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Filosofia e Ciência: O Sistema Binário do Sexo

1 SISTEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA

2.3 Filosofia e Ciência: O Sistema Binário do Sexo

Partindo-se dos pressupostos teóricos apresentados no início deste capítulo em relação ao discurso, traz-se um pouco da produção discursiva, isto é, os saberes filosóficos e científicos (ou pretensamente científicos) que, aliados a outros discursos institucionais, como os da Igreja e os da política, originaram um certo saber universal sobre o que é ser mulher e como ser mulher na sociedade burguesa do século XIX.189

Além do lugar simbólico dito às mulheres, esses discursos, ou certas idéias que deles se originaram, deixaram traços documentais, traduzindo-se em disposições legais. Como sublinha Christiane Klapisch-Zuber, “Onde as representações e as práticas sociais se cruzam, o direito traduz, pelo conjunto das suas regras e das suas proibições, pela proteção que concebe às mulheres ou os limites que impõe à sua acção, a cobertura de ideais e representações que as encerra”.190Sob essa perspectiva,

torna-se relevante no interior deste trabalho um enfoque da produção de saberes sobre a mulher. Para não tornar a perspectiva ilimitada, centra-se o foco no discurso acerca das diferenças entre os sexos a partir dos textos de alguns dos mais destacados filósofos do saber ocidental.

189O século XIX representa um marco temporal significativo para análise da categoria de gênero no Direito Penal contemporâneo, uma vez que, por um lado, configura o campo cultural que melhor exprime a modernidade, sendo um momento de particular significado na fixação das identidades (masculino e feminino) e, por outro, representa no interior do Direito um momento de crescimento de um maior refinamento e concretude de categorias relevantes e sujeitos jurídicos. A incapacidade legal da mulher é inscrita no Direito com detalhes mais sutis e de forma mais polarizada. Ou então, no Direito do século XIX, o gênero foi crescente e rigorosamente fixado segundo os atributos

naturais correspondentes ao homem e à mulher. Também o Direito, assim como a disciplina, estimula as mulheres para que assumam essas identidades ou subjetividades. Não se trata de um Direito que tem gênero ou que é sexista, mas sim de um Direito que cria gênero. Esse ponto será desenvolvido em outro espaço deste estudo. 190 DUBY, Georges; PERROT, Michelle. As mulheres e a história, p. 173.

A reflexão filosófica sobre o sistema binário da sexualidade, da dualidade sexual, da igualdade ou complementaridade dos sexos, é a representação de um ideal de feminilidade que atravessa os gêneros. Os discursos nomeiam e controlam a mulher uma vez que lhe conferem lugares, deveres, posições e traços identificatórios.

Consoante Carol Smart191, é possível argumentar que o discurso científico, médico e mais tarde psicanalítico, opera para criar as diferenças de gênero, as quais serão tomadas como diferenças naturais, “porém, o que é mais importante, estes discursos têm interpretado como natural a idéia das diferenças naturais”.192

Ainda segundo a pesquisadora espanhola, não se pode ignorar que, paralelamente, o feminismo construía um outro discurso, em que a mulher aparece de forma muito diferente, “[...] uma mulher que não era semi-inválida (se era da classe média), não era desviada sexualmente e viciada (se era da classe trabalhadora)”.193

Este discurso feminista, porém, alerta a autora, também fixava as diferenças “no reino do natural”.194

Uma enorme produção de saberes, cuja circulação teve início no final do século XVIII e que se expandiu durante todo o século XIX, reforça as causas naturais das mulheres para sua eterna fragilidade física e sua reduzida capacidade intelectual. As

191 LARRAURI, Elena (Comp). Mujeres, Derecho Penal y Criminología. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1994, p. 182.

192

“pero, lo que es más importante, estos discursos han interpretado como natural el ideal de las diferencias naturales”. In: LARRAURI. Op. cit., p. 182.

193 “[...] una Mujer no era seminválida (si era de la clase media), no era desviada sexualmente y viciosa (si era de la clase trabajadora)”. In: LARRAURI. Idem, ibidem.

mulheres aparecem nesses discursos como um conjunto de sujeitos definidos pela sua

natureza (o corpo). O sentido geral desses discursos, sublinha Maria Rita Kehl, “é

promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado feminilidade“.195 Por conseguinte, “a feminilidade

era um conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua natureza procriadora [...]”196, reservando à mulher um único lugar, destino e função: o espaço doméstico, o casamento e a maternidade.

Volta-se aqui aos conceitos referidos no início deste capítulo. Se a mulher se tornou objeto do discurso da ciência, da Filosofia e da Medicina é porque as condições sociais, políticas e econômicas não só indicaram para esse objeto, como também definiram o valor de verdade que seria conferido a esses discursos e os seus efeitos de poder. Dentro dessa perspectiva, os discursos sobre o “lugar”, ou as possibilidades da mulher, podem ser vistos ainda como uma espécie de reação a outros discursos que, conforme exposto anteriormente, tomaram espaço na Europa revolucionária.

As formações sociais da sociedade capitalista, com mais rigor do que no Velho Regime, fundaram-se na diferença das funções reprodutivas masculina e feminina. Não que essa diferença não estivesse presente nas sociedades anteriores, ou em outros períodos da História, porém a organização burguesa lhe confere características próprias.

195 KEHL. Op. cit., p. 58. 196 Idem, ibidem.

Era essa estrutura que estava em questão. O que havia era uma certa

desestabilização entre as mulheres e as funções que lhes eram ditas, pouco

condizentes com a Declaração Universal dos Direitos do Homem que proclama a igualdade entre todos os indivíduos. Essa situação era no mínimo embaraçosa, por isso que o velho discurso retoma com todo o vigor no século XIX, apoiado agora nas descobertas da Medicina e da Biologia.197

Geneviève Fraisse assegura que “o discurso filosófico sobre as mulheres e sobre a diferença entre os sexos está necessariamente no cruzamento da história”.198 Em contraponto à ruptura política e à mutação econômica da época moderna, “a eternidade das questões filosóficas sobre a dualidade do corpo e do espírito, a partilha entre natureza e civilização, o equilíbrio entre o privado e o público”.199

Segundo a autora, os postulados da nova era reconheciam homens e mulheres como seres dotados de razão, logo, seriam sujeitos autônomos e individuais. A novidade, portanto, das produções discursivas sobre a mulher, ou sobre a diferença

197 O discurso sobre a diferença dos sexos, ou a análise da conflituosa história dos sexos, é retomado no século XIX sob uma forte influência das novas descobertas da Biologia e da Medicina, sendo atravessado pela teoria do evolucionismo de Herbert Spencer e pela teoria da origem das espécies de Darwim. Mesmo sendo caracterizado pela diversidade e pela mutação, o discurso traz como eixo central a impossibilidade da igualdade entre os dois sexos, justificada, agora, nas novas descobertas científicas. Embora as teorias de Spencer e Darwin, aparentemente, não dedicassem uma grande importância à questão dos sexos, seus postulados constituem fortes argumentos para conferir à mulher o seu lugar na espécie, o que era impedimento para desenvolver o seu eu e o seu cérebro. Na tese de Darwin, a seleção natural, acompanhada pela seleção sexual, tornou o homem superior à mulher, diferença instransponível segundo a sua teoria da hereditariedade, na qual afirma que os progressos feitos na idade adulta se transferem apenas de sexo para sexo. Os postulados de Darwin e Spencer tomam espaço, principalmente, no interior da Filosofia Positivista de Auguste Comte, e no pensamento crítico do Cristianismo de Ludwig Feuerbach, num movimento de oposição à Metafísica.

198FRAISSE, Geneviève. Da destinação ao destino. História filosófica da diferença entre os sexos. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente, p. 59.

entre os sexos, residia no fato de que representava a relação entre dois sujeitos: homens e mulheres. A emergência de um sujeito individual refletiu a promessa de emancipação das mulheres e essa perspectiva estava posta nos textos sobre as mulheres, ou seja, mulheres e homens eram concebidos como seres livres e dotados de razão, ainda que as diferenças inscritas em seus corpos lhes conferissem destinos distintos.

Essa aparente contradição pode ser melhor compreendida nos pensamentos de Kant, Fichte e Hegel sobre a natureza jurídica do casamento. Esses filósofos defendem “a igual liberdade da mulher e do homem, a igual razão entre os dois sexos”200, embora diferissem quanto ao status jurídico do casamento.

Para Fichte, observa Geneviève Fraisse, o casamento “é uma ‘união perfeita’, que repousa no instinto sexual dos dois sexos, e não tem qualquer finalidade fora de si mesmo; ele fabrica um ‘laço’ entre as duas pessoas, e é tudo”.201 Este laço é o amor, ponto em que, segundo o filósofo, reúnem-se de modo mais íntimo a natureza e a razão e é dessa relação que nasce o espaço jurídico. Assim, a submissão da mulher ao homem dá-se por um ato de livre vontade. E, ainda, a dignidade, da razão impõe que a mulher se torne o “meio de seu próprio fim”.

Já na posição kantiana, sustenta a autora, o casamento aparece como um “contrato”, símbolo de uma posse jurídica e essa posse está fundada no consentimento

200 Idem, p. 62. 201 Idem, p. 61.

recíproco, visto como prova de uma livre escolha. O fato de a lei submeter a mulher ao homem, ou o fato de aquela dever obediência a este, é tratado como questão secundária. Sendo um ser livre, a mulher era também um ser de razão.

Como um ser de razão, estava submetida à reprodução da espécie. A dependência conjugal que, segundo Kant, privava a mulher de uma personalidade civil, bem como a submissão à vida da espécie, eram entendidas como perfeitamente compatíveis com a sua liberdade e a igualdade entre homens e mulheres.

O estatuto jurídico da mulher nos postulados de Kant assume um conteúdo contraditório, observa Michelle Perrot, “como indivíduo a mulher pertence ao direito pessoal; como membro da família está submetida ao direito conjugal, de essência monárquica”.202 Kant deixa claro que, no papel de reprodutora da vida, os interesses particulares da mulher estavam submetidos aos da espécie, representada na família, é ali que se encontra o verdadeiro triunfo da razão.

Hegel opõe-se radicalmente ao “contrato positivo” de Kant. No seu entendimento, o casamento se funda num “ser-particular”, cuja peculiaridade é estabelecida pela natureza, não pelo arbítrio de uma abstração (referindo-se ao contrato de Kant). Para o filósofo, a “personalidade”, ou o “ser-sujeito”, no casamento se aniquila. A liberdade, no seu entendimento, consiste na “indiferença das determinidades”.203 Ou então, uma vez

202PERROT, Michele. História da vida privada. Da revolução francesa à primeira guerra. Trad. Denise Bottmann e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das letras, 1991, v. 4, p. 93.

fundada a “família”, “nela se unifica a totalidade da natureza e tudo o que precede, toda a particularidade anterior se transpõe nela para o universal. Ela é a identidade [...]”.204

As diferentes funções, ou lugares no interior da família, entendida como uma garantia da moralidade natural, são explicadas pelo filósofo “como uma diferença superficial da dominação”.205 Assim, o homem é o “senhor” e “intendente”; não proprietário por oposição aos outros membros da família, é apenas o administrador; a repartição do trabalho é segundo a natureza de cada membro, sendo o seu produto comum; a relação dos sexos, da mulher com o homem, assume também a sua maneira um caráter de indiferença.

Michelle Perrot, falando sobre o “triunfo” da família na nova ordem burguesa do século XIX, assinala que, enquanto o laisser faire, o ideal da “mão invisível”, predomina num pensamento econômico estagnado, o pensamento político mostra uma preocupação em “organizar a vida privada”. “O doméstico constitui uma instância reguladora fundamental e desempenha o papel do deus oculto”.206

Para Hegel, a família é a garantia da moralidade natural. A divisão de papéis na família e na sociedade é estabelecida a partir de seus “caracteres naturais”: “O homem possui sua vida substancial real no Estado, na ciência, enquanto a mulher encontra seu

204 Idem, p. 37. 205 Idem, ibidem.

destino substancial na moralidade objetiva da família”.207 Kant, referindo-se à “casa”, ressalta que é o fundamento da moral e da ordem social. “É o cerne do privado, mas um privado submetido ao pai, único capaz de refrear os instintos, de domar a mulher”.208

O discurso do século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual. “Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seus lugares quase predeterminados [...}”.209 O discurso dos ofícios, o discurso dos espaços, o discurso das funções. A linguagem nunca fora tão sexuada.

Na distinção entre masculino e feminino, a reflexão sobre a partilha dos espaços só pode ser compreendida no interior do discurso filosófico a partir de uma perspectiva metafísica. “A metafísica do século XIX nutre-se dos conceitos de dualidade, relação e união de pólos opostos, de que a diferença entre os sexos é uma das representações, ou mesmo, possivelmente, uma metáfora fundamental”.210

As filosofias da natureza, observa Geneviève Fraisse, se fundam sobre o pensamento da dualidade e da sua resolução na unidade. São atravessadas pela tensão entre o finito e o infinito. “A separação da natureza em dois sexos lembra que o indivíduo (finito) está a serviço da espécie (infinita) [...]”.211 Se, por um lado, esta

207 Idem, p.95. 208

Idem, ibidem.

209 PERROT, Michelle. Os excluídos da história, p. 178. 209 Idem, ibidem.

210Geniviève Fraisse, In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente, p. 65. 211 Idem, ibidem.

separação é reconhecida como necessária à vida da natureza, por outro é percebida com sérias críticas. Daí o trabalho da dialética, observa a autora.

Enquanto durante a Revolução Francesa a reflexão sobre as mulheres atravessa o espaço do Direito e o espaço da natureza, em meados do século XIX a história política e a história filosófica modificam a problemática: passa a apresentar-se um discurso sobre o amor, o desejo humano e a transcendência, concorrendo com a metafísica da diferença. Ou então “[...] a misogenia dos filósofos muda de natureza; sem dúvida porque a emancipação das mulheres se deixa entrever concretamente e porque o feminismo, como movimento social e político, se torna uma realidade pública”.212

Nessa discussão binária sobre o masculino e o feminino, Artur Schopenhauer “escreve uma metafísica do amor”213 em que a relação entre os dois sexos aparece

como uma relação de correspondência, de complementaridade entre o homem e a mulher, tendo cada qual a sua função. Opondo-se aos discursos da maioria dos outros filósofos, na sua metafísica, ao pai cabe o caráter e a vontade; à mãe, o intelecto, o racional.

Entretanto, quando o seu discurso atravessa as fronteiras do amor e focaliza a diferença entre os sexos, ou então a metafísica da sexuação do mundo, o tom muda,

212 Idem, p. 75. 213 Idem, p. 69.

considera Geneviève Fraisse, a misogenia vence e a mulher toma a posição do segundo sexo, sem qualquer paridade com o homem, ficando entre esse e a criança.

Os postulados de Pierre Leroux, Karl Marx, Stuart Mill, Friedrich Engels e Emmile Durkheim também são atravessados pelo tema da diferença entre os sexos, articulado com uma profunda reflexão sobre a família, compreendida enquanto representação histórica na qual se inscreve uma relação de forças entre homens e mulheres. Em oposição à idéia da família como uma entidade abstrata (metafísica), ela é concebida por estes filósofos como uma realidade social, evoluindo conforme as épocas. Cria-se um novo vínculo entre sociedade e família.

A corrente de pensamento destes autores ganha grande expressividade nos ensinamentos de Karl Marx, consoante o qual o capitalismo moderno, ao colocar as mulheres no mercado de trabalho, retira-as do lugar da propriedade privada familiar dando início a um processo de emancipação da mulher, ainda que na sociedade capitalista seja reduzida a uma mercadoria. Portanto está na economia e no trabalho assalariado, e não no Direito, a base da emancipação das mulheres e uma nova estrutura da família, que é sempre uma realidade histórica. Marx é contrário à abolição da família, posicionando-se a favor da monogamia e do divórcio.

A família é definida em Marx como a “primeira relação social e a mulher como o ser natural que permite ao homem criar essa primeira relação social; assim se

desenvolve uma relação humana para lá da relação de natureza [...]”.214 O que ele anuncia é que a mulher (primeiro, instrumento de produção ou reprodução familiar, depois objeto de produção mercantil) poderia tornar-se uma trabalhadora no sistema de produção e um ser autônomo na vida privada.

Stuart Mill, por sua vez, oferece grande colaboração intelectual ao tema em questão, quando pensa o indivíduo e o cidadão. Opõe-se radicalmente à submissão da mulher no casamento. Os interesses do marido não anulam os interesses da mulher e tanto o homem quanto a mulher têm direitos políticos, civis, direito à vida pública e ao voto. O casamento não anula esses direitos, devendo preservar a liberdade e a emancipação do sujeito.215

Entre doutores, filólogos, biólogos, ginecologistas e charlatões que contribuíram com a questão das mulheres encontra-se Jean-Jacques Rousseau, o grande filósofo dos ideais românticos, da harmonia entre o homem e a natureza, que apresenta o discurso sobre a feminilidade que dominou na Europa no século XIX, sobretudo nos países católicos.

Com Rousseau, retoma com toda força (porém agora sob os ideais do casamento romântico) a idéia do controle da “desenfreada” sexualidade feminina, pulsão que deveria ser contida ou sublimada pela educação. A mulher deveria ser especialmente domesticada para que seus desejos “ilimitados” não destruíssem a

214 Idem, p. 80. 215 Idem, ibidem.

ordem social e familiar. Assim, o papel atribuído à mulher em o Contrato Social e confirmado em Emílio ou da Educação: o lugar para Sofia define-se em função do homem, em função de satisfazer os desejos de seu esposo e as necessidades de seus filhos.

Em Emílio ou da Educação216, o filósofo reconhece a feminilidade como um

conjunto de atributos naturais da mulher, mas que deveriam ser cultivados pela educação. O pudor, a dependência, modéstia, fragilidade, doçura e a submissão estavam em constante tensão com a ociosidade, dissipação, indolência, frivolidade e a inconstância. Só a educação é que poderia salvar a mulher contra esses excessos, preservando o casamento e os bons costumes. “A honestidade de uma mulher é um combate constante contra si mesma”.217

Jean-Jacques Rousseau reforça a ontológica condição ambígua da mulher: Eva ou Maria, honrada ou pecadora, das virtudes de uma mulher dependiam a educação dos filhos e a virtuosidade dos homens, “da boa constituição das mães depende inicialmente a dos filhos; do seio das mulheres depende a primeira educação dos homens; das mulheres dependem ainda os costumes desses, suas paixões, seus gostos, seus prazeres e até sua felicidade. Assim, toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens”.218

216ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.

217 Idem. p. 438. 218 Idem, p. 433.

A importância da mulher como esposa e mãe fez com que os pedagogos dos séculos VXIII e XIX tivessem como principal função educar as mulheres para que fossem verdadeiras mães. Para Neusa Soliz, “o desenvolvimento da maternidade como posição espiritual não se referiu apenas à mulher na família, como também se estendeu à mulher nas profissões assistenciais e educacionais”.219 Consoante a autora, esse ideal continua a influenciar até hoje enfermeiras e professoras, especialmente as especializadas em jardins de infância e em escolas primárias.

2.3.1 A Sexualidade Feminina na Psicanálise

Até a teoria psicanalítica de Sigmund Freud, a sexualidade era entendida pelas suas características inatas e genéticas. Estava condicionada ao desenvolvimento físico do indivíduo, também visto como natural e gradual. Dependia da prontidão biológica e essa, por sua vez, garantia o exercício da sexualidade.

Freud rompe com esse pensamento uma vez que entende que a sexualidade se constitui desde o nascimento por meio das relações simbólicas que o bebê, a criança e o adolescente estabelecem com as figuras parentais e sociais. Ressalta-se que as mediações e investimentos não acontecem fora da cultura. Ou então, a inscrição do indivíduo no masculino ou feminino depende dos costumes, das tradições e, principalmente, da posição subjetiva daqueles que se encarregam de marcar a criança,

219SOLIZ, Neusa. A mulher no século XXI. Um estudo de caso: a Alemanha. Rio Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1988, p. 19.

apresentando-lhe uma identidade sexual mediada pelo seu discurso embutido de desejos inconscientes e ideais imaginários.

Geneviève Fraisse assinala que a psicanálise opera uma dupla ruptura filosófica: