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Fetichismo na música e regressão da audição

Com efeito, Adorno não vê mais como a arte ser um meio para a liberdade e um campo para o exercício da escolha e do juízo de gosto uma vez que, na sociedade de massas, a existência do indivíduo que poderia fundamentá-los tornou-se bastante problemática. É na análise da música que o filósofo alemão localiza a maior evidência desse estado de coisas:

32 BENJAMIN, op. cit., “A obra de arte...”, p. 171-172.

33 BENJAMIN, “O autor como produtor”. In: op. cit., p. 131-132. 34 FONTENELLE, op.cit., p. 21.

O próprio conceito de gosto está ultrapassado. A arte responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso. De resto, já não há campo para escolha (...). Se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar ou não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto

ao que lhe é apresentado35.

A onipresença da mediação da valorização mercantil na produção e no consumo dos produtos da cultura invalida toda pretensão de arte autônoma, “cultivada e valorizada em virtude de seu próprio valor intrínseco”36. Nesse contexto, a sobrevalorização da música dita “erudita” ou “clássica” não seria senão uma “fuga” ilusória dessa ordem de coisas, uma vez que seu valor “intrínseco” também já estaria perdido na bipartição entre “erudito” e “popular”. Ao invés de ter valor “em si e para si”, o “erudito” se define apenas por oposição complementar ao “popular” sendo, portanto, um falso rótulo para um problema que atinge toda e qualquer música. Nesse sentido, Adorno considera que a própria divisão entre “música séria” (dita clássica ou erudita) e “música ligeira” (do passé par tout popular) é um atestado “do insucesso de toda cultura [da Antigüidade] até nossos dias”37.

Na impossibilidade de reconstituir toda a complexidade e erudição da argumentação adorniana (que remonta à análise das inversões de sentido na função da música na história ocidental), faz-se aqui um esforço de reter-lhe o principal e, assim, aproximá-la do interesse específico deste trabalho. Uma ilusão que Adorno procura desfazer é que o imenso apelo ao entretenimento e ao prazer dos sentidos da música contemporânea não faz senão demonstrar sua incapacidade em realmente conferir prazer. De objeto direto de fruição e gozo, esta música passou a “pano de fundo”, a trilha sonora das vivências individualistas no contexto da

35 ADORNO, Theodor. “O Fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Adorno, Benjamin, Habermas e

Horkheimer: Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores), p. 165-166. 36 Idem, p. 166.

37 ADORNO, T. “Idéias para a sociologia da música”. In: Adorno, Benjamin, Habermas e Horkheimer, op. cit., p. 268.

condição urbana de massas. Para Adorno, a “utopia” em unir “emancipação e o aspecto de prazer e entretenimento” em música teria culminado e se encerrado no “Singspiel” da “Flauta Mágica” de Mozart. Ali, diferentemente do que Adorno reconheceu no jazz e em outras modalidades de música popular urbana nos Estados Unidos, o prazer da fruição do divertimento oferecido aos sentidos não se resume aos “achados” surpreendentes de cada parte, ao colorido timbrístico, ao virtuosismo vocal ou à inteligência do tema lúdico e cômico. O prazer está, sim, em cada um desses elementos, mas apenas na medida em que sintetiza e conduz a uma experiência do todo. É isto que Adorno não vê na música de apelo popular difundida massivamente ou na música que, para isolar-se desta, se quer “séria” e se recolhe aristocraticamente em um falso valor de si mesma.

Os referidos momentos isolados de encantamento não são reprováveis em si mesmos, mas tão-somente na medida em que cegam a vista. Colocam-se a serviço do sucesso, renunciam ao impulso insubordinado e rebelde que lhes era próprio, conjuram-se para aprovar e sancionar tudo o que um momento isolado é capaz de oferecer a um indivíduo isolado, que há muito tempo deixou completamente de existir. Os momentos de encanto e de prazer, ao se isolarem, embotam o espírito. (...) na arte os valores dos sentidos [são] portadores do espírito, que somente se revela e se degusta no todo, e não em

momentos isolados da matéria artística38.

Ao perder seu momento de síntese e de condução à experiência do todo (a experiência estética como “promessa de felicidade” e experiência da totalidade), a arte da música decai nas artimanhas e ciclos de sucesso do mercado cultural. Como mercadoria, a música se torna “depravada” e “promíscua”, uma vez que sua finalidade primeira e última é tornar-se conhecida pelo maior público possível, o que só pode ocorrer se conseguir ser reconhecida (com a divulgação da imagem dos artistas) e, assim, ser vendida.

Se as duas esferas da música se movem na unidade de sua contradição recíproca, a linha de demarcação que as separa é variável. A produção musical avançada se independentizou do consumo. O resto da música séria é submetido à lei do consumo, pelo preço do seu conteúdo. (...) O princípio do “estrelato” tornou-se totalitário. As reações dos ouvintes parecem desvincular- se da relação com o consumo da música e dirigir-se diretamente ao sucesso

acumulado, o qual, por sua vez, não pode ser suficientemente explicado pela espontaneidade da audição, mas, antes, parece comandado pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio. As “estrelas” não são apenas os nomes célebres de determinadas pessoas. As próprias produções já começam a assumir esta denominação. (...) Esta seleção perpetua-se e termina num círculo vicioso fatal: o mais conhecido é o mais famoso e tem mais sucesso. Conseqüentemente, é gravado e ouvido sempre mais e, com isto, torna-se

cada vez mais conhecido39.

É então que Adorno afirma categoricamente que a modificação da função da música “atinge os próprios fundamentos da relação entre arte e sociedade. Quanto mais inexoravelmente o princípio do valor de troca subtrai os homens aos valores de uso, tanto mais impenetravelmente se mascara o próprio valor de troca como objeto de prazer”40. Como que esquecidos daquela promessa de felicidade que a experiência estética poderia realizar mediante uma dialética do todo e da parte, os homens se apegam com todo o fervor (e mesmo idolatria) às formulas de sucesso e de reconhecimento produzidas no contexto de uma indústria cultural crescente. Assim, ao contrário do que afirmara Benjamin, Adorno não reconhece a forma “arte” na sociedade de massas na “era de sua reprodutibilidade técnica”. Nesse contexto, como uma forma de fetiche (objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e que se presta devoção), a música perde seu antigo valor de culto para justamente se tornar “aurática” mediante os rituais modernos de assimilação do valor de troca da mercadoria. Seu forte apelo ao corpo e mesmo ao erotismo é então percebido por Adorno como sintoma dessa condição “depravada”41:

Quanto mais coisificada for a música, tanto mais romântica soará aos ouvidos alienados. (...) A ampliação, que precisamente sublinha as partes coisificadas, assume o caráter de um ritual mágico, no qual são esconjurados, por quem reproduz, todos os mistérios da personalidade, da intimidade, inspiração e espontaneidade, que desapareceram da própria obra. (...) Depravação e redução à magia, irmãs inimigas, coabitam nos “arranjos”, que passaram a

dominar permanentemente vastos setores da música42.

39 Idem, pp. 170-171.

40 Ibidem, p. 173. Destaque nosso.

41 Sobre o caráter depravado e promíscuo da forma mercadoria, cf. MARX, op. cit., cap. 1 e 2. 42 ADORNO, “O fetichismo...”, op. cit., p. 175.

No pólo oposto desse fetiche (feitiços da música mercadologicamente processada), Adorno localiza uma “regressão da audição”: um estado de escuta atomizada correspondente a uma infantilização geral da sociedade. Nessa condição, os homens se comportam como se intuíssem que uma vida melhor é possível, mas diante das incertezas que essa intuição traz (e do trabalho imenso que teriam para averiguá-la), preferem manter-se na “segurança” do já conhecido e, assim, permanecerem tal como estão.

Os ouvintes perdem com a liberdade de escolha e com a responsabilidade não somente a capacidade para um conhecimento consciente da música – que sempre constitui prerrogativa de pequenos grupos –, mas negam com pertinácia a própria possibilidade de se chegar a um tal conhecimento. Flutuam entre um amplo esquecimento e o repentino reconhecimento, que logo desaparece de novo no esquecimento. Ouvem de maneira atomística e dissociam o que ouviram, porém desenvolvem, precisamente na dissociação, certas capacidades que são mais compreensíveis em termos de futebol ou de automobilismo do que com os conceitos da estética tradicional. Não são infantis no sentido de uma concepção segundo a qual o novo tipo de audição surge porque certas pessoas, que até agora estiveram alheias à música, foram introduzidas na vida musical. (...) o seu primitivismo não é o que caracteriza os não desenvolvidos, e sim o dos que foram privados violentamente de sua liberdade. Manifestam, sempre que possível, o ódio reprimido daquele que tem a idéia de uma outra coisa, mas a adia, para poder viver tranqüilo, e por

isso prefere deixar morrer uma possibilidade de algo melhor43.

Para Adorno, preferir o “sempre igual” em nome de algo insatisfatório, mas garantido, significa confirmar, na prática, os ideais de uma cultura “regressiva”. Este termo psicanalítico pontua uma involução a um estado “primitivo”, regresso no tempo e simplificado na forma (no sentido de perda de complexidade e diferenciação). Porém, independentemente da relação que isto possa ter com uma regressão em relação a “estágios de desenvolvimento” na história da cultura e da música, Adorno sublinha que, em sua atualidade, os ouvintes encontram-se regredidos porque “confirmados em sua nescidade neurótica”, isto é, aprisionados em um estado repetitivo e alternado de excitação e tédio.

43 Idem, p. 180.

A sua adesão entusiasta às músicas de sucesso e aos bens da cultura depravados enquadra-se no mesmo quadro de sintomas dos rostos, de que já não se sabe se foi o filme que os tirou da realidade, ou a realidade do filme; rostos que abrem uma boca monstruosamente grande com dentes brilhantes, encimadas por dois olhos tristes, cansados e distraídos. Juntamente com o esporte e o cinema, a música de massas e o novo tipo de audição contribuem

para tornar impossível o abandono da situação infantil geral44.

Adorno argumenta, então, que o mecanismo da regressão auditiva assemelha-se ao mecanismo da difusão da propaganda, a qual começa induzida por um produtor, mas que, ao tornar-se slogan e nome de marca, se autonomiza enquanto imagem auto-referente. Ao atingir esse ponto, “os ouvintes e os consumidores em geral precisam e exigem exatamente aquilo que lhes é imposto insistentemente”45. E aqui, para que se entenda melhor Adorno, é preciso nos afastar para, em seguida, retornar a ele. A eficácia desse processo fetichista e regredido encenado pelo consumo dá-se pelo fato de seu estatuto ser, em grande medida, inconsciente, como analisa Jean Baudrillard em “O sistema dos objetos”.