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Scliar-Cabral (2007): emergência das categorias verbais no Português brasileiro

2 ESTUDOS SOBRE A EMERGÊNCIA DAS CATEGORIAS TEMPO E MODO E AS

2.2 Scliar-Cabral (2007): emergência das categorias verbais no Português brasileiro

Scliar-Cabral (2007) observou a evolução das categorias verbais em duas fases do desenvolvimento infantil: nas idades de 1;8 e 1;1012, em que foram analisados 2245 enunciados de uma criança. Os dados da pesquisa mostraram que, à idade de 1;8, as duas categorias verbais que ocorrem de forma consistente são: aspecto e modalidade. A autora explica que “o critério fundamental para considerar que uma determinada categoria verbal é produtiva é o de que a marca morfológica que a reveste aparece de forma consistente nos vários verbos utilizados pela criança” (SCLIAR-CABRAL, 2007: 224). Nesse sentido, a criança analisada apresenta realizações como “fechô”, “(derr)ubô”, “(derr)ubá” o que permite que a pesquisadora afirme que a oposição entre perfectivo e imperfectivo já foi adquirida na idade de 1;8.

Além desse critério, Scliar-Cabral (2007) se baseia no pressuposto de um mini- paradigma, o que corresponde a: “um conjunto não isolado de no mínimo três formas flexionadas, fonologicamente não ambíguas e distintas do mesmo lema, produzidas espontaneamente em contextos sintáticos ou situacionais contrastivos” (BITTNER; DRESSLER; KILANI-SCHOCH, 2003 apud SCLIAR-CABRAL, 2007: 225). Nesse sentido, a autora observa três instâncias do mesmo verbo, no imperativo, no perfectivo e no infinitivo: “ti(ra)”, “ti(r)ô”, “tilá”.

Ainda com base nos referidos autores, que propõem três estágios para a aquisição das flexões verbais (pré-morfológico, proto-morfológico e o morfológico), Scliar-Cabral (2007) identifica que a criança aos 1;8 estaria na fase proto-morfológica, ou seja, “quando os primeiros contrastes flexionais semelhantes ao alvo se tornam regulares e quando as

12 A autora se refere às idades em meses: 20 meses e 21 dias, e 22 meses. Entretanto, por questões de

uniformização, nesta tese as idades serão mencionadas sempre em anos e meses, no formato: ano - ponto e vírgula - meses.

respectivas formas são empregadas na (maioria dos) novos lexemas” (SCLIAR-CABRAL,

idem).

As análises de Scliar-Cabral (2007) mostraram que o paradigma verbal da criança à idade de 1;8 é constituído: 1) de formas não-marcadas (3ª p. sg.) do imperfectivo (presente do indicativo e imperativo); 2) do infinitivo; e 3) da forma não-marcada (3ª p. sg.) do perfectivo (pretérito perfeito do indicativo).

Podemos observar que os resultados de Scliar-Cabral (2007) coincidem com os de Lopes et alii (2004), que também observaram predominância da 3ª p. sg, do presente do indicativo, do pretérito perfeito, do imperativo e de formas infinitivas na criança com idade de 1;8.

Entretanto, diferentemente de Lopes et alii (2004), Scliar-Cabral (2007) considera que “a categoria tempo não é postulada na fase em exame, pois a criança não utiliza os pronomes pessoais ou sufixos opositivos de pessoa/número de forma produtiva” (SCLIAR-CABRAL, 2007: 226). Assim, por considerar que “tempo é uma categoria dêitica que gira em torno das pessoas do discurso enquanto o aspecto vem assinalado pelos primeiros afixos verbais e não diz respeito à relação com outro tempo (é não-dêictico)” (SCLIAR-CABRAL, idem), a autora desconsidera a possibilidade de que a categoria Tempo tenha emergido na fase analisada, apoiando-se na “Hipótese do Tempo Defectivo”, segundo a qual há precedência da categoria Aspecto sobre a de Tempo.

Sobre a categoria Modalidade, Scliar-Cabral (2007) explica que as primeiras categorias modais a aparecerem foram: permissão (Ex: Mãe: “posso ver?” / Criança: “po(de)”, possibilidade e volição (modais deônticos) (Exs: “qué chão” / “qué tescê”). Além desses exemplos, a autora cita mais um e o identifica como uma realização de modal de volição: “vô naná”. Segundo Scliar-Cabral (2007), esta realização não seria uma expressão temporal de futuro imediato porque nessa fase a criança não domina Tempo. Tal consideração suscita discussões: o que deve prevalecer, os dados linguísticos ou a conformidade com os pressupostos teóricos? Os dados jamais contradizem a teoria? Neste exemplo, não há marcação da 1ª pessoa do discurso? Neste caso, Tempo já estaria (sendo) adquirido, uma vez que, segundo a própria autora, está vinculado às pessoas do discurso.

Com relação às análises da idade de 1;10, Scliar-Cabral (2007) observa que nesta fase ocorre a emergência das pessoas do discurso, o que possibilitaria postular a categoria tempo. A autora encontra evidências do domínio da 1ª pessoa da enunciação oposta à 2ª pessoa: “vô ligá” / “que(r)o (ofer)ecê ot(r)o ba@f [= bala]” / “(es)c(r)eve”. A marca de 2ª pessoa aparece

no imperativo, que é marcado por sua entonação peculiar, diferenciando-se do infinitivo “(es)c(r)evê”, por exemplo.

Voltando à discussão anteriormente incitada, parece não haver diferença entre a realização “vô naná” (em que se desconsiderou a possibilidade de expressão temporal e marcação de pessoa) e “vô ligá” (em que se considerou a marcação da 1ª pessoa do discurso e, portanto, a possibilidade de emergência de Tempo).

Com relação à emergência de Tempo, o exemplo tomado pela pesquisadora é uma construção perifrástica de futuro imediato: “vô petá [= vou apertar]”. Para a autora, agora sim, na idade de 1;10, ocorre a fusão entre Tempo e Aspecto.

Sobre este último exemplo, é interessante observar a seguinte explicação: “construção perifrástica do futuro imediato, à qual atribuíamos na 1ª fase apenas o valor de aspecto, uma vez que a criança não dominava as pessoas do discurso”. Voltemos à discussão: é perífrase de futuro ou não? Denota emergência de Tempo ou não? Por que nesta fase (1;10) a construção é considerada perífrase de futuro e na fase anterior (1;8) não o é? Seria a Hipótese do Tempo Defectivo um pressuposto inquestionável?

Ainda sobre a emergência de Tempo na idade de 1;10, Scliar-Cabral (2007) observou a oposição entre passado e presente quando a criança responde adequadamente a perguntas feitas pelo adulto, como em: Pai: “Você tomou pinga?” / “E ontem o que que você tomou?”. / Criança: “eu não”. Sobre estas considerações, questionamos: por que na idade de 1;8 as formas de presente e pretérito produzidas pela criança não são consideradas para marcação de Tempo, apenas de Aspecto?

Por fim, Scliar-Cabral (2007) comenta sobre outras implementações no sistema verbal: a ocorrência de orações encaixadas, o emprego da cópula “é” e os casos de ablaut. Sobre as encaixadas, a pesquisadora destaca a ocorrência: “deixe vê gagá@c? [= deixe (eu) ver gaga?]”. Neste exemplo, observa-se o verbo da oração principal com valor de modal deôntico, seguido de uma oração reduzida de infinitivo.

Sobre o emprego da cópula “é”, a autora explica que, na primeira fase, ocorria apenas seguida do predicativo; na segunda fase, a oração aparece completa, com a forma nominal e o predicativo, inclusive em orações interrogativas com QU, como no exemplo: “que é esse?”

A respeito dos casos de ablaut13, Scliar-Cabral (2007) destaca os seguintes exemplos: “eu fiz ca(rro)”. / “o papai fez”. Reunindo estes exemplos a uma outra ocorrência desse

13 “O ablaut, no português brasileiro, ocorre no pretérito perfeito do indicativo com verbos irregulares de alta

frequência de uso, para assinalar a oposição entre a 1ª e a 3ª pessoas do singular, através da alternância da vogal do radical, uma vez que em tais verbos inexiste o sufixo para marcar as pessoas.” (SCLIAR-CABRAL, op. cit.)

mesmo verbo no imperativo, já se nota a existência de um mini-paradigma, em que as oposições temporais e de pessoa do discurso são assinaladas pela alternância das vogais do radical: “n(ão) faz”/ “eu fiz ca(rro)” / “o papai fez”.

Através das análises realizadas em duas fases, com uma diferença de dois meses, no desenvolvimento linguístico de uma criança, as conclusões de Scliar-Cabral (2007) são as seguintes:

- constatou-se uma evolução na emergência da oposição entre a 1ª e a 2ª pessoas do discurso, o que, consequentemente, possibilita a emergência da categoria Tempo com a qual estariam vinculadas;

- constatou-se que, na segunda fase, ocorre a junção entre Tempo e Aspecto; a criança já apresenta o futuro imediato e a oposição entre passado e presente;

- observaram-se, ainda, outras implementações: orações encaixadas, maior complexidade no uso das construções com a cópula e utilização do ablaut nos verbos irregulares.

O artigo de Scliar-Cabral (2007) pode ser considerado um trabalho piloto, mais descritivo que explicativo, com algumas lacunas e questões a serem discutidas, conforme apontamos. De qualquer forma, pode-se observar que parte dos resultados obtidos pela pesquisadora corrobora resultados de outros estudos, como o de Lopes et alii (2004), mostrando mais similaridades que divergências no processo de aquisição, em consonância com a proposta gerativista de aquisição da linguagem.

Outro artigo selecionado para compor este capítulo foi o de Dorschner (2006). O estudo intitulado “The acquisition of future tense” apresenta o objeto de investigação e as questões de pesquisa bem semelhantes aos desta tese. Assim sendo, os resultados do estudo são de grande interesse para a presente tese, mesmo tratando-se de um estudo piloto, conforme veremos.