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Filosofia da Química: um novo campo disciplinar

A Filosofia da Química é um campo disciplinar emergente na Filosofia das Ciências. Efetivamente, a Química foi varrida do pa- norama das Ciências pelo próprio Kant,10 que lhe negava o estatuto

de conhecimento a priori, necessário, segundo ele, para caracterizar 8. A mereologia (ramo da lógica que se ocupa das relações parte/todo) não se adapta à Química porque as suas partes (átomos) perdem as suas características ao combinarem-se. A mereologia química define-se através de entidades que exibem uma propriedade designada por fechatura e constituem um grupo (mo- léculas, cristais, estruturas dissipativas) objeto matemático que exibe simetria espacial e/ou temporal.

9. Superveniência significa ser dependente de uma série de fatos ou propriedades de tal forma que uma mudança só pode ocorrer quando ocorrer uma mudança em tais fatos ou propriedades.

10. Kant, na sua obra póstuma, veio parcialmente a retratar-se dessa posição, prin- cipalmente por causa do conhecimento que tinha da obra de Lavoisier, seu con- temporâneo.

uma Ciência e acabou por ser responsável pela imagem de “colecio- nadores de selos e aquecedores de panelas” que os químicos, du- rante séculos, tiveram nos círculos filosóficos. Talvez porque tenha recu perado algum prestígio como conhecimento a priori a partir do reconhecimento da necessidade de fechatura das suas propriedades que permite caracterizar as entidades químicas,11 mas principal-

mente por se demonstrar a impossibilidade da sua redução à Física, não obstante a óbvia relação de superveniência, o certo é que, em meados da década de 1990, a Filosofia da Química começou a se afirmar, contando atualmente com dois periódicos, a revista Hyle, com edições desde 1995, e a revista Foundations of Chemistry, com edições desde 1999, o mesmo ano da criação da International So-

ciety for the Philosophy of Chemistry (ISPC), que tem promovido encontros anuais. Nestes largos anos de existência, a Filosofia da Química já conta com uma vasta literatura, com mais de sessenta monografias e mais de setecentos artigos (Schummer, 2006) e uma vasta comunidade internacional de químicos e filósofos. Entre- tanto, esse debate tem tido um impacto modesto em nível mundial, pois o exemplo da influente American Chemical Society ao pro- mover nos seus encontros sessões de Filosofia da Química não tem repercutido noutras Sociedades de Química, concretamente nas de Portugal e do Brasil, e, assim, tem sido, nestes países, quase nula a integração das produções da investigação em Filosofia da Química na Educação Química. No Brasil, que é a segunda maior comuni- dade de químicos do mundo, esse debate tem ainda pouca expressi- vidade.

Um primeiro problema de investigação desse campo emergente foi identificar as verdadeiras razões para o negligenciamento da Química no contexto da Filosofia e da Filosofia da Ciência, para 11. Tanto os átomos, como as moléculas, como os cristais e ainda as estruturas dis-

sipativas em que se distinguem os ciclos bioquímicos protagonizados pela auto- catálise e que estão na base da auto-organização central ao atual paradigma científico (Earley, 1999), como ainda a mais recente classificação das fechaturas em três tipos (De Broglie, Poincaré e Cauvin) dos grupos que levam às enti- dades com poder causal (portanto ontológicas) da Química.

além da já referida opinião de Kant. A Química viveu e vive ainda uma situação paradoxal: considerada a ciência mais central e an- tiga, está em todos os lugares e em lugar algum (Bensaude-Vincent, 1992), é uma ciência sem território, a serviço de outras ciências como a Biologia e a Medicina. Ao mesmo tempo que é uma ciência central no que se refere às práticas, é marginal na discussão dos funda- mentos conceituais e filosóficos (Van Brakel, 2006). Para Ben- saude-Vincent (2009), a Química distingue-se das outras ciências por criar o seu objeto, por inspirar um pensamento próprio aos seus praticantes; caracteriza-se por supremacias da relação sobre a subs-

tância e da representação sobre a realidade, por uma epistemologia do

aprender fazendo e uma práxis de laboratório.12 Entretanto, é

também o reino dos realistas (Bachelard, 2009), é a ciência mais produtiva e é a que menos discute seus princípios (Schummer, 1997).

Por que a Filosofia e a Filosofia da Ciência não tiveram interes- se na Química como objeto de reflexão? E por que a Química não desenvolveu instrumentos e práticas reflexivas? E quais as implica- ções de tudo isso para o aparelho pedagógico da Química? Esse é um problema transversal ao currículo da Filosofia, da Filosofia da Ciência e da Química e reflete a imagem da ciência no século XX, um modelo ainda muito influente (se não hegemônico) no currí- culo e didática das ciências. Esse modelo ignorou a maior parte da ciên cia (não só a Química como também parte da Física) ao cen- trar-se na análise lógica, na predominância do conhecimento a

priori; na pouca relevância e consequentemente pouca investigação da prática científica; ao focar-se na explicação e não na intervenção;13

captando mais a ciência ideal e não tanto a ciência real. A Filosofia da Ciência, centrada nas análises lógicas e na linguagem da ciência 12. Embora haja laborató3rios em quase todas as ciências, segundo Bensaude-Vin-

cent, o Laboratório é uma invenção química.

13. Corresponde ao ainda dominante Modo 1 de produção científica, que é baseado na explicação, enquanto o menos anacrônico Modo 2, baseado na resolução de problemas, ainda está muito pouco desenvolvido, especialmente nos meios aca- dêmicos.

acabada, negligenciou as práticas científicas, as imagens, os instru- mentos, o laboratório, os valores e o contexto da descoberta, aspec- tos importantes do campo disciplinar da Química. No contexto da Química negligenciou muitos aspectos importantes da sua práxis, como as classificações, a diagramaticidade e a processualidade do seu pensamento. Também negligenciou boa parte dos valores regula- dores da prática química como tecnociência, de forma que é legí- timo questionar como seria a Filosofia da Ciência se tomasse a Química como modelo de ciência.

Qual a razão para essa invisibilidade filosófica da Química? A sua proximidade com a tecnologia? As suas raízes históricas no pragmatismo e o seu desinteresse pelas questões metafísicas? A crença, predominante durante o século XX, no reducionismo da Química à Física via fisicalismo?14 A ausência de uma teoria cientí-

fica de relevo como a teoria da gravitação da Física ou da evolução na Biologia? A ausência de uma pergunta filosófica fundadora? Para Schummer (2006), uma possível explicação pode estar na his- tória disciplinar da Filosofia e na sua relação com a Matemática e o legado de Kant, que se inspirou na mecânica como modelo de ciên cia e que continua a ser referência tanto da Filosofia enquanto disciplina como na Filosofia da Ciência. Com a profissionalização da Filosofia da Ciência, que teve muita influência da Física teórica (particularmente das questões da mecânica quântica e da relativi- dade), passou-se a considerar a Filosofia da Física como modelo da própria Filosofia da Ciência, relegando as outras ciências para a ca- tegoria de Ciências Especiais. Nesse sentido, as questões fundacio- nais e demarcadoras sobre o que é Ciência foram postas no contexto da Física e da epistemologia tradicional, tiveram o caráter da Física como modelo de Ciência e têm sido usadas como inspiradoras de modelos didáticos. Ora, os filósofos da Química têm mostrado que esse modelo falha rotundamente ao tentar integrar a Química. Por outro lado, outras correntes filosóficas que poderiam ser mais ade- 14. Abordagem segundo a qual as últimas explicações seriam sempre dadas pelo

quadas a essa integração, como a concepção semântica e a concepção

estrutural, estão ausentes ainda do debate epistemológico da didá- tica (Ariza & Adúriz-Bravo, 2011).

A procura da desejável visibilidade da Química no contexto da Filosofia da Ciência tem orientado um programa mínimo e inicial da pesquisa em Filosofia da Química:

• A materialidade dos objetos da Química (Schummer, 2006): como a Filosofia da Ciência, influenciada pela Física que comandava a agenda científica, esteve durante todo o século XX voltada para o entendimento da universalidade das leis e para uma vertente analítica e teórica, e muito pouco interes- sada nas questões ontológicas e das práticas científicas, en- tende-se que esse seja um tema de relevância para a pesquisa. • A centralidade e o significado da conceitualização dessa ma- terialidade fazem com que a Química tenha uma linguagem

própria e isso tem gerado controvérsia quanto ao domínio

conceitual de muitos filósofos e historiadores (Schummer, 2006). São poucos a utilizarem a Química como exemplo nas suas teses e inferências sobre a Ciência ou sobre a Filosofia. • A natureza e o lugar da teoria e as questões fundacionais em

Química (Schummer, 2006).

• A relação da Química com a Física e a Biologia. Procura en- tender-se as relações entre essas ciências e a sua autonomia explicativa. No século XX, a Química foi refém da Física através da mecânica quântica (por o seu objeto se referir a en- tidades submicroscópicas) e da mecânica estatística (por tratar de muitas dessas entidades). A Física detinha para si o domínio e o projeto de explicação e redução do universo da Química (Costa Pereira, 1995). Agora a Biologia, que co- manda nitidamente a agenda científica do século XXI, tem transformado a Química – a ciência central mas sem terri- tório – numa ciência ao seu serviço.