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Revolução urbana e mal-estar na cultura

Para entender a lógica desse irônico processo de modernização em uma história de longa duração, Henri Lefebvre conceituou-o sob o nome de uma virtual e inexorável “revolução urbana”, pela qual o urbano difunde-se de tal maneira por todo o espaço habitado que subjuga, ressignifica e reterritorializa mesmo o território rural mais longínquo, impondo a tudo e a todos sua lógica mercantil e simbólica. A explicação de Lefebvre lança mão de um eixo temporal, que tem início na cidade política ateniense, para tentar dar conta do processo que culmina, no contemporâneo, no estabelecimento do que ele chama de “sociedade urbana”. Nesse processo, o princípio público da cidade política vai, aos poucos, transformando-se no seu contrário, assimilado à prevalência das trocas econômicas privadas que caracterizam a cidade mercantil.

Se de início, na Pólis grega, o mercado estava absolutamente fora da dimensão política da cidade, pois pertencia ao oikós doméstico, privado, no final da Idade Média “a mercadoria, o mercado e os mercadores penetraram triunfalmente na cidade”16. O que antes era função doméstica, privada, socializa-se e toma o espaço público como função urbana. Essa generalização do urbano como espaço de encontros e de troca de mercadorias cria, então, a acumulação primitiva de capital que permite industrialização e a nova transformação da cidade mercantil em cidade industrial. O papel do estado e do poder público na modernização é fundamental, a ponto de Lefebvre falar nas modernas sociedades como “sociedades burocráticas de consumo dirigido”, em que o papel do sistema estatal é canalizar investimentos, regular mercados e, por conseguinte, criar potencialidades de consumo para certos setores sociais e para certas atividades econômicas. Sempre sob intervenções estatais,

15 DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 29. “O ‘big bang da pobreza’ tem suas raízes quando, entre 1974 e 1975, o FMI e o Banco Mundial reorientam as políticas econômicas do terceiro mundo, abalado pelos preços do petróleo. A orientação aos países devedores para abandonar as estratégias de desenvolvimento foram claramente explicitadas no Plano Becker, em 1985. Davis classifica o impacto dessa direção na América Latina como ‘maior e mais longo do que a Grande Depressão’ e, considerando-se a realidade das décadas que ficaram conhecidas como décadas perdidas, ele sem dúvida não está exagerando. O Brasil, por exemplo, cresceu 7% ao ano de 1940 a 1970. Na década de 1980, cresceu 1,3%, e na década de 1990, 2,1%, segundo o IBGE. Ou seja, o crescimento econômico do país, nas duas últimas décadas do século XX, não conseguiu incorporar nem mesmo os ingressantes da População Economicamente Ativa (PEA) no mercado de trabalho, o que acarretou conseqüências dramáticas para a precarização do trabalho e, conseqüentemente, também para a crise urbana”. MARICATO, E., “Posfácio”. In: DAVIS, Planeta..., op. cit., p. 212-213.

portanto, a fisionomia fabril e a introdução do automóvel redesenham o espaço urbano das médias e grandes cidades até final do século XX, quando, então, mais uma virada de modernização redimensiona as hierarquias da urbanização: tem início um processo econômico-territorial caracterizado pela hegemonia dos setores de serviços avançados que, por sua vez, implicam a desindustrialização das metrópoles, a reindustrialização das cidades médias e um redimensionamento tecnológico dos processos produtivos no campo. O cume contemporâneo desse complexo, contraditório e desigual processo de urbanização total da sociedade (sobretudo nos países periféricos no sistema mundial) é a explosão populacional e a implosão política dos municípios e das cidades em imensas regiões metropolitanas. Estas crescem, assim, como conurbações de várias cidades vizinhas e passam a configurar megacidades (com mais de oito milhões de habitantes) e mesmo hipercidades (com mais de 20 milhões de habitantes). As soluções técnicas e os maiores investimentos concentram-se em centralidades urbanas de ponta, ao passo que os problemas ambientais e sociais urbanos assumem escalas metropolitanas cada vez mais amplas e mais complexas. No entanto, a convivência com tais forças contraditórias da modernização e da urbanização fez com que, para todos nós, modernismo e colapso se tornassem sinônimos de “realismo”17. Daí muito do cinismo contemporâneo.

As conseqüências humanas da intensa modernização produzidas pelos séculos XIX e XX são bem conhecidas por todos. Crise, ambivalência (sobretudo nos rumos da coletividade), desamparo e busca por alguma ordem (sobretudo por parte do indivíduo) são faces distintas da dissolução da experiência de um tempo e de um espaço marcadamente coletivo, espiritualizado, ritualizado e tradicional. Tomada em uma escala de longa duração, a perda gradual da “coletividade-memória”, que se dá com o declínio do mundo do campesinato, coincide com a emergência da memória individual e com o mundo urbano produzido com a industrialização. A percepção desse processo, porém, é diluída com a

17 BERMAN, Tudo que é sólido..., op. cit., p. 14. A considerar a atualidade das seguintes palavras de Marx, pode-se dizer que isso é verdade há pelo menos dois séculos: “de um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e científicas de que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado de seu contrário. O maquinário, dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornam-se fontes de penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda de caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da força material.” MARX, K. Manifesto do partido comunista Apud BERMAN, Tudo que é sólido..., op. cit., p. 19. Para uma versão contemporânea da história econômico-política dessa contradição, cf. KURTZ, Robert. O colapso na modernização. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

interiorização dos valores da cultura urbana de massas, que substitui as antigas formas de experiência em vivências individualizantes de acentuado apelo ao corpo e aos sentidos. Segundo Zygmunt Bauman, são essas, por isso mesmo, “as duas faces da mesma cisão” do que chamamos modernidade, o começo de um processo de crise que “explode hoje”: os efeitos da “experiência total” da modernidade só puderam ser sentidos quando ela já estava finalmente realizada no final do século XIX, revelando uma cultura que já havia algum tempo cedera lugar ao indivíduo como valor central e que, por isso mesmo, levou esse mesmo indivíduo a um sentimento de desamparo em um mundo onde não havia mais lugar para as certezas que um mundo tradicional e coletivo parecia proporcionar. Por isso, afirma Bauman, “a marca da modernidade é a ambivalência, ao mesmo tempo em que sua grande tarefa foi desde sempre a busca da ordem”18. No plano individual, físico e simbólico, abre-se espaço (cada vez maior e mais profundo) à angústia frente a um vazio “existencial”. Num mundo em que não se perguntava sobre o sentido da vida, porque este já estava dado numa ordem transcendente (nada viria a ser, pois tudo “apenas era”), a finitude do corpo não trazia qualquer angústia nem exigia maiores significações. Num mundo sem sentido dado a priori, todo sentido de permanência deve ser construído e elaborado culturalmente, mas concretizado e vivido na imanência de cada vida e de cada corpo individual que, assim, passa a ser, como nunca antes, valorizado e investido simbolicamente.

A experiência do desamparo pode ser pensada, historicamente, a partir da própria passagem de um mundo ordenado para um mundo ambivalente, no qual não havia mais lugares garantidos, levando-nos a crer que a relação com a finitude, que é estrutural ao corpo, é algo mediado pela cultura, pelas ferramentas que esta oferece para que nossos corpos possam ser vividos e

pensados e, a partir daí, possamos nos constituir como sujeitos19.

Como que às costas da consciência dos sujeitos, o vazio trazido com a secularidade moderna transforma-se em angústia e em constante desejo de prazer e estímulo sensorial para o corpo. No cotidiano moderno, portanto, esse vazio pode ser sentido, isto é, sofrido como uma vivência (Erlebnis), mas deixa de ser elaborado e refletido em ritos coletivos duradouros, como uma experiência (Erfarung). Assim, o “mal-estar” contemporâneo está “ancorado paradoxalmente em sua própria negação, em uma recusa em deixar-se apreender como ‘mal-

18 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 25. 19 Idem, ibidem.

estar’ na cultura”20. Os sintomas desse paradoxo, no entanto, estão por toda parte. Pode-se notá-los nos temas freqüentes na mídia, na música popular, no cinema e na literatura a partir da década de 1990: sensualidade, angústia, violência, desigualdade, terror, criminalidade, medo21. No Brasil, toda a cultura urbana tem-se deparado com essas questões. Talvez porque a “modernidade líquida” do mundo contemporâneo veio de encontro à modernidade difícil da sociedade brasileira, encontro cuja reflexão aponta para as raízes, as permanências e as atualizações da “tradição de violência” e de desigualdade não apenas brasileiras, mas, hoje, mundiais.

Nessa cultura cambiante, no entanto, a escola ainda representa um espaço institucional de preservação de conhecimentos, de linguagens, de costumes e de disciplinamento do corpo. Como afirma Hannah Arendt, a educação escolar cumpre o indispensável papel conservador de garantir a introdução dos novos nos campos de tradições culturais que ainda nos definem como humanos, como povo, como nação22. Sem conservação não pode haver critérios e valores para a manutenção de um mundo comum, coletivo, civil, civilizado, público. Esse é, com efeito, um paradoxo da escola e da educação modernas: destinam-se a preservar os meios necessários à sustentação de um mundo coletivo e político comum, por definição democrático e igualitário, mas, ao fazê-lo, reproduzem as desigualdades e assimetrias da sociedade, mantendo o status quo23. E, no entanto, em um país como o Brasil, apenas a educação pública parece ainda permitir que os fundamentais processos de socialização, de reciprocidade e

20 DRAWIN, Carlos Roberto. “As seduções de Odisseu: paradigmas da subjetividade no pensamento moderno”. In: KISHIDA, C. A. et al. (Orgs.). Cultura da ilusão. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998 Apud FONTENELLE, op. cit., p. 25.

21 Exemplos variados e nada exaustivos da produção recente: quase todos os grupos de rap e as ações do movimento hip hop; a literatura de Fernando Bonassi, Ferréz, Paulo Lins, cujo romance explosivo “Cidade de

Deus” é adaptado para cinema por Fernando Meirelles e, assim, inaugura toda uma série de produções que tem na violência, na pobreza e nas diferentes formas de desigualdade seu tema principal, como a série televisiva “Cidade dos homens”, derivado do longa-metragem “Cidade de Deus”; diversos filmes de Tata Amaral, como “Céu de estrelas” e “Antônia”; o longa-metragem “Carandiru”, de Hector Babenco, uma adaptação do livro documental de Dráuzio Varella sobre a o massacre dos 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo; e uma longa lista de documentários que despontam na década de 1990, como “Notícias de uma guerra particular”, de João Moreira Salles e “Prisioneiro da grade de ferro”, de Paulo Sacramento, o qual inova com a técnica do cinema participativo também entre a população carcerária; Espetáculos de dança do Grupo Corpo como “O

Corpo” (2000), música de Arnaldo Antunes e “Breu” (2007), com música de Lenine, em que a dança alegoriza a morte, a dor, a violência, o cansaço; a produção de arte através de performances, como o trabalho “Teresa”, de Tunga (Centro Cultural do Banco do Brasil, 2001), com referencia direta a gírias, cores, formas e gestos de homens presos; etc.

22 Cf. ARENDT, Hannah. “A crise na educação”. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000. 23 Trata-se de uma interlocução indireta com a clássica obra “A reprodução”, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em que os autores enfatizavam a escola como uma instituição conservadora e um lugar de reprodução sociológica de discursos, de relações de dominação e de produção da sociedade, minimizando, portanto, os espaços de liberdade e as especificidades próprias da instituição escolar. Cf. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

elaboração de conflitos se realizem de forma pública, ou seja, por meio da razão, da experiência e da prática do diálogo. Antes da universalização democrática do acesso ao ensino (que correspondeu ao intenso processo de massificação desde os anos 1960)24, apenas a música e os espaços de sociabilidade das festas populares puderam desempenhar um papel dialógico no Brasil25, um papel de gaia ciência fundamentalmente oral, embora ressoando “rede de recados” entre a literatura e a música26.

Conservação e conversação são, portanto, categorias pertinentes à escolarização no Brasil, embora a primeira tenha historicamente predominado e negado espaço à segunda: uma como projeto civilizador incorporado de ultramar; outra como tradição cultural distintiva e singular da formação social brasileira. A crise do projeto moderno e a necessidade de se pensar uma educação “pós-Bildung” talvez permita pensar, finalmente, em uma convergência entre conservação e conversação de cultura de forma que ambas possam fortalecer a cultura do Brasil e a cultura no Brasil.