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Linha evolutiva e “descação”

Se Tropicalismo é experimentação, a um tempo, local e cosmopolita, Tom Zé sem dúvida faz parte da trupe. Se Tropicalismo foi a explosão colorida alcançada pela autonomia formal da canção, seguida de sua abertura de mercado a todos os gêneros, ritmos e formas, Tom Zé dele participou vivamente no início de sua carreira, mas por força do princípio construtivo de sua forma difícil, manteve-se à margem, menos preocupado com a linha evolutiva da canção nacional do que com a invenção de novas imprensas cantadas, como sua “estética do arrastão”:

Esteticar (Estética do Plágio)

Tom Zé, Vicente Barreto e Carlos Rennó, Defeito de Fabricação, 1998 Pense que eu sou um caboclo tolo boboca

Um tipo de mico cabeça-oca Raquítico típico jeca-tatu

Um mero número zero um zé à esquerda Pateta patético lesma lerda

Autômato pato panaca jacu

Penso dispenso a mula da sua ótica Ora vá me lamber tradução intersemiótica Se segura milord aí que o mulato baião (tá se blacktaiando)

Smoka-se todo na estética do arrastão

Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca estética do plágio-iê

Pensa que eu sou um andróide candango doido Algum mamulengo molenga mongo

Mero mameluco da cuca lelé

Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso Fiapo de carne farrapo grosso Da trupe da reles e rala ralé Penso dispenso a mula da sua ótica Ora vá me lamber tradução inter-semiótica Se segura milord aí que o mulato baião (tá se blacktaiando)

Smoka-se todo na estética do arrastão

Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca estética do plágio-iê

Como, no entanto, o Tropicalismo é baiano de nascimento, carioca de batismo e paulista de estréia, e Tom Zé é o baiano que mais cantou os desvarios da paulicéia, da modernidade e da modernização urbanas, mesmo à margem, sempre esteve no centro da desconstrução paródica dos símbolos e imagens de brasilidade, inclusive da própria música popular brasileira. O maior exemplo disso está na canção “Complexo de Épico”, do disco “TodosOsOlhos”, em que satiriza o status assumido pelos cancionistas no Brasil pós MPB e pós-festivais da canção. Reencontra-se, aqui, aquele sentido teatralizado e em tom de conversação que distingue e singulariza a abertura estética das “descanções” de Tom Zé. Ao compor explicitando dissonâncias, contratempos, instrumentação inusual e afirmar um pensamento sobre os limites “épicos” da forma canção no Brasil, Tom Zé produz meta- linguagem e meta-teoria com leveza de “gaia ciência”. Apresenta, assim, um saber poético- musical que ao mesmo tempo decanta uma refinada reflexão sobre o lugar social da canção no

Brasil e satiriza, num quase deboche, as significações “fora de lugar” que essa música assumiu entre nós em um dado momento histórico. Diz a letra:

Complexo de Épico (TodosOsOlhos, 1973) Todo compositor brasileiro

é um complexado.

Por que então esta mania danada, esta preocupação

de falar tão sério, de parecer tão sério, de ser tão sério, de sorrir tão sério, de se chorar tão sério, de brincar tão sério, de amar tão sério? Ai, meu Deus do céu, vai ser sério assim no inferno! Por que então esta metáfora-coringa chamada "válida",

que não lhe sai da boca, como se algum pesadelo estivesse ameaçando

os nossos compassos

com cadeiras de roda, roda, roda? E por que então essa vontade de parecer herói

ou professor universitário (aquela tal classe

que ou passa a aprender com os alunos-- quer dizer, com a rua --

ou não vai sobreviver)? Porque a cobra

já começou

a comer a si mesma pela cauda, sendo ao mesmo tempo a fome e a comida.

Em 1968, procurando defender a novidade tropicalista, Augusto de Campos criticou duramente um amplo setor da música brasileira que, contra a incorporação de novos timbres como o da guitarra elétrica, propunham-se mantenedores de uma “arte autêntica brasileira”, de ritmos e instrumentos nacionais67. A dura crítica a esse tipo de nacionalismo então vigente se condensou quando Campos cunhou a expressão Tradicional Família Musical brasileira. Ao falar em TFM Campos fazia, assim, um trocadilho com a TFP (Tradição Família e Propriedade, ala hiperconservadora da igreja católica) e sublinhava, por contraste, a explosão modernizante que a Tropicália operava não apenas na música, mas em toda uma maneira de se compreender a questão nacional em relação às exigências da modernidade em um país como o Brasil. Esse modo específico de compreender a música, o moderno e a nação baseava- se, grosso modo, em dois fundamentos: a Antropofagia, com seu princípio de abertura às operações de incorporação e deglutição de todas as novidades culturais, e às exigências internas de desenvolvimento da “linha evolutiva” da música brasileira (expressão cunhada por Caetano Veloso em 1967 em entrevista à Revista Civilização Brasileira e amplamente adotada por Campos desde então). Portanto, de um lado, um conceito nacional – a Antropofagia – para pensar a vocação cosmopolita da cultura brasileira; de outro, um conceito

cosmopolita – desenvolvimento, linha evolutiva – para pensar as exigências locais, específicas das diferentes artes brasileiras, no caso, a música.

É possível ler e escutar muito da música de Tom Zé pela ótica da antropofagia oswaldiana e de um constante investimento na incorporação de informações novas meditadas e forjadas a partir de uma série de operações estéticas (plágio, arrastão, citação, montagem etc.) referidas à linha evolutiva e à tradição da música brasileira (samba, ladainhas, bossa nova, Tropicália, rock). Porém, a especificidade de seu humor, de seu sarcasmo, a originalidade do princípio de composição rítmico-melódica dos ostinatos, a invenção de timbres únicos (nos instronzémentos), o uso de instrumentos harmônicos com função percussiva, o jogo dissonante com ruído e som, a dinâmica de suas performances, a quebra do tempo linear da canção, em suma, a forma estética de sua “descanção” traz realmente algo novo à música brasileira. Algo cujo nome não é exatamente Tropicália, nem operação tropicalista.

É como se esses nomes, carregados por significados históricos emblematizados nos projetos estéticos de Caetano e de Gil, não conseguissem nomear essa quebra de sentido e de compromisso com a chamada MPB (aquele balaio de gatos onde tantos projetos estéticos encontram-se e firmam-se como uma verdadeira instituição cultural brasileira). Tem quem nomeie a obra de Tom Zé como dadaísta e até mesmo como punk, pois parece mesmo inegável que ela se faz pelas margens da música bem- comportada, conforme a um stablishment musical que “cabe” em definições de gêneros e de movimentos. E na verdade não importa muito essa questão dos rótulos em si, mas para o que eles apontam: o fato de haver algo, sendo aí expresso e narrado na música de Tom Zé, que é novo e singular, a um só tempo, em relação não apenas à música brasileira, mas a toda a música contemporânea.

A canção “Complexo de Épico” é uma pilhéria com a “sagrada TFM” brasileira e é também a prática estética de outro tipo de canção (imprensa cantada, distanciamento brechtiano pelo humor, ironia com movimentos musicais, com o papel intelectual cumprido por compositores brasileiros, com certa sensação da passagem do tempo e do envelhecimento de uma perspectiva estética na canção). Poderíamos, então, perguntar: essa canção é também um índice (e uma quase-teoria, às avessas) de um outro jeito de pensar a música e de inserir sua música para além da linha evolutiva brasileira e da deglutição antropófaga? Não cabe aqui responder. Fica apenas indicada essa perspectiva para uma possível interpretação do oxímoro Tom Zé e da “arte-pensamento” que introduziu no Brasil.