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O contexto: São Paulo: Brasil rural, Brasil urbano

2. São São Paulo, Meu Amor

2.3. O contexto: São Paulo: Brasil rural, Brasil urbano

São Paulo, em 1968, era a cidade brasileira que mais evidenciava uma mutação histórica: a passagem do Brasil rural semi-industrializado ao Brasil urbano, em surto desenvolvimentista, processo que significou um fluxo contínuo de migrações e de acelerada urbanização de cerca de trinta anos (durando de 1950 a meados de 1980). Cadinho das contradições do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”53, a cidade mudava de roupa para tornar-se metrópole industrial, porém, não perdera as medidas anteriores. Ao contrário, ganhara peso: a modernidade, antes idealizada, realizava-se plenamente com a nova fase de industrialização levada a cabo pelo regime militar. As desigualdades e os arcaísmos de antes não apenas não eram extirpados, como passavam a ser reproduzidos em escala ampliada no corpo das grandes cidades54. A moderna promessa de consumo e a velha espoliação urbana passam a disputar o mesmo espaço e as mesmas subjetividades, porém, em um jogo de forças bastante desigual, posto que o árbitro, o espaço público, saía em retirada ou se corrompia55.

As dualidades brasileiras se tensionavam em temporalidades cruzadas, desafiadoras de um possível projeto autônomo de nação que, pela primeira vez, no entanto, era amplamente discutido e tematizado na cultura do país. Nas palavras de Roberto Schwartz, apesar da ditadura de direita que se instalara desde 1964, havia relativa hegemonia cultural de esquerda circulando pelas cidades. Podia ser vista, por exemplo, “nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado”56. A denúncia do imperialismo e de seus mecanismos de entrave ao desenvolvimento nacional punha em circulação uma nova linguagem, muitas vezes em jargão de partido. Com isso,

53 Ou do “subdesenvolvimento industrializado”, como apresenta KOVARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

54 Cf. MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996; ARANTES, O.

Urbanismo em fim de linha, e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. São Paulo: Edusp, 1998.

55 Cf. KOVARICK, op. cit.; MARICATO, op. cit.; ARANTES, op. cit.

56 SCHWARTZ, R. “Cultura e política, 1964-68: alguns esquemas”. In: O pai de família e outros estudos. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra/Secretaria de Estado da Cultura, 1992, p. 63.

porém, promovia uma espécie de “Aufklärung popular”, cujo lado positivo era desprovincianizar o pensamento político e evidenciar que dominação externa e reação interna estavam ligadas, não mudando uma sem que mudasse a outra57. Embora em escala contida, a prática do método Paulo Freire e a atuação dos CPCs (Centros Populares de Cultura) era motivo objetivo para acreditar na possibilidade da experiência de um outro tipo de educação, de cultura, de estrutura social. Na base do esquerdismo nacionalista, no entanto, havia um engano “bem fundado nas aparências”: o antiimperialismo difundido principalmente pelo Partido Comunista era pró-burguês, especializado em sanar os entraves que mantinham o capitalismo subdesenvolvido, não em forjar os caminhos da revolução.

Sumariamente era o seguinte. – o aliado principal do imperialismo, e portanto, o inimigo principal da esquerda, seriam os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual deveria erguer-se o povo, composto por todos aqueles interessados no progresso do país. Resultou no plano econômico-politico uma problemática explosiva, mas burguesa, de modernização e democratização; mais precisamente, tratava-se da ampliação do mercado interno através da reforma agrária, nos quadros de uma política externa independente. No plano ideológico resultava uma noção de “povo” apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpezinato, a inteligentzia, os magnatas nacionais e o exército. O símbolo dessa salada está nas grandes festas de então, registradas por Glauber Rocha em Terra em Transe, onde fraternizavam as mulheres do grande capital, o samba, o grande capital ele mesmo, a diplomacia dos países socialistas, os militares progressistas, católicos, padres de esquerda, intelectuais de partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em traje de

rigor, outros em blue jeans58.

No entanto, falar em hegemonia relativa de esquerda supunha forças conservadoras de peso, embora sufocadas. O arcaísmo brasileiro estava longe de conservar-se apenas no meio rural. Havia todo um senso comum católico e moralista espalhado por todas as cidades, do

57 “Foi a época de Brasilino, uma personagem que ao longo de um livrinho inteiro não conseguia mover um dedo sem topar no imperialismo. Se acendia a luz, pela manhã, a força era da Light & Power. Indo ao trabalho, consumia gasolina Esso, num ônibus da General Motors. As salsichas do almoço vinham da Swift & Armour, etc. Os Cadernos do Povo, por sua vez, vendidos por um cruzeiro, divulgavam amplamente as manobras em torno do petróleo, relações entre latifúndio e doença endêmica, questões de reforma agrária, discutiam quem fosse “povo” no Brasil, etc. O país vibrava e as suas opções diante da história mundial eram pão diário para o leitor dos principais jornais”. Idem, p. 64.

interior e das capitais, que ressurge com intensidade tão logo o Golpe Militar lhe abre caminhos. A guerra fria e a ameaça comunista forneciam o subsídio ideológico “cosmopolita” para que os “preteridos da modernização” locais passassem às ruas, em “Marchas da Família, com Deus, Pela Liberdade”, em petições contra o divórcio, a reforma agrária e “a comunização do clero”, ou ficassem em “casa mesmo, rezando o ‘Terço em Família’, espécie de rosário bélico para encorajar os generais”59. Após o período de João Goulart, em que o debate público centrara-se em temas como salário mínimo, voto de analfabetos, imperialismo, condições de trabalho no campo, refletindo “não a experiência média do cidadão, mas a experiência organizada dos sindicatos, operários e rurais, das associações patronais ou estudantis, da pequena burguesia mobilizada etc.”, o país regrediu e passou a viver sob uma “revanche da província”60. Ora, era justamente a essa revanche que se dirigia toda a sátira de Tom Zé no Grande Liquidação – diferentemente da MPB dominante, porém, em uma operação estética que soube ser crítica sem aderir à linguagem e ao projeto ideológico das esquerdas do período.

Do ponto de vista histórico, o resultado dessa revanche é bem conhecido: o golpe fez- se como o modo conservador de conciliar, sob a gerência do Estado, a manutenção da cláusula pétrea do latifúndio, combinando-a com a nova onda modernizante do desenvolvimentismo nacionalista financiado pelo capital estrangeiro. Usufruindo de isenção de tarifas e impostos, aplicando no mercado financeiro, investindo em terras e tendo acesso a uma grande oferta de mão-de-obra barata, grandes holdings e conglomerados empresariais nacionais formaram-se nesse período. O Estado militar empresarial cumpria, assim, um triplo papel: 1) subsidiava os interesses “progressistas” da burguesia nacional através de grandes investimentos feitos na modernização da infra-estrutura do país; 2) pelo mesmo mecanismo, tingia com cores de progresso os interesses ruralistas, pois subsidiava o florescimento do agribusiness ao modernizar o campo com novos maquinários e conservar intactas a estrutura fundiária e as relações de produção; e 3) Valia-se do espírito de patriotismo antes mobilizado pelo imaginário de esquerda (em slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o!”), mas invertia-lhe o sinal para justificar a força, a repressão e assim conter a organização popular.

Após o golpe e a censura, o meio circulante onde a opinião pública pôde continuar viva e tematizar as tensões culturais correspondentes à modernização conservadora do período foi, justamente, a música popular, que ganha voz e visibilidade no clima dos festivais da canção transmitidos pela TV. A modernização do país abrira-o à novidade cultural do rock e a

59 Ibidem, p. 70. 60 Ibidem, p.71.

Jovem Guarda conhecia grande sucesso. No entanto, como o espírito nacionalista dominante na época era esquerdista, os festivais da canção logo passam a ser um canal de triagem político-ideológica, angariando uma forte “patrulha estética” como denunciaria, em 1968, Caetano Veloso, em seu explosivo discurso-happening no TUCA, em São Paulo.61

Antes de o acirramento ideológico alcançar a canção, porém, esta já havia se consolidado como a grande “rede de recados” e troca de experiências na cultura nacional. Com tal poder de comunicação de massas em diferentes gêneros, ritmos, arranjos e instrumentações, a canção popular comercial urbana já se notabilizara como forma capaz de agenciar sentimentos e comportamentos sociais, conectando o pessoal e o coletivo. O surgimento e a assimilação do samba nos anos 1930, da bossa nova, nos anos 1950, e do tropicalismo, nos anos 1960, conheceram sucessivos momentos de crítica, denúncia de comercialismo fácil e de aderência ao apelo midiático das indústrias culturais, seguidos de adoração e incorporação ao heterogêneo conjunto de tesouros nacionais. A grande novidade da Tropicália foi operar de dentro da indústria cultural e simultaneamente no cinema, no teatro, na música e nas artes plásticas uma alegorização crítica do país em um momento em que os esquematismos políticos eram muito acirrados, forçando a inteligência a desmobilizar chavões e a reinventar política e esteticamente a participação social. Nas palavras de Marcos Napolitano e de Mariana Villaça:

O Tropicalismo, logo depois de sua "explosão" inicial, transformou-se num termo corrente da indústria cultural e da mídia. Em que pesem as polêmicas geradas inicialmente (e não foram poucas), o Tropicalismo acabou consagrado como ponto de clivagem ou ruptura, em diversos níveis: comportamental, político-ideológico, estético. Ora apresentado como a face brasileira da contracultura, ora apresentado como o ponto de convergência das vanguardas artísticas mais radicais (como a Antropofagia Modernista dos anos 20 e a Poesia Concreta dos anos 50, passando pelos procedimentos musicais da bossa nova), o Tropicalismo, seus heróis e "eventos fundadores" passaram a ser amados ou odiados com a mesma intensidade. Atualmente, mais amados do

que odiados, diga-se62.

61 Para ouvir e ler o discurso-happening, cf. <http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/proibido.php>. Acesso em 13/08/2007.

62 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA Mariana. “Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate”. In: Revista

Em outro ensaio, Marcos Napolitano mostra que, se nas outras artes o pós- Tropicalismo implicou uma retração de público (no teatro, uma implosão provocada pela própria repressão; no cinema, um fechamento e, nas artes plásticas, um encastelamento), na música ocorre uma explosão, uma abertura inédita frente aos demais ciclos de modernização já processados pela canção popular63. Assim, ainda que o sentido da abertura tenha sido avaliado por alguns com reticências e, por outros, com entusiasmo, não houve dúvida de que se tratou de uma tremenda novidade e de uma alavanca cosmopolita para a arte e o pensamento nacionais.

Pode-se dizer que o Tropicalismo realizou no Brasil a autonomia da canção, estabelecendo-a como um objeto enfim reconhecível como verdadeiramente artístico. (...) Reinterpretar Lupicínio Rodrigues, Ary Barroso, Orlando Silva, Lucho Gatica, Beatles, Roberto Carlos, Paul Anka; tanto a retomada da linha evolutiva aberta pela bossa nova como a inclusão das informações da modernidade punham em crise o “nível médio” em que se encastelara a produção musical; além disso, este projeto tomou a forma de uma estratégia cultural mais ampla, definindo uma postura política singular, intrínseca à estrutura da canção. (...) utilizar-se de colagens, livres associações, procedimentos pop eletrônicos, cinematográficos e de encenação; misturá-los, fazendo-os perder a identidade, tudo fazia parte de uma experiência radical da geração dos 60, em grande parte do mundo ocidental. O objetivo era fazer a crítica dos gêneros, estilos e, mais radicalmente, do próprio veículo, e da

pequena burguesia que vivia o mito da arte64.

Os efeitos de choque e de modernidade foram grandes. O cafonismo e o humor são transformados em práticas construtivas capazes de pôr as relíquias de brasilidade em debate, temperando com um claro caráter lúdico as canções tropicalistas. Além de trazer para a canção procedimentos que a atualidade da arte pop, em geral, experimentava em outras linguagens estéticas, o Tropicalismo realizava, entre nós, uma crítica radical da cultura política da época, que sufocava os festivais sob o maniqueísmo que dividia arbitrariamente público jovem e artistas entre “engajados” e “alienados”.

63 Cf. NAPOLITANO, M. “A Arte engajada e seus públicos (1955-1968)”. Estudos Históricos, v. 28, p. 103- 124. Rio de Janeiro, FGV, 2001.

Nesse sentido, artista e obra eram simultaneamente dessacralizados e, como num ready made, passavam a ter seu lugar e seu papel constantemente questionados e mobilizados pelo novo tipo de pacto ou acordo que viriam a estabelecer com o público. Talvez o maior achado tropicalista tenha sido expor as contradições culturais como cifras das indeterminações históricas do presente do país, deixando patente o elemento de ilusão e de parcialidade das opções oferecidas pela esquerda e pela direita.

A justaposição do arcaico e do moderno não se dá apenas como tratamento moderno dos fatos arcaicos, pois ela já se encontra no material mesmo. Isso se vê na crítica tropicalista, particularmente em seu procedimento estético específico, o cafonismo: ao destacar e exacerbar o mau gosto como dado primário da conduta subdesenvolvida, revela, através do corte e da amplificação dos elementos discordantes, as modalidades que caracterizam a

desinformação da inteligentzia brasileira65.

No entanto, como bem mostram Marcos Napolitano e Mariana Villaça, o tropicalismo não consistiu em um movimento artístico-ideológico coeso, muito pelo contrário: “o que se chama de Tropicalismo pode ocultar um conjunto de opções nem sempre convergentes, sinônimo de um conjunto de atitudes e estéticas que nem sempre partiram das mesmas matrizes ou visaram aos mesmos objetivos”66. Assim, diferentemente de Caetano e Gil, que efetivamente encarnaram e deram visibilidade ao projeto estético tropicalista, Tom Zé participa da “explosão colorida” apenas em seu primeiro momento, cedo tomando outro rumo e forjando outros procedimentos de criação. Antes do cafonismo, foram o sarcasmo, a ironia e as pilhérias em geral que garantiram seus principais achados críticos e a melhor recepção por parte do público – de 1960 e de hoje. Se o próprio Tom Zé se diz tropicalista, em “lenta luta”, é por perceber em suas descanções um espírito experimental, polêmico, cômico e ambivalente que efetivamente animou o projeto tropicalista entre 1967 e 1968, mas que logo deixa de predominar nos trabalhos de Caetano e de Gil uma vez que, como Luiz Tatit já mostrou, dirigiam-se a uma intervenção massiva na canção popular comercial no Brasil, projeto para o qual o experimentalismo era um freio.

65 Idem, p. 61