro, o que indica o primeiro contraste gramatical da noção de temporalidade, com uso produtivo dos morfemas que marcam tempo.

Além deste primeiro contraste da noção de temporalidade, a criança produz também: três lexemas verbais com a estrutura [estar + gerúndio], uma forma de presente do subjuntivo e duas do pretérito perfeito simples.

Nesta fase, ocorre, ainda, a efetivação do contraste entre 1ª, 2ª e 3ª pessoas, com ampla produção no presente do indicativo. Com a perífrase de futuro, há marcação apenas da 1ª p., e com o pretérito perfeito, há marcação apenas da 3ª p. Com outros tempos verbais, quando há marcação de pessoa, ocorre apenas na 3ª p. sg.

A autora explica que o desenvolvimento da aquisição dos morfemas verbais parece ocorrer da seguinte maneira: quando a criança adquire uma nova estrutura verbal, mantém a nova forma constante, como se fosse invariante com relação ao morfema de pessoa, fazendo-o sob a forma de 3ª p. sg. ou sem pessoa, como na perífrase, em que a criança omite o verbo “ir” e produz apenas [a + infinitivo]. Uma vez que tenha fixado o tempo, vai introduzindo as pessoas, começando pela 1ª p. sg.

Estes resultados de Fernández Martínez (1994) remetem aos apontamentos da análise de Lopes et alii (2004): a gramática da criança tem T (desde a fase I), mas ainda está ajustando AGR, ou seja, T emerge antes mesmo que AGR se estabilize.

- Na fase IV (2;1 a 3;0): ocorre a fixação dos tempos verbais adquiridos na fase anterior e o surgimento de dois novos tempos/estruturas verbais: a perífrase [estar + gerúndio] e o presente do subjuntivo. A produção da perífrase de gerúndio pressupõe o primeiro contraste aspectual: progressivo (traço da perífrase de gerúndio) x não-progressivo (traço do presente, do pretérito perfeito e da perífrase de futuro).

Para a autora, a alta produtividade do presente do subjuntivo, aos 2;2 anos, parece complicada de explicar, já que este tempo verbal apresenta características complexas (subjetividade e não-concreção) para uma criança nessa idade. Entretanto, ao analisar os casos em que as formas aparecem, a autora conclui que tal produção parece estar ligada a fatores de ordem pragmática: a necessidade de expressar uma ordem negativa (imperativo negativo se forma com o presente do subjuntivo). A partir desta observação, questionamos: não se trataria da manifestação de traços modais?

As formas de pretérito simples e pretérito imperfeito continuam escassas. Com relação aos morfemas de pessoa, as três pessoas do singular são amplamente produzidas pela criança no presente do indicativo (também ocorre na 3ª p. pl), pretérito perfeito e perífrase de futuro

(também ocorre na 1ª p. pl). Com as novas formas adquiridas nesta fase, a perífrase de gerúndio ocorre na 1ª e 3ª p. sg., e o presente do subjuntivo ocorre na 2ª e 3ª p. sg.

A fase IV compreende um longo período do processo da aquisição (8 meses) em que parece não acontecer nada novo, já que os tempos verbais adquiridos seguem sendo os mesmos. A autora explica que, provavelmente, ocorre um aprofundamento ou uma estabilização das estruturas já adquiridas, ao mesmo tempo em que adquire outros componentes gramaticais, como a concordância de gênero ou organizações sintáticas complexas.

De acordo com os dados analisados por Fernández Martínez (1994), a aquisição dos tempos/estruturas verbais se deu na seguinte ordem: imperativo afirmativo, presente do indicativo, futuro perifrástico, pretérito perfeito composto, perífrase [estar + gerúndio], presente do subjuntivo, imperativo negativo, pretérito perfeito simples e pretérito imperfeito.

A autora ressalta uma característica do Espanhol que, aparentemente, representaria um complicador para a criança em aquisição: os morfemas de pessoa e tempo estão unidos e se apresentam numa mesma palavra. Este “problema” parece ser resolvido pela criança analisada da seguinte forma: lida, primeiramente, com a categoria de pessoa; depois com a categoria de tempo, mantendo os morfemas de pessoa invariáveis; por último lida com ambas as categorias, num processo gradual e interativo em que o que foi adquirido primeiro (as pessoas gramaticais do presente) vai sendo introduzido paulatinamente em cada novo tempo verbal.

Como vimos, Scliar-Cabral (2007) também relaciona a emergência das pessoas do discurso à emergência de T, sendo a distinção das pessoas uma condição para a marcação de T. Com base nas considerações de Lopes et alii (2004) e no que foi relatado por Fernández Martínez (1994) nas fases I e II, discordamos quanto à criança lidar primeiramente com as pessoas e posteriormente com Tempo. Conforme visto, na fase I, a criança já apresenta noções de futuro, e não faz marcação de pessoa nessa fase; na fase II, apresenta noções de presente, passado e futuro, marcando, efetivamente, apenas a 3ª p. sg (há marcações de 1ª e 2ª p. sg. também, mas não são efetivas, ocorrem apenas com dois verbos). Assim sendo, consideramos que a criança lida com Tempo e pessoa (aquisição dos traços-φ) ao mesmo tempo e não com um seguido do outro.

Por fim, com base nos seus resultados, a autora esclarece que, ao contrário do que se afirma em diversos estudos, a aquisição da morfologia não está relacionada a características aspectuais do verbo, uma vez que as primeiras formas produzidas pela criança foram: presente, pretérito perfeito e perífrase de futuro, ou seja, primeiramente, o que a criança faz é ampliar o momento presente em duas direções temporais: para o passado e para o futuro.

Além disso, se o contraste aspectual perfectivo x imperfectivo é a primeira e única coisa que a criança codifica, como pode ser explicada a produção da perífrase de futuro? Tampouco pode ser confirmada a hipótese de que o desenvolvimento da morfologia verbal está atrelado a características semânticas dos verbos (à exceção da perífrase de gerúndio, que tende a ocorrer com verbos de atividade), pois os dados mostram que a produção dos três primeiros tempos verbais não se relaciona com o significado dos verbos.

No que diz respeito à emergência de tempo futuro e as formas verbais que o codificam em Espanhol, destacamos o trabalho de Kanwit (2013).