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Mercadorias: valores de uso, valores de troca, e valor

3 CRÍTICA DA RIQUEZA BURGUESA [CAPITALISTA] E A

3.1 Mercadorias: valores de uso, valores de troca, e valor

Comecemos por caracterizar a mercadoria. Esta é, antes de mais nada, escreve Marx (2006, p.57), “um objeto externo [ao homem], uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia” (Grifo nosso). Assim, a sua utilidade, determinada pelas suas propriedades, faz dela um valor de uso73. Marx inicia, dessa forma, a caracterização da mercadoria como valor de uso. Veremos, no entanto, que a mercadoria comporta dois

72 Documento eletrônico sem paginação. Cf. também a obra do mesmo autor, mais recentemente publicada: A

loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI, 2018.

momentos a um só tempo. Ela é, ao mesmo tempo, valor de uso e valor de troca. Há, destarte, uma dialética na forma-mercadoria.

Marx coloca a mercadoria no começo da exposição do livro O Capital, por ser ela a forma mais geral da “riqueza” capitalista74. Enfatiza que “a riqueza nas sociedades onde rege

a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias’1”75. O adjetivo “imensa” sugere a desmedida da produção capitalista que resulta em um grande número e variedade de mercadorias contrárias às legítimas necessidades das nossas condições de existência, vindo mesmo a compor uma deformação imposta à sociabilidade estigmatizada por sua produção. Ressalte-se que “Marx está preocupado exclusivamente com o modo de produção capitalista” (HARVEY, 2013, p. 26) e, por isso mesmo, constrói uma teoria geral das relações de produção na economia capitalista. Desse modo, pensando de acordo com Rubin (1987, p. 15): “Não conseguiremos compreender corretamente nenhuma afirmação de Marx em O

Capital se negligenciarmos o fato de que estamos tratando de eventos que ocorrem numa

sociedade específica”. E para nós, portanto, é importante, então, frisar que Marx não vai estudar a riqueza em geral, mas sim, a riqueza no modo de produção capitalista.

Ainda por nossa vez, ampliamos a observação acima, afirmando que não entenderemos adequadamente o conjunto da obra de Marx, caso não nos dermos conta de que o nosso filósofo tem como objeto a desvelar, o processo civilizatório que culmina com a formação da sociedade civil-burguesa, a qual ele decide decifrar.

E para analisar o modo de produção capitalista, a produção material e as suas expressões espirituais ou culturais na sociedade burguesa, Marx parte, em sua obra maior, O

Capital, como estamos vendo, da observação empírica, da existência fenomênica das

mercadorias, porque elas estão presentes em nossas experiências cotidianas. É algo com o que todos nós nos relacionamos diariamente. No capitalismo, tudo é mercadoria: os bens, os serviços, a educação, um livro, uma passagem de ônibus, a nossa consciência, a ciência, etc. Mas, como diz com justeza David Harvey (2013, p. 26), Marx “precisa encontrar um caminho para falar da mercadoria em geral”. Dessa forma, Marx (2006, p. 58) afirma: “A utilidade de uma coisa faz dela um valor-de-uso”. Então, é com o conceito de valor de uso que começa a análise marxiana da forma-mercadoria, e isto terá desdobramentos fundamentais, como veremos a seguir, para a compreensão do sistema capitalista na sua totalidade.

Mas para que o valor-de-uso se efetive é necessário o consumo. Isto é, o valor de uso se efetiva no uso ou no consumo. Assim, uma mesa só será uma mesa, quando usada. A

74 Ver os comentários de GRESPAN, J. A mercadoria: Karl Marx, 2006, p. 12.

utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Porém, o que é útil em uma determinada sociedade, não o será, necessariamente, em uma outra, sendo esta realidade, portanto, um ato histórico e social. Dessa forma, só se pode medir as coisas socialmente. Na forma social burguesa (isto é, no capitalismo), os valores-de-uso são, ao mesmo tempo, “os veículos materiais do valor-de-troca” (MARX, 2006, p. 58). Assim, o produto do trabalho, sob o capitalismo, é um valor de uso e é, concomitantemente, valor de troca. Ou como diz Marx, os valores de uso são o substrato material do valor de troca, pois, tudo o que é produzido é destinado à venda. Quer dizer: no capitalismo, produz-se valor de uso, na forma mercadoria, valor de troca, ou seja, valor excedente (mais-valia).

Desse modo é que no capitalismo temos, por exemplo, uma grande parcela da sociedade passando fome, e na outra ponta valores de uso que não se realizam, não se efetivam, isto é, por exemplo, alimentos que são desvencilhados, que apodrecem, já que a estrutura social do capitalismo exige que tudo seja comprado, e uma grande parcela da população não tem dinheiro para comprar alimento. Sendo que isto resulta da exploração do trabalho. Evidenciando a violência do capital contra o trabalho, neste caso, precisamente, temos a violência do regime do salariato, como também do desemprego que é um seu correlato. Sendo que a violência aqui, é decorrente da forma mercadoria que domina a estrutura da sociabilidade do capital.

Desde já, adiantemos sobre um princípio básico do modo de produção capitalista, a saber, o de que a acumulação de capital é a força que move a sociedade burguesa. Sendo que os efeitos e formas do processo de acumulação, estão relacionados ao próprio processo de trabalho. A força de trabalho, no decurso da produção, muda de valor. Faz-se necessário, então, distinguirmos o desenvolvimento dos métodos de produção e buscar ter clareza quanto aos efeitos da acumulação sobre a classe operária, com a introdução, por exemplo, da maquinaria e da produção mecanizada, observando-se que com o advento delas cria-se um exército industrial de reserva e, com ele, a lei geral da acumulação capitalista. Aqui, mais uma vez, Marx é enfático:

Quanto maiores a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia de seu crescimento e, consequentemente, a magnitude absoluta do proletariado e da força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza, mas, quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da

acumulação capitalista (MARX, 2006, p. 748). (Itálico do autor).

Mas, por enquanto, voltemos às nossas considerações a respeito dos valores de uso, porquanto estas ainda se fazem necessárias. Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza em qualquer sociedade. Portanto, medimos a forma social da riqueza pelos valores de uso. Por sua capacidade de serem usados pela sociedade. O que determina que uma sociedade é rica ou não, é a sua capacidade de produzir valores de uso. Mas não é só isso; então, precisamos dar conta da natureza dessa riqueza. Assim é que no capitalismo, onde a riqueza é produzida mediante a exploração do trabalho assalariado, sendo, desse modo, distribuída de forma desigual, tanto em quantidade como em qualidade; tal riqueza é, contraditoriamente, geradora de pobreza e miséria para a classe trabalhadora. Esta quanto mais enriquece o capitalista, proprietário dos meios de produção, vê-se cada vez mais submetida ao jugo violento e egoísta dos interesses particularistas das classes proprietárias e, desta forma, humilhada e desprezada pela sociedade.

Mas, para melhor aclararmos a conceituação do que venha ser valor de uso, podemos elencar cinco fatores que, em última análise, vão conceituar o seu sentido mais profundo, ou seja, fundamental: 1 é útil; 2 o valor de uso compõe o corpo da mercadoria; 3 o valor de uso se efetiva no consumo; 4 é o conteúdo material da riqueza da sociedade; 5 na sociedade em análise, no caso, no capitalismo, compõe o suporte material do valor de troca. Leiamos na letra do próprio Marx (2006, p. 58):

A utilidade de uma coisa faz dela um valor-de-uso. Mas essa utilidade não é algo aéreo. Determinada pelas propriedades materialmente inerentes a mercadoria, só existe através delas. A própria mercadoria, como ferro, trigo, diamante etc., é, por isso, um valor-de-uso, um bem. [...] O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela. Na forma de sociedade que vamos estudar, os valores- de-uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-troca.

Passemos agora, a considerar o valor de troca. A primeira epifania do valor de troca aparece, inicialmente, “na relação quantitativa de valores-de-uso de espécies diferentes” (MARX. 2006, p. 58). Assim, na interconexão entre os dois fatores da mercadoria, o valor de uso representa o aspecto qualitativo, isto é, uma coisa que possui propriedades que satisfazem necessidades humanas. E o valor de troca, de início, tem a perspectiva da quantidade, ou seja, a coisa é considerada segundo a quantidade. Ao se considerarem valores de uso, diz Marx (2006, p. 58), “sempre se pressupõe quantidades definidas, como uma dúzia de relógios, um metro de linho, uma tonelada de ferro etc.”. Por isso, o valor de troca parece, em um primeiro momento, algo inerente, imanente à mercadoria, como algo, por assim dizer, casual. Mas, essa característica da mercadoria, todavia, é uma propriedade social e não natural, que consiste no

poder de atração que possui uma mercadoria sobre as demais e que permite que ela tenha aqueles valores de troca determinados e não outros menores ou maiores. E isto está relacionado à riqueza mercantil que a sociedade reconhece na sua existência76. A seguir, procuraremos ver isto mais detalhadamente. E logo, da relação entre valores de uso e valores de troca, precisamente, sob a égide mais pertinente a este último, chegaremos ao valor. Este sim, o fator que é a expressão definitiva da mercadoria.

Entretanto, em que consiste, de fato, a troca? “Que algo comum, com a mesma grandeza, existe em duas coisas diferentes [...]. As duas coisas são, portanto, iguais a uma terceira, que, por sua vez, delas diferem. Cada uma das duas, como valor-de-troca, é redutível, necessariamente, a essa terceira” (MARX, 2006, p. 59).

Esta terceira coisa é o trabalho abstrato, este mesmo criador de valor. Pois é isto que possibilita que as mercadorias destinadas ao mercado assumam a qualidade de serem permutáveis, isto é, permite que elas sejam trocadas por outras mercadorias. É essa qualidade que Marx denomina valor.

Para Marx, o valor é uma substância, afirma, com acerto, José Arthur Giannotti. E este pensador defende esta sua assertiva, da forma como ora a citaremos.

[...] O valor não pode ser percebido simplesmente como uma relação, suponhamos, entre as horas de trabalho social e os objetos produzidos, a produção deste objeto, desta garrafa e deste relógio e outros mais. Essas relações são fundadas numa substância e fundantes dela, algo historicamente criado, mas que conserva suas relações estruturais num determinado espaço de tempo. Obviamente, Marx está recorrendo, aqui, à noção hegeliana de substância. (GIANNOTTI, 2017, p. 32).

Quer isto dizer que a noção de substância não é em Hegel, nem na compreensão deste, por Marx, simplesmente uma verdade de base, uma essência aristotélica; mas o movimento de um sujeito que deriva da substância viva e que, portanto, é efetivo. Diante disso, o sujeito reinstaura-se enquanto reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, que é a sua substância. O sujeito se estabelece a partir da substância, mas em relações histórico-sociais. Nesta medida, Hegel (1992, p. 30) escreve, por exemplo, no Prefácio da Fenomenologia do Espírito.

18 – [Die lebendige Substanz] Aliás, a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só à medida que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. Como sujeito, é a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a

76 Cf. CARCANHOLO, R. A. “Elementos básicos da teoria marxista do valor”. In: 4º Colóquio Marx e Engels,

reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o seu verdadeiro; e não uma unidade

originária enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que

pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim. (Itálicos do autor).

Parece-nos que esta citada elaboração de Hegel, fica-nos bem aclarada através do comentário de Michael Inwood. Aqui, estamos nos referindo diretamente à noção hegeliana de substância. Escreve o comentador:

Uma substância está em constante atividade, gerando e dissolvendo seus acidentes. A substância aparece em seus acidentes, e estes são a sua aparência (Schein). Mas essa aparição produz não só os acidentes, mas a própria substância: a substância só é substância em virtude de produzir e dissolver acidentes. Assim, os acidentes são ou incluem substância tanto quanto a substância inclui seus acidentes. (INWOOD, 1997, p. 298) (Grifo do autor).

Então, conforme esta elaboração, ao que nos parece acertada, pensamos que “as águas afluem para o nosso moinho”, já que acreditamos que contempla a nossa opinião, corroborando o exímio especialista citado um pouco atrás. Referimo-nos a Giannotti. Afirmávamos, acompanhando as lições do prestigiado professor Giannotti, que o valor, para Marx, é uma substância e que ele o toma a partir da noção hegeliana desta.

Em se concordando que a substância, no sentido hegeliano, não é uma verdade de base, originária, enquanto produtora de um modelo, mas que está em constante atividade, movimento, que gera seus acidentes, e neles aparece, sendo, então, eles a aparência dela. Mas, ainda, que os acidentes resultam da substância, e esta, por sua vez, inclui seus acidentes. E, nesta medida, no que se refere à teoria do valor em Marx, o valor, na formulação marxiana, é o fundante da troca. Porém, necessariamente, é também resultado desta. Temos com isto que o valor é dado em uma relação social da qual ele é o fundante, mas que também ele mesmo é criado pelo movimento histórico de tais relações sociais. Estamos, assim, pois, na esfera da lógica dialética materialista, enquanto lógica da própria estrutura do real, a saber, das relações sociais constituídas pelo capital.

Continuando a análise da troca, deparamo-nos com a contradição entre valor de uso e valor de troca – são estes os dois momentos da mercadoria. Sua contraditoriedade reaparece em todos os níveis do sistema capitalista. Essa é uma dificuldade teórica que Marx enfrenta logo no início da sua análise da mercadoria, o que lhe exigirá um grande esforço didático para torná-la compreensível. Ele argumenta que, como valores de troca, as mercadorias não contêm “nenhum átomo de valor-de-uso”. A abstração do valor de uso, consequência e pressuposto

para o estabelecimento do valor de troca, abre caminho para a elucidação da relação social em que se funda a sociedade das trocas. Marx (2006, p. 60) diz:

Se prescindirmos do valor-de-uso da mercadoria, só lhe resta ainda uma propriedade, a de ser produto do trabalho. Mas, então, o produto do trabalho já terá passado por uma transmutação. Pondo de lado seu valor-de-uso, abstraímos, também, das formas e elementos materiais que fazem dele um valor de uso. Ele não é mais mesa, casa, fio ou qualquer outra coisa útil. Sumiram todas as suas qualidades materiais. Também não é mais o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outra forma de trabalho produtivo. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato”.

O trabalho abstrato é o elemento dialético, o que dá vida e impulsiona o movimento contraditório da forma mercadoria. Faz isso em sendo a negação das formas concretas do trabalho em geral. Trabalho abstrato é, como diz Eduardo Chagas (2009, p. 30),

[...] por um lado, trabalho simples, comum, homogêneo, indiferente às diversas variedades de trabalho, e, por outro, é trabalho socialmente necessário; é “trabalho morto”, trabalho contido, inserido, num produto, quer dizer, tempo de trabalho consumido na produção de coisas, de modo que o produto do trabalho (Arbeitsprodukt), o seu valor de uso, perde seu caráter particular, sua diferença qualitativa, passando a ser apenas um produto do trabalho, um quantum de tempo de trabalho cristalizado.

O resultado prático dessa equação teórica nas relações de troca é muito bem destrinçado por W. F. Haug (1997, p. 159), quando este afirma corretamente que:

Todo ato de troca equipara qualidades incomparáveis entre si (valores de uso) em uma determinada proporção quantitativa (valor de troca). Essa equiparação é abstraída radicalmente da variedade sensivelmente qualitativa; à medida que reduz todas as qualidades sensíveis à mera quantidade, ela nega a autonomia sensível tanto objetiva quanto subjetivamente. A quantia do valor de troca deve não somente acompanhar, mas também dominar a concepção de cada coisa sensível para que ela possa se tornar mercadoria”.

A formulação acima corrobora a nossa ênfase de se pensar o trabalho abstrato como o fundamento da sociedade das trocas, uma vez que, somente a partir da abstração do trabalho concreto é que se poderá moldar relações sociais fundadas, objetiva e subjetivamente, em coisas (mercadorias) que se nos apresentam como que naturalmente possuidoras de forças próprias.

Nossa análise adquire mais robustez ainda, na medida em que propomos novamente uma aproximação de Marx a Hegel, no tempo em que Marx parece seguir as suas pegadas, também quando das formulações iniciais do nosso autor, ao tratar da mercadoria enquanto

célula da totalidade do capital. O filósofo faz isso, como já mencionado, caracterizando a mercadoria em dois fatores: valor-de-uso como substância que implica a qualidade, e valor-de- troca que se refere à quantidade. Assim, a aproximação sobre a qual nos referimos diz respeito a que em Hegel a quantidade constitui o mais abstrato frente à qualidade, em razão de, para ele, a determinidade qualitativa é determinidade que é, visto que ela estaria numa realidade imediata com o ser. Já a quantidade, pelo contrário, é, segundo Hegel, a qualidade suprassumida que se tornou indiferente. Assim, a quantidade pode ser alterada sem que a própria coisa perca sua identidade77.

Desse modo, seguindo a trilha de Hegel, podemos afirmar, com Marx, que a imensa e desmedida quantidade de mercadorias expostas no mercado para serem compradas e/ou consumidas revela a abstração da riqueza burguesa que tem no trabalho útil, concreto, gerador de valor de uso, apenas o substrato material do valor de troca, o qual, doravante, domina as relações entre os indivíduos. É claro, o valor de uso implica a qualidade, enquanto possui propriedades que satisfazem necessidades humanas, como já dito. Desse modo, as mercadorias parecem, aparentam, encarnar na troca, algo que já lhe é próprio por natureza. Abstraindo-se, portanto, o valor de uso, aparece a relação social em que se estabelece prioritariamente o valor de troca.

É esse movimento o que Marx qualifica como “resíduo dos produtos do trabalho”, ainda se referindo ao que chama trabalho abstrato. Vejamos:

Nada deles [dos produtos do trabalho] resta, a não ser a mesma objetividade impalpável, a massa pura e simples do trabalho humano em geral, do dispêndio de força de trabalho humana sem consideração pela forma que foi despendida. Esses produtos passam a representar apenas a força de trabalho humana gasta em sua produção, o trabalho humano que neles se armazenou. Como configuração dessa substância social que lhes é comum, são valores, valores-mercadorias (MARX, 2006, p. 60, grifo nosso).

O trabalho abstrato é, à vista disso, uma forma do trabalho social. Esta forma é o que distingue o trabalho enquanto gerador da riqueza capitalista, burguesa, isto é, o trabalho e a riqueza na época de domínio do capital, na época capitalista. O trabalho abstrato é o princípio regulador que cria “um elo entre produtor e consumidor, vendedor e comprador, esse mediador não é a moeda, antes, mais fundamentalmente, o trabalho abstrato” (BENSAÏD, 1999, p. 212). Mas, de onde vem a dimensão quantitativa do valor, ou, escrevendo mais adequadamente, de onde vem a magnitude do valor? Obviamente, estamos nos referindo aqui

77 Cf. Ciência da lógica: 1. A doutrina do ser, 2016, p. 113 e p. 82. Ver, também, “Apresentação”, de Christian Iber, pp. 09-10.

à magnitude do valor da mercadoria. Como, para Marx, um bem só expressa valor por ser materialização do trabalho humano abstrato, a magnitude do valor se determina pela quantidade ou volume do trabalho humano socialmente necessário para a produção do respectivo bem.