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Trabalho concreto [o útil] e trabalho abstrato

3 CRÍTICA DA RIQUEZA BURGUESA [CAPITALISTA] E A

3.2 Trabalho concreto [o útil] e trabalho abstrato

Marx descobre que o trabalho, na sociedade burguesa, possui uma natureza dúplice: quando se expressa como valor, resultado ou fundamento das ralações de troca, relações mercantis, as quais manifestam a produção capitalista, toma a forma de trabalho abstrato, indiferenciado. Deste modo, “não possui mais as mesmas características que lhe pertencem como gerador de valores-de-uso” (MARX, 2006, p. 63). Assim, a sua força como trabalho útil- concreto fica submetida aos interesses do capital, às relações interesseiras, egoístas e possessivas dos capitalistas.

Está, portanto, claro, depois que Marx torna possível ao mundo compreender a economia política, quer dizer, depois que ele fez a crítica da economia política, que a mercadoria somente aparece com os seus dois fatores, valor de uso e valor de troca, porque o trabalho que a produz tem esse duplo caráter, essa natureza dúplice: e isto, Marx foi o primeiro a analisar e a pôr em evidência.

Nessa acepção, o que vamos tentar fazer agora é buscar interpretar o sentido que a dupla dimensão do trabalho na sociedade burguesa sugere à análise de Marx. Portanto, estaremos tratando da categoria trabalho em sua dupla forma: trabalho concreto enquanto a atividade vital e sempre necessária desde o surgimento da espécie humana. E trabalho abstrato, como trabalho historicamente determinado pela forma social burguesa, o qual é a fonte geradora de mais-valia. Marx (2006, p. 68) diz:

Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores-de-uso.

Vale observar que Marx inicia a redação de uma carta endereçada a Engels, datada em 24 de agosto de 1867, revelando o que ele considerava o melhor do seu livro O Capital, “[...] sobre este repousa (e a compreensão toda dos fatos depende disto) o duplo caráter do trabalho posto em evidência desde o primeiro capítulo, conforme ele se exprime em valor de uso ou em valor de troca” (MARX; ENGELS, 1965, p. 192).

É do trabalho “concreto” ou “útil” que resulta a qualidade, a particularidade do produto, da mercadoria, o que lhe confere sua utilidade específica. O trabalho abstrato, por outro lado, é expressão da atividade de possuidores de direitos sobre a força de trabalho dos trabalhadores. É, portanto, dessa forma, um trabalho que é controlado por um agente particular e, deste modo, privado, o que significa que tal relação de trabalho tem natureza de classe. Escrevendo melhor, o trabalho abstrato é uma imposição das relações sociais de produção que estão sob a tutela da burguesia capitalista. Quer dizer, é um trabalho que serve a interesses particulares, ao egoísmo possessivo da classe burguesa – aos burgueses capitalistas. E isto não é uma condição meramente subjetiva, ou uma ficção jurídica, mas sim um processo real, histórico, que se constitui em relações materiais de produção. E é nessa condição de um elemento histórico- social que o trabalho abstrato deve ser entendido. Devemos então construir o conceito de trabalho abstrato, que cria valor, na mesma base deste, uma vez que, o conceito de valor possui também um caráter histórico e social na obra de Marx (sendo esta precisamente, como afirma, Rubin, sua contribuição e a característica distintiva de sua teoria)81. E mais:

Para compreender com exatidão a teoria de Marx sobre o trabalho abstrato, não podemos nos esquecer por um minuto de que Marx põe o conceito de trabalho abstrato

em nexo inseparável com o conceito de valor. O trabalho abstrato “cria” valor é o “conteúdo” ou “substância” do valor (RUBIN, 1987, p. 151).

Uma nota de Engels nos dá um esclarecimento inicial da teoria do trabalho abstrato em Marx [nota da 4ª edição de O Capital, Livro 1, cap. 1]:

A língua inglesa tem a vantagem de possuir duas palavras distintas para designar esses dois aspectos diferentes do trabalho. O trabalho que gera valores-de-uso e se determina qualitativamente chama-se de “work”, distinguindo-se, assim, de “labour”, o trabalho que cria valor e que só pode ser avaliado quantitativamente. [Nota de Engels]. (MARX, 2006, p. 69).

O trabalho abstrato é negativo, é a negação do trabalho concreto (positivo), é o “trabalho morto”, “pretérito”, contido no valor das mercadorias. A sua finalidade é a criação da mais-valia, a reprodução e autovalorização do capital. Como diz Giannotti (2000, p. 95):

A dupla qualidade do trabalho, concreto e abstrato, reformulando para uma dada época a oposição entre trabalho vivo e trabalho morto, constitui, pois, determinação essencial desenhada pelo circuito da reflexão da troca mercantil. Esse processo produtivo peculiar possui essa diferença como ponto de partida e de chegada. Mas a existência desse tipo de trabalho abstrato está condicionada, em primeiro lugar, pelo modo de reposição e circulação das mercadorias, tornando sistematicamente indiferente que um produtor trabalhe este ou aquele objeto, desde que continue a medir seu produto segundo o parâmetro criado por uma sociabilidade determinada. Essa estrutura sincrônica, porém, depende, em segundo lugar, do desenvolvimento tecnológico, portanto, de um fator do vir a ser histórico, responsável pelas condições em que os trabalhos se tornam substituíveis.

Particularmente, um trecho de Para a Crítica da Economia Política, dá-nos uma ideia mais completa da teoria de Marx sobre o trabalho abstrato. Vejamos, então, na própria letra do autor,

[...] cavar em busca de ouro, extrair ferro da mina, cultivar trigo e tecer a seda são modos de trabalho qualitativamente diversos entre si. De fato, o que concretamente aparece como diversidade de valores de uso aparece em processo como diversidade da atividade que produz os valores de uso. Sendo indiferente frente à matéria particular dos valores de uso, o trabalho que põe o valor de troca é, por isso, indiferente frente à forma particular do próprio trabalho. Diversos valores de uso são além disso produtos da atividade de indivíduos distintos, portanto resultado de trabalhos individualmente diferentes. Mas, como valores de troca, apresentam trabalho igual, sem diferenças, isto é, trabalho em que a individualidade dos trabalhadores se extinguiu. Trabalho que põe valor de troca é por isso trabalho

abstratamente geral (MARX, 1978, p. 136-37) (Itálico do autor).

Não obstante, mesmo no capitalismo, há uma inter-relação entre o trabalho útil e o trabalho abstrato. Isto acontece porque o trabalho é uma necessidade primária de todas as

formas de sociabilidade. Algo que, absolutamente, não dispensa a necessária distinção entre essas duas formas de trabalho.

O que é fundamental é se ter ciência de que o valor, a sua existência, tem uma materialidade puramente social. Que a sociedade mercadológica tem uma objetividade material e temporal, afirmada na sua formação e desenvolvimento históricos, o que lhe confere, naturalmente, uma sociabilidade específica, traduzida no seu objetivo primaz, a saber, a acumulação e a concentração das riquezas, advindas da produção e da circulação de mercadorias, geradoras do excedente, dos lucros dos capitalistas, pela exploração dos trabalhadores sob o regime do salariato.

Na verdade, o trabalho abstrato não é um construto puramente mental, embora a consciência, o espírito, o reproduzam; ele é, antes de mais nada, o movimento da abstração própria do real, ou seja, da metafísica, da abstração da sociedade capitalista. É a própria produção de mercadorias que tem como consequência necessária a troca, e que tem como substrato o trabalho abstrato, o qual cria um mundo em que as coisas (as mercadorias) aparecem e se manifestam de uma forma misteriosa enquanto entidades que parecem ter vida própria, visto que estabelecem relações sociais que se submetem ao seu comando. O que torna a sociedade das trocas, uma sociedade de relações metafísicas, nas quais parece, à primeira vista, que se faz necessário a construção do sentido como algo estritamente intelectual, quer dizer, primeiramente, espiritual. Então, a filosofia contemporânea se perde em uma ilusória busca pelo sentido82; quando, na realidade, o que deveria ser antes perguntado é: em que condições o

82 Aqui, nos lembramos, mais precisamente, de Heidegger, na sua obra Ser e tempo (1926), a qual tem por questão fundamental: o sentido do ser. Leiamos algumas palavras do autor: “No início dessa investigação não se pode discutir em detalhes os preconceitos que, sempre de novo, plantam e alimentam a dispensa de um questionamento do ser. Eles encontram suas raízes na própria ontologia antiga. [...] Nós só conduziremos a discussão dos preconceitos até onde se possa ver a necessidade de se repetir a questão sobre o sentido do ser. [...] Deve-se colocar a questão do sentido do ser tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento precisa, portanto, adquirir a devida transparência” (HEIDEGGER, 2012, p. 38, 40). E o filósofo imprime a sua busca pelo sentido do ser por toda a obra. Além de outros autores, esse tema inspira a filosofia contemporânea, notadamente a filosofia dita pós-moderna, a exemplo de Gianni Vattimo, que no seu O Fim da Modernidade (1985) discute a concepção hermenêutica heideggeriana do ser como eventualidade e alteridade, e os seus correspondentes desdobramentos. Nesta medida, Vattimo toma a hermenêutica heideggeriana, além do niilismo de Nietzsche, como as expressões culturais e filosóficas que inaugurariam a assim chamada pós-modernidade. (Cf. VATTIMO, 1996, pp. 153, 158, 159 passim). Ora, contrariamente à busca pelo sentido do ser, objeto central para Heidegger, que, portanto, permanece na filosofia da consciência. A questão é bem outra, isto é, a de se procurar saber, primeiramente, em quais condições o sentido é construído.“Agora bem, quando Nietzsche, como representante da apologética indireta, aborda de novo o problema da afirmação do egoísmo – tendência que, como veremos, desempenha já importante papel em sua juventude, na atualização mitificadora do ‘agon’, da ‘Éris boa’ –, não se trata já, nele, de idealizar a nascente sociedade burguesa, todavia progressista e até revolucionária, mas, pelo contrário, de idealizar aquelas tendências egoístas da burguesia já em seu declínio que se desdobravam no período do imperialismo: quer dizer, do egoísmo de uma classe condenada pela história a perecer e que, em sua luta desesperada contra seu coveiro, contra o proletariado, mobilizava todos os instintos bárbaros soterrados no homem e ascendia neles sua ‘ética’”. (LUKÁCS, 1959, p. 281).

sentido é construído? Mas se, ao contrário, insiste-se em se permanecer na filosofia da consciência, é impossível termos as respostas que o nosso próprio meio material requer.

E quanto à produção de mercadorias, ao não considerarmos que é o seu movimento material que opera na forma de abstração, fazendo com que nos percamos na suposta ilusão de uma naturalidade de suas manifestações, não nos damos conta das relações sociais que as materializam. Concretamente, os artífices das mercadorias, passam a ser o seu suporte. E isto parece um mistério, ou um feitiço imposto aos seus produtores, que se perdem atonitamente, tornam-se inertes, e que são assim violentados nesse movimento, nesse processo da produção das mercadorias.

A consciência dos produtores, dos trabalhadores, é violentada no decurso do jogo da produção e da circulação das mercadorias, as quais têm na expressão e na forma do valor, a realidade material e espiritual da sua abstração, como construção de um mundo criado com base no trabalho abstrato, o qual é a forma de trabalho que gera valores, valores-mercadorias. E isto aparece aos trabalhadores como algo natural, casual, que foge ao controle deles, mas que lhes parece indicar a normalidade, a naturalidade, da vida social. Assim, eles não se dão conta que estão aprisionados, coagidos, violentados, pela estrutura material e a correspondente cultura e vida espiritual do modo de produção capitalista, sob o qual a riqueza se expressa na posse e no consumo de mercadorias, na forma de uma necessidade ou de um desejo a ser satisfeito. Como diz um breve, porém, intenso comentário de Ruy Fausto (1983, p. 123, nota. 4):

Na realidade, o trabalho abstrato não é nenhuma construção do espírito, embora o espírito a reproduza, nem uma generalidade fisiológica: é o movimento da abstração que se opera no próprio real. A produção de mercadorias opera, ela própria, a abstração: ela – e não nós, que nos limitamos a reproduzi-la – opera a redução (e o termo “redução” ao qual Marx volta já é sintomático) do concreto ao abstrato. [Grifo do autor].