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O conceito de substância e algumas questões históricas, filosóficas e pedagógicas

Como podemos notar na reconstrução, várias noções foram atribuídas ao termo substância ao longo da história. Um primeiro período engloba as investidas dos filósofos gregos para entender o mundo por meio dos elementos, concepção que sofreu algumas modificações e permeou as noções alquímicas até o século XVII. Dessa forma, as explicações da matéria e dos fenômenos deri- vavam em grande parte da metafísica aristotélica (elementos pri- mordiais) ou das escolas atomísticas, sem que existisse uma concepção padrão, adotada de forma generalizada pelos filósofos/ cientistas.

Essa característica também é notada na Física, na Geologia e na Biologia por Kuhn (2005, p.32) para um período anterior ao ama- durecimento dessas ciências. Assim, por exemplo, da Antiguidade ao final do século XVII, não havia uma única concepção aceita sobre a natureza da luz. E, sim, “um bom número de escolas e su- bescolas em competição, a maioria das quais esposava uma ou outra variante das teorias de Epicuro, Aristóteles e Platão”, sendo o pri- meiro paradigma, aceito consensualmente, construído por Newton em sua obra Óptica.

O trabalho histórico com a pesquisa elétrica também revela como a Ciência se desenvolve para depois construir um paradigma amplamente aceito. Nesse sentido, havia várias concepções sobre a natureza da eletricidade (resultantes de alguma versão da filosofia

mecânico-corpuscular que orientava as pesquisas do século XVIII). Kuhn (2005, p.34-5) completa:

Somente através dos trabalhos de Franklin e de seus sucessores imediatos surgiu uma teoria capaz de dar conta, com quase igual facilidade, de aproximadamente todos esses efeitos [elétricos]. Em vista disso essa teoria podia e de fato realmente proporcionou um paradigma comum para a pesquisa de uma geração subsequente de “eletricistas”.

Nessa perspectiva, destacamos os trabalhos de Boyle no século XVII como um dos responsáveis pela transição paradigmática8

entre a alquimia e a ciência química. O trabalho de Boyle, ao adotar a análise química para a identificação dos corpos químicos, se dife- rencia das concepções aristotélicas. Assim, os elementos seriam os constituintes produzidos na análise química, ou seja, “os verda- deiros limites extremos da análise química” (Mason, 1964 apud Oki, 2002, p.23).

A concepção da matéria ligada à ideia de corpúsculos e movi- mento também é importante para entendermos a mudança do pa- radigma alquímico para um paradigma mecanicista na Química. Nesse sentido, o trabalho de Boyle reinterpretou as reações ainda ligadas à ideia de transmutação, entendendo que “tais reações apre- sentavam o processo de reorganização corpuscular que deve estar na base de toda transformação química” (Kuhn, 2005, p.65).

A transição paradigmática entre a teoria flogística e as cons- truções teóricas e os dados experimentais obtidos por Lavoisier e seus contemporâneos também revela um momento importante para entendermos os cenários epistemológicos ligados às noções de

8. Trabalharemos com a concepção de paradigma enunciada no Prefácio da nona edição da obra de Kuhn (2005, p.13): “Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.

substância. Assim, a crise na teoria do flogisto, gerada com a cons- trução de várias versões teóricas para tentar explicar o aumento da massa de algumas substâncias após a liberação do flogisto em uma reação de combustão, causou insatisfações, principalmente em meio a novos trabalhos, reinterpretações de informações e com um novo sistema teórico-experimental que conseguiu superar essa anomalia9 da teoria flogística.

Esse processo histórico é entendido por Kuhn (2005, p.125) como uma Revolução Científica pelo fato de ser um dos “episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incom- patível com o anterior”. Nesse processo, a teoria dos quatro ele- mentos, por tabela, acaba sendo desbancada e destituída das explicações dos fenômenos naturais e o empirismo lavoiseriano ganha força e reconhecimento na classificação entre substâncias simples (indecomponíveis experimentalmente) e substâncias com- postas (“elementos” ou substâncias elementares combinadas).

Além das contribuições teórico-metodológicas de Boyle e La- voisier para uma nova compreensão das substâncias químicas, apontamos a relevância dos trabalhos atomísticos de Dalton e seus sucessores no campo de estudos microscópicos da matéria. Assim, no que concerne aos modelos atômicos de Dalton, Thomson, Ru- therford e Bohr, cada construção posterior buscou suprir uma ano- malia que o paradigma atômico aceito possuía, explicando uma gama maior de fenômenos. Quanto a essa questão, Kuhn (2005, p.91) esclarece:

No desenvolvimento de qualquer ciência, admite-se habitualmente que o primeiro paradigma explica com bastante sucesso a maior parte das observações e experiências facilmente acessíveis aos pra-

9. As várias versões para a teoria do flogisto são resultados das modificações ad

hoc dessa teoria pelos seus defensores, buscando eliminar as anomalias. Como relata Kuhn (2005), a elaboração de várias versões de uma mesma teoria revela a crise desse paradigma.

ticantes daquela ciência. Em consequência, um desenvolvimento posterior comumente requer a construção de um equipamento ela- borado, o desenvolvimento de um vocabulário e técnicas esotéricas, além de um refinamento de conceitos que se assemelham cada vez menos com os protótipos habituais do senso comum.

Esses modelos atômicos sucessivos mostram que em alguns casos a Ciência evolui sem causar grandes conflitos entre teorias, podendo interpretar fenômenos que eram desconhecidos (como os fenômenos subatômicos com a teoria quântica). “Ainda, a nova teoria poderia ser simplesmente de um nível mais elevado do que as anteriormente conhecidas, capaz de integrar todo um grupo de teorias de nível inferior, sem modificar substancialmente nenhuma delas” (Kuhn, 2005, p.129).

A construção desses modelos teóricos sucessivos, baseados em partículas de caráter microscópico (prótons, elétrons, nêutrons), revela uma nova ruptura epistemológica com a química lavoise- riana – que é identificada por uma concepção de matéria estável e de propriedades definidas.

Essa categoria ultrarracionalista é orientada pelo que Bachelard entende por fenomenotécnica, ou seja, técnicas e equipamentos (como espectroscópico ou o equipamento de cintilações das par- tículas alfa) são as ferramentas responsáveis pela construção do mundo real, sendo os átomos (constituídos por elétrons, prótons, nêutrons) o viés para entender os elementos químicos. Assim, en- quanto a substância na Química clássica é caracterizada por ope- rações químicas em nível macroscópico (realismo do olhar), a substância da Química contemporânea está fundamentada, também, no aspecto qualitativo/quantitativo, porém são os equi- pamentos que determinam a concepção do número atômico, do elétron e do átomo (realismo da “técnica”) (Silveira, 2003).

Podemos notar que a evolução do conceito de substância cami- nhou lado a lado com o estabelecimento e desenvolvimento da Química, sofrendo (re)construções teóricas de níveis de abstração

cada vez maiores, chegando até a elaboração de modelos micros- cópicos para entender a matéria e os fenômenos que nos cercam.

Dessa forma, assim como ocorreu na História da Ciência/Quí- mica, acreditamos que a educação científica deve ser trabalhada se- gundo um nível gradual de complexidade. Essa possibilidade é apresentada por Nelson (2002) ao discutir a viabilidade do Ensino de Química que considere o percurso histórico ao abordar, progressiva- mente, o estabelecimento dos elementos químicos no século XVIII (nível 1 – macroscópico), a teoria atômica no século XIX (nível 2 – atômico e molecular) e a teoria eletrônica no século XX (nível 3 – ele- trônico e nuclear).

Assim, além de seguir o processo natural de construção do co- nhecimento químico, a abordagem segundo um nível gradual de complexidade vai ao encontro das orientações apresentadas nos Pa- râmetros Curriculares Nacionais (PCN+) para a Educação Quí- mica no ensino médio. Esse documento oficial recomenda que o trabalho pedagógico inicial com o aluno seja balizado por “fatos concretos, observáveis e mensuráveis acerca das transformações químicas, considerando que sua visão do mundo físico é preponde- rantemente macroscópica. Nessa fase inicial, a aprendizagem é fa- cilitada quando se trabalha com exemplos reais e perceptíveis” (Brasil, 2002, p.94).

Nesse sentido, acreditamos que o trabalho escolar com as tran- sições paradigmáticas do conceito de substância (teoria dos quatro elementos; o emprego da balança com Lavoisier, delineando uma perspectiva empírica/quantitativa do teste com as substâncias; a construção de modelos microscópicos para explicar a matéria), além de seguir um nível gradual de abstração, favorece a compreensão discente sobre a realidade da Ciência, ao ajudar o aluno a perceber aspectos como a linearidade e a não linearidade na construção da Química, o intercâmbio de ideias entre cientistas no desenvolvi- mento de uma área, a existência de diferentes metodologias cientí- ficas, as inter ferências externas no rumo das pesquisas, etc. Assim, essa abordagem favorece uma compreensão mais rica, completa e

complexa sobre o conceito de substância, apresentando a Química como um corpo de conhecimento dinâmico ao longo dos anos.

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