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O fetichismo da mercadoria e a sociabilidade do capital

3 CRÍTICA DA RIQUEZA BURGUESA [CAPITALISTA] E A

3.4 O fetichismo da mercadoria e a sociabilidade do capital

No ponto anterior, vimos, brevemente, a partir das teorias da mercadoria e do valor, de Marx, como expostas em O Capital, “como o próprio desenvolvimento dos processos de troca demandam o aparecimento de um equivalente geral das mercadorias que, fixado socialmente, torna-se dinheiro” (ALVES, 2017). Agora, como já mencionamos, nos voltaremos para a análise da sociabilidade do capital e a sua relação com o fetichismo da mercadoria.

A teoria do fetichismo da mercadoria90, de Marx, toma tal fenômeno social como

uma ilusão própria das sociedades mercantis capitalistas. A sociedade capitalista é, como veremos no presente item, marcada pela transformação das relações sociais e das coisas em mercadorias. Em tal sociedade tudo é mercadoria. Nela, a forma mercadoria constitui, precisamente, a sua forma social, a sua forma de sociedade – sua sociabilidade. Estamos, mais uma vez, no âmbito de relações sociais que remetem a uma dialética da aparência e da essência, de acordo com o que ficará esclarecido no desenvolvimento desta subseção.

Ora, ao tomarmos a análise da mercadoria em Marx, verificando nesta o caráter fetichista e seu segredo, veremos que a raiz do seu poder social, o poder de modelar o mundo dos homens a partir de sua própria força, advém da oposição dos dois fatores que a constituem: valor de uso e valor. Embora algo muito concreto na cotidianidade, isto é dificilmente percebido, pois, se expressa abstrata e metafisicamente, de forma que os indivíduos, mesmo sem se darem conta disto, submetem-se ao seu poder como que a uma força natural.

É a violência estigmatizada nos caprichos estéticos da mercadoria que aprisiona os indivíduos em um poder que, não obstante, porquanto eles mesmos o constroem, passa a controlá-los. Marx (2006, p.102-103) diz:

Fórmulas que pertencem, claramente, a uma formação social em que o processo de produção domina o homem, e não o homem o processo de produção, são consideradas pela consciência burguesa uma necessidade tão natural quanto o próprio trabalho produtivo.

No modo capitalista de produção, o fetichismo da mercadoria, isto é, a forma elementar da síndrome da produção no capitalismo enquanto abstração das qualidades conferidas aos produtos pelas relações socais na esfera do trabalho, mas que aparecem como se lhe pertencessem naturalmente, perpassa todo o complexo da formação social burguesa.

Para tornar a exposição mais compreensível, Marx faz uma analogia entre o mundo das mercadorias e o mundo da religião. No mundo da religião, os produtos do cérebro humano

90 “O imenso projeto teórico que culmina em O Capital começa a gestar-se, pois, ainda em Paris, nos anos de 1843-1844. Assim, a despeito de que o plano de trabalho ter sofrido inúmeras e profundas reformulações, ao longo de tantos anos, e o abandono do esquema da Zur Kritik [...] constitui um exemplo eloquente, há uma inequívoca continuidade no projeto que une, sob uma mesma inspiração, esses cadernos redigidos em 1844 e O Capital, e que, na verdade, os alinha, ao lado de uma enorme quantidade de outros manuscritos, como trabalhos preparatórios da obra magna de Marx, a qual, aliás, nunca teve, ou terá, uma versão definitiva. Não seria inadequado afirmar, portanto, que esse vasto projeto de Crítica da economia política, iniciado em Paris e jamais concluído, desenvolve- se ao longo de quase quarenta anos, até a morte de Marx, em 1883. Só assim é possível entender que a análise da

alienação (Entfrendung) do homem, enquanto ser genérico (Gattungswesen) e sua relação com o mundo objetivo

pelo trabalho alienado, abre caminho para os estudos do fetichismo mercantil e do valor e que, ceteris paribus, o homem de ser genérico, se transforme em histórico, mudança conceitual que parece acompanhar a substituição, na preferência de Marx, de alienação por fetichismo (MOURA, 2004, p. 113-114) (Itálicos do autor).

parecem dotados de vida própria, com força e atividades autônomas no que se refere ao próprio indivíduo, ao mundo e aos outros homens91. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com

os produtos do trabalho. Marx (2006, p. 94) conceitua: “Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias”.

Na produção de mercadorias, “as relações entre os produtores [...] assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho”. (MARX, 2006, p. 94). Porque o caráter social de seus respectivos trabalhos privados – comenta, logicamente, João E. Evangelista (1997, p. 58), “só se explica pela troca de seus produtos de trabalho”. Quer dizer, o mercado impõe-se como elo mediador entre os produtores isolados pela divisão social do trabalho, revelando-lhes o caráter social de seus trabalhos. Por isso, as relações sociais entre os seus trabalhos privados aparecem como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas92.

Primeiramente, vemos que, como valor de uso, nada há de misterioso nas mercadorias. Na verdade, toda mercadoria só nos interessa se nos for útil e, portanto, possa vir a satisfazer nossas necessidades. É certo que o ser humano, através da sua atividade, em sua relação com a natureza, vem a modificá-la, a fim de satisfazer, pela mediação do trabalho, as suas carências. Modifica, por exemplo, escreve Marx (2006, p. 93),

a forma da madeira, coisa prosaica, material. Mas, logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, firma sua posição perante as outras mercadorias e expande as ideias fixas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria.

Isto ocorre porque na sociabilidade do capital tudo é permutável e, para tanto, as coisas devem ser diferentes, como que opostas umas às outras. E estas só se igualam na forma abstrata do valor, na troca, enquanto manifestação ou aparência do valor. A permutabilidade das mercadorias constitui-se em algo que se patenteia como que o seu sopro vital. É o que lhes faz, por assim dizer, adquirir vida própria.

91 “De acordo com a relação social de produção que tem validade geral numa sociedade de produtores de mercadorias, estes tratam seus produtos como mercadorias, isto é, valores, e comparam, sob a aparência material das mercadorias, seus trabalhos particulares, convertidos em trabalho humano homogêneo. Daí ser o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, a forma de religião mais adequada para essa sociedade, notadamente em seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc.” (MARX, 2006, p. 100-101). Assim, podemos dizer, seguindo Marx, que o culto cristão do homem abstrato, ou, em outras palavras, do indivíduo abstrato, abre, inicialmente, o espaço ideológico para a instauração da sociedade burguesa.

92 Cf. EVANGELISTA, J. E. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno, 1997, p. 58. Ver também o nosso

Então:

O caráter misterioso que o produto do trabalho apresenta ao assumir a forma de mercadoria, donde provém? Dessa própria forma, claro. A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma da igualdade dos produtos do trabalho como valores; a medida, por meio da duração, do dispêndio da força humana de trabalho, toma a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos do trabalho (MARX, 2006, p. 94).

É por nós vivermos em uma sociabilidade em que tudo é permutável, que não conseguimos pensar em uma sociedade em que as coisas não precisam ser trocadas. É quase inimaginável que se consiga pensar em uma sociedade na qual não existe troca, atinando que esta é mediada pelo dinheiro enquanto mediador universal.

O conceito de “fetichismo” designa uma ilusão ligada à forma de aparição do valor, ou seja, à sua forma fenomenal. Isto implica a indissociabilidade entre a teoria marxiana do valor e o conceito ou, caso, assim, se queira, a teoria ou a doutrina do fetichismo, de Marx. A confusão de aparência com essência no fetichismo aparece porque, na sociedade capitalista, o valor parece algo inerente às mercadorias, natural a elas. Marx (2006, p. 94) diz:

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.

Quando se vê mercadorias, vê-se relações entre coisas. Aqui, nós temos uma inversão. As relações sociais ao invés de serem relações entre indivíduos humanos, se nos apresentam, sob a lógica do capital, como que moldadas por relações de uma coisa com outra, de uma mercadoria com outra. Então, os indivíduos sucumbem diante dos produtos, das coisas. Há uma coisificação dos indivíduos humanos e uma contraposta humanização das coisas, das mercadorias. Estas, portanto, se sobrepõem aos homens. Tal situação caracteriza, precisamente, a violência da forma mercadoria.

Norman Geras comenta, didaticamente, como Marx sustenta que,

as propriedades conferidas a objetos materiais na economia capitalista são reais e não produtos da imaginação. Só que não são propriedades naturais. São sociais. Constituem forças reais, não controladas pelos seres humanos e que, na verdade,

exercem controle sobre eles: são as “formas de aparência” objetivas das relações econômicas que definem o capitalismo. Se essas formas são tomadas como naturais, isto se deve a que seu conteúdo ou essência social não é visível imediatamente e só pode ser revelado pela análise teórica (FETICHISMO, 1988, p. 149).

Marx (2006, p. 98) chega mesmo a dizer que:

Formas dessa natureza constituem as categorias da economia burguesa. São formas de pensamento socialmente válidas, portanto objetivas, ajustadas às relações desse modo de produção historicamente definido, a produção de mercadorias. Todo o mistério do mundo das mercadorias, todo o sortilégio e a magia que enevoam os produtos do trabalho, ao assumirem estes a forma de mercadorias, desaparecem assim que examinamos outras formas de produção.

O nosso filósofo relaciona o fetichismo com o modo de produção especificamente capitalista. Tenta nos fazer compreender a nossa relação enquanto indivíduos humanos e as mercadorias. Os indivíduos produzem as mercadorias; mas elas parecem ganhar vida própria. Elas se emancipam de quem as produziu. O criador perde o controle sobre a sua criação, e as criaturas passam a dominar o seu próprio criador. Isto é, no mínimo, perturbador. Parece mágica. Na realidade, há aqui, um paradoxo. O que, na verdade, é uma assombração. Somos todos nós, proletários: assombrados, violentados, cotidianamente, pelo poder que as mercadorias assumiram no mundo que elas comandam, ou seja, na sociabilidade do capital.

É assim que as mercadorias, então, assumem formas fantasmagóricas que passam a assombrar os seus produtores diretos, os trabalhadores assalariados. Estabelece-se um ciclo mágico em que as coisas vão tomando o controle, e os seres humanos ficando sempre, e cada vez mais, mediante os avanços tecnológicos e o correspondente progresso e enriquecimento utilitário das mercadorias, submetidos a elas. Isso quer dizer, como já alertara Marx que, na sociabilidade do capital, quanto mais elaborado é o produto, mais empobrecido material e espiritualmente estará o trabalhador. Isto nada mais é do que o resultado das relações de trabalho, sob o capitalismo, nas quais os trabalhadores perdem o controle sobre o produto do seu próprio trabalho – as mercadorias.

Bruschi (2016, p. 65) comenta, satisfatoriamente, que:

O “sensível-suprassensível” da mercadoria é o fato de que, de um lado, ela é uma coisa (ou um serviço) perceptível aos sentidos, com utilidade e composição concreta e material, mas, de outro, tem propriedades imperceptíveis aos sentidos (“suprassensíveis”): possui valor, com o qual se iguala, nas trocas, a outras mercadorias.

Nós jamais vemos algo que é elementar. Que todas as mercadorias, quer seja uma poltrona, uma garrafa de vinho, uma água engarrafada etc., são produtos da atividade dos

indivíduos humanos, dos trabalhadores. Por exemplo, ao nos depararmos com coisas tais como uma garrafa de água, uma poltrona e um computador, que seja, vemos sempre isto como uma relação entre coisas. No entanto, as coisas ou mercadorias, como as nossas roupas, os carros, casas, quaisquer que sejam elas, somos nós trabalhadores que as produzimos. E, contraditoriamente, nós não vemos as relações de trabalho entre nós – os trabalhadores. A relação entre os trabalhos, entre os trabalhos individuais, a atividade humana, expressam-se como relações entre coisas. Quer dizer, cotidianamente, os trabalhadores produzem as coisas que são vendidas, compradas, trocadas. As relações sociais se tornaram reificadas, tornaram-se relações entre coisas; e não entre seres humanos. E isso não é um erro da nossa consciência, as coisas se comportam assim mesmo, dessa maneira.

Vejamos um exemplo taxativo, cabal. As pessoas passam fome. Segundo um estudo do Instituto Internacional de Investigação sobre Política Alimentar (IFPRI, na sigla em inglês) mostra que pelo menos 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo, hoje93. E este número não para de crescer. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) diz que a fome vem crescendo “por consequência dos conflitos armados, mudanças climáticas e da deterioração de algumas economias”94. Naturalmente, isto evidencia o agravamento da

crise estrutural do capital. Contudo, ainda segundo a própria FAO, existem, hoje, alimentos para alimentar a humanidade duas ou três vezes. Qual é o grande problema? Por que é que as pessoas passam fome? Porque as pessoas não têm capacidade monetária de comprar os alimentos95. Há alimentos suficientes; porém, há pessoas com fome. Portanto, a sociedade

burguesa se rege por relações mercantis. São as mercadorias que dominam o mundo. O mundo capitalista é construído sob a lógica da forma mercadoria sendo, então, estruturado, determinado pelo padrão violento da forma mercadoria.

Como estamos enfatizando, a forma mercadoria dá o tom da sociabilidade do capital, da sociabilidade atual. E uma necessidade constante do modo de produção capitalista é o aumento e o aperfeiçoamento da logística da produtividade. Isso se dá devido à concorrência entre as empresas capitalistas, bem como para buscar aumentar a taxa de lucro mediante o

93 CRAIDE, Sabrina. “1 bilhão de pessoas passam fome no mundo. Pesquisa mostra que cerca de 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo”. Amambai Notícias. Postado em 05/01/2018. Disponível em: <http://www.amambainoticias.com.br/mundo/1-bilhao-de-pessoas-passam-fome-no-mundo>.

94 Ver a reportagem de Letícia Cotta para o Correio Braziliense: “Número de pessoas que passam fome cresce em

todo o mundo, aponta estudo”, postada em 05/12/2017. Disponível em:

<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/12/05/internas_polbraeco,645718/quantas- pessoas-passam-fome-no-mundo.shtml>.

95 Conforme palestra proferida pelo prof. Dr. Frederico Costa no Grupo de Pesquisa Ontologia do Ser Social, História, Educação e Emancipação (GPOSSHE): “O fetichismo da mercadoria e a sociabilidade atual”, em 28 set./2017. Universidade Estadual do Ceará (UECE).

incremento da mais-valia relativa. No entanto, no capitalismo, o racionalmente possível é apenas um fragmento. Ou conforme o excelente exemplo de Wolgang Fritz Haug (1997, p.150):

O desenvolvimento do poder dirigente do capitalismo nos Estados Unidos mostra drasticamente como cada avanço na produtividade, no âmbito do capitalismo, faz aumentar ainda mais as potências destrutivas desse tipo de produção, levando à aniquilação do capital e das forças produtivas no conjunto da sociedade, sob a forma de crises e guerras; sabotam-se as possibilidades técnicas; o exército de miseráveis e desempregados cresce incessantemente, e uma parte desse exército é absorvida pelas forças armadas, sendo duplamente arrastada para a aniquilação, ao massacre de outros povos e ao próprio extermínio no campo de batalha.

Como havíamos aludido, um pouco mais acima, estamos enfrentando uma relação de aparência e essência, pois na aparência, a forma social burguesa estaria estruturada na base de relações entre coisas, de mercadorias com mercadorias. Contudo, por trás dessa relação entre mercadorias, temos relações humanas, relações sociais, temos os trabalhos dos trabalhadores.

Somente na sociabilidade do capital, embasada na forma mercadoria e na propriedade privada dos meios de produção, na qual predominam as relações de mercado, em que os trabalhos executados são mensurados uns em relação aos outros, através da redução ao padrão comum do dinheiro, sendo esse o modo pelo qual o trabalho privado é tornado social96, é que se estabelece a fetichização das mercadorias e a correspondente reificação das relações sociais, na qual as relações entre as pessoas é mediada pelas coisas, isto é, pela forma mercadoria enquanto fundante da sociabilidade do capital97. Então, é isto que leva a que Marx (2006, p. 97-98) escreva como a

forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro, que realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência. Quando afirmo que casaco, botas etc. estabelecem relações com o linho, como encarnação universal do trabalho humano abstrato, causa espanto o absurdo da afirmação. Mas, quando os produtores de casaco, botas etc., estabelecem relação entre essas mercadorias e o linho (ou entre elas e o ouro ou a prata, o que nada muda na substância da coisa), como equivalente universal, ou encarnação universal do trabalho humano abstrato, é precisamente sob aquela forma absurda que expressam a relação entre seus trabalhos particulares e o trabalho social total [grifo nosso].

96 Conferir também o verbete Mercadoria, fetichismo da: MOHUN, Simon. In: OUTHWAITE, W; BOTTOMORE, T. (Editores). Dicionário do pensamento social do século XX, 1996, p. 461.

97 “Reificação é o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas” (REIFICAÇÃO, 1988, p. 314).

É essa forma absurda, insana e incurável, o caráter distintivo do capital. Ou da fetichização da sociabilidade do capital, portanto, de uma sociabilidade estranhada, alienada. Esta separa os indivíduos através de uma brutal concorrência e da consequente antinomia e atomização entre eles, impelidos que são a se tornarem possuidores de mercadorias, quer seja pela exploração constrangedora da força de trabalho, quer seja na utilização da propriedade privada dos meios de produção de acordo com os interesses exclusivos das classes dominantes, a saber, os capitalistas (o capital encarnado).

Faz-se mister, ainda, ressaltar uma outra imposição do mundo das mercadorias. Recordemos que os trabalhadores estão também assujeitados, compulsoriamente, à “exploração secundária”, mediante o funcionamento estrutural da produção e a correspondente circulação de mercadorias, a se tornarem forçosamente consumidores, a fim de que se complete o fluxo do capital: produção, circulação (comércio) e lucro, pois, somente deste modo o capitalista chega ao seu êxtase, qual seja, a contínua acumulação e concentração privada e individual da riqueza. O que deixa patente o sórdido egoísmo burguês. Contudo, atentemos, como nos alerta David Harvey (2013, p. 48), para que:

O que interessa a Marx, porém, não são as implicações morais. Seu interesse é mostrar como o sistema de mercado e a forma-dinheiro disfarçam as relações reais por meio da troca de coisas. Ele não está dizendo que esse disfarce, que ele chama de “fetichismo” (e note que o uso que Marx faz desse termo é técnico e absolutamente distinto de outros usos comuns), é mera ilusão, uma construção artificial que deve ser desmontada quando bem entendermos.

De fato, nós tomamos decisões tangíveis com base na nossa percepção e manuseio prático das coisas com as quais nos relacionamos cotidianamente. As coisas, realmente, aparecem como aquilo que elas são e podemos observá-las naturalmente no modo como elas se manifestam, o que implica a nossa convivência com elas, muito embora, através da análise teórica passamos a ter ciência que elas mascaram as relações sociais.

Marx (2006, p. 97) diz:

Refletir sobre as formas da vida humana e analisá-las cientificamente é seguir rota oposta à do seu verdadeiro desenvolvimento histórico. Começa-se depois do fato consumado, quando estão concluídos os resultados do processo de desenvolvimento. As formas que convertem os produtos do trabalho em mercadorias, constituindo pressupostos da circulação das mercadorias, já possuem a consistência de formas naturais da vida social, antes de os homens se empenharem em apreender, não o caráter