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Sistema Penal: Da Proteção à Violência Institucional

1 SISTEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA

3.2 Sistema Penal: Da Proteção à Violência Institucional

Inúmeras pesquisas apontam a violência dirigida às mulheres, ou a violência intrafamiliar, como parte de uma violência de gênero própria da sociedade patriarcal. Não se pretende neste estudo adentrar na complexidade dessa temática, entende-se, pois, que esta configura um objeto de pesquisa à parte, bastante explorado pelas ciências sociais (sociologia, antropologia, psicanálise, criminologia, psicologia social), sendo que, como afirma Roberto da Matta276, os diferentes campos do conhecimento conseguem, hoje, situá-la num enfoque mais distanciado do senso comum, menos moralista, místico e escandaloso, permitindo vislumbrar estratégias e alternativas mais realistas para o seu enfrentamento.

Campos tão distintos e específicos de reflexão resultaram em construções teóricas diferenciadas e muitas vezes contraditórias. À margem dessa discussão, percebe-se a violência interpessoal e cotidiana que atinge as mulheres, exercida na maioria dos casos no meio familiar, enquanto um fenômeno complexo, inscrito numa sociedade de gênese patriarcal e que, embora associada ao exercício do poder masculino, requer, para o seu entendimento, que se ultrapasse esta perspectiva situando-a nas próprias relações conjugais e amorosas, enquanto expressão dos

276 MATTA, Roberto da. As raízes da violência brasileira: reflexões de um antropólogo social. In: MATTA, Roberto da. (Org). A violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.

conflitos afetivos que se aninham nas relações de gênero, e em imperativos culturais que lhe outorgam sentido.277

Essa articulação entre violência e gênero requer, pois, que se considere também as motivações da ordem do psiquismo e do social enquanto espaço de encontro do indivíduo com a sociedade; do plano do proibido e do permitido segundo a hegemonia cultural e, é claro, das estruturas econômicas e sociais, espaços onde os grupos e os sujeitos sociais se localizam, atuam. Isso compreende considerar as desigualdades sociais, a irredutibilidade das diferenças, o exercício abusivo do poder, porém sem distanciá-los do plano do sujeito-individual, de sua subjetividade e das particularidades culturais.

Cabe lembrar ainda que a identidade masculina e o poder associado a ela apóiam-se na ordem do imaginário na qual os homens são protetores e as mulheres protegidas. Inúmeros estudos sobre as causas da violência contra a mulher têm revelado que uma inversão dessa ordem, seja pelo desempenho de outros papéis pela mulher, seja porque os homens já não conseguem desempenhar o que deles se espera, está na origem dos conflitos.278

Os estímulos individuais, portanto, dizem da reprodução de um imaginário que fala da relação entre os gêneros e as hierarquizações delas decorrentes. “O

277 SUÁREZ, Mireya; BANDEIRA, Lourdes (Orgs). Violência, gênero e crime no distrito federal. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

deslocamento do conteúdo imaginário para o ato concreto depende de um rearranjo particular que possibilite o aniquilamento de um sujeito de carne e osso ao próprio desejo”.279

A problemática da violência evidencia que convivem no cenário da vida contemporânea os princípios norteadores de uma identidade de gênero atribuindo valores e lugares diferentes às mulheres e aos homens enquanto referenciais simbólicos que povoam o imaginário popular, e o referencial da igualdade, emergido da modernidade. Essa é, certamente, uma questão que também assume relevância no interior do sistema judiciário.

Distingue-se, por conseguinte, a opressão pessoal (privada) da opressão estrutural (social), perpetrada pelo Estado.Portanto o que se tentará elucidar não é a etiologia da violência física, sexual, psicológica e doméstica vitimando a mulher.280 O

que se objetiva é tentar entender como o Estado, através de suas instâncias de poder, reage contra essa violência no cumprimento de sua função jurisdicional.

279 BANDEIRA, Lourdes; ALMEIDA, Tânia Mara de. O caso motoboy, a construção do estuprador pela mídia. In:

Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre: a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 19.

280As cifras da violência: 70% das mulheres vítimas de homicídio no mundo foram mortas por seus próprios companheiros. Sete milhões de brasileiras acima de 15 anos de idade já foram agredidas pelo menos uma vez. Um bilhão de mulheres do mundo, ou uma em cada três, já foram estupradas, espancadas ou sofreram algum tipo de violência. CIRENZA, Fernanda. Violência doméstica. Marie Claire, São Paulo, p. 71-78, nov. 2004.

A cada dez homens processados por agressão física contra a mulher, apenas um é condenado. Setenta por cento dos processos de violência doméstica em São Paulo são arquivados: as vítimas retiram as queixas. A violência doméstica é responsável por um em cada cinco dias de falta da mulher no trabalho. CERQUEIRA, Patrícia. Irmãs coragem.

3.2.1 Moral Pública: Violação dos Direitos Individuais

Com a ascensão da sociedade burguesa, proliferam os discursos, cujo objetivo era a disciplina, o adestramento dos corpos. Nessa perspectiva, assinala Wilhelm Reich: “Na sociedade autoritária aumentam, em conexão com os conflitos econômicos e ideológicos, as contradições entre a moral vigente, que é imposta a toda sociedade dominante no interesse da preservação e do fortalecimento do poder”.281 De outra

parte, argumenta o autor que tais discursos se opõem “à exigência natural da sexualidade dos indivíduos isolados em determinada época, levando a uma crise insolúvel da forma social existente”.282

O Direito, enquanto produto político, histórico e cultural constitui a normatização desses valores. Nesse aspecto, é inquestionável a confusão entre Direito Penal e moral social, expressa na lei e na doutrina, e que recebe novos contornos na prática jurídica. É sob o discurso da moral pública dominante em que a mulher (melhor seria dizer a função feminina) aparece enquanto objeto de proteção do Estado.

Gladys Acosta283, no relatório de sua pesquisa sobre as concepções de gênero

que orientam as legislações dos países latino-americanos, sublinha que as normas penais em vigor na região, quase que uniformemente, concebem a mulher como um

281 REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Trad. Ary Blaustein. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988, p. 62. 282 Idem, p. 62.

283ACOSTA, apud SUÁREZ, Mireya; SILVA, Ana Paula P. M. da; FRANÇA, Danielle Jatobá; WEBER, Renata. A noção de crime sexual. In: SUÁREZ; BANDEIRA (Orgs). Op. cit., p. 39.

sujeito cujas condições fisiológicas, sociais e psicológicas a reduzem à condição de “vítima” à qual os homens e o Estado devem proteger.

A idéia de proteção, segundo David J. Morgan284, povoa o imaginário ocidental e sustenta ideologicamente as fronteiras de gênero. Suas raízes estariam no papel de protetores da nação, das mulheres e das categorias ditas “frágeis”; atribuído pelo Estado ao homem. Para Gladys Acosta, o legislativo é a instância em que essa percepção é mais visível.

Tomando como objeto de exame o Código Penal285 vigente no Brasil, percebe-se que essa proteção obedece a diversas delimitações expressas no texto legal ou implícitas na sua ideologia. Estes aspectos ganham maior relevância nos chamados “Crimes Contra os Costumes”. Como bem expressa a própria terminologia, trata-se de proteger não a liberdade individual (sexual) da mulher e sim uma sexualidade feminina segundo os padrões tradicionais.

284MORGAN, apud SUÁREZ, Mireya; SILVA, Ana Paula P. M. da; FRANÇA, Danielle Jatobá; WEBER, Renata. A noção de crime sexual. A noção de crime sexual. In: SUÁREZ; BANDEIRA (Orgs). Op. cit., p. 39.

285O Código Penal vigente no Brasil é, ainda, o estatuto penal de 1940, com importantes modificações na Parte Geral e quase nenhuma alteração na Parte Especial. Foi implantado em meio à Segunda Guerra Mundial e fortes mudanças no cenário nacional: além de uma ordem política autoritária e repressiva, o Brasil inicia seu processo de industrialização, a migração da população do campo para os centros urbanos resultando no crescimento e concentração das populações urbanas em espaços físicos impróprios, a explosão demográfica, etc. Era um estatuto de caráter nitidamente repressivo, construído sobre a crença da necessidade e suficiência da privação da liberdade, por meio da pena ou da medida de segurança, para o controle do fenômeno do crime. Ver mais em TOLEDO, Francisco de Assis. A reforma do código penal brasileiro. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, a. 4, n. 15. jul./set. 1996.

Considerado por Magalhães Noronha286 como um Código “eclético”, com tendências do segundo período da Escola Clássica e com fortes componentes da Escola Positivista italiana surgida no final do século XIX287, o Código Penal de 1940 é implantado em meio a eclosão de dois regimes totalitários na Europa: o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha, “marcando o retorno das idéias mais primitivas a respeito de castigo e intimidação. É o advento do direito penal ultra-autoritário”.288

A percepção da mulher no interior desses regimes teve importante repercussão nas legislações totalitárias da época, sendo incorporada às práticas ditatoriais da América latina. “O fascismo utilizou a mulher como base de apoio à dominação capitalista da burguesia industrial e dos proprietários da terra. Combateu as idéias sufragistas inglesas do século XIX e foi uma contra-ideologia dos movimentos de mulheres organizadas e agrupadas em torno de socialismos emergentes na época”.289

O nazismo não ficou longe com sua “teoria genética de purificação de raça”, tornando o controle e disciplinamento da sexualidade feminina parte de um projeto político e econômico que encontraria sua efetividade através das instituições interestatais, mais especialmente na família. É por meio da regulação da família que o Estado terá o “controle sobre o casamento e sua função de reproduzir indivíduos e

286Ver Edgar Magalhães Noronha in: Direito Penal, 13 ed., São Paulo: Saraiva, 1976, p. 61, v 1. 287 Sobre a tendência das duas escolas ver capítulo 1 deste estudo.

288

SILVA, Iara Ilgenfritz da. Direito ou punição? Representação da sexualidade feminina no direito penal. Porto Alegre: Movimento, 1985, p. 45.

289Iara Ilgenfritz da Silva cita Ferdinand Lofredo que, em sua obra A Política da Família, publicada em 1938, traz interessante abordagem sobre a “ideologia da inferioridade feminina” que ressurgiu com todo ímpeto no interior do regime fascista. In: SILVA. Op. cit., p. 46.

mentalidades [...]”.290 Essa regulação se estendeu para as questões de patrimônio, herança, propriedade, nome, etc.

O Código Penal brasileiro não passa à margem dessas concepções, traz em seu bojo o pensamento jurídico do início do século. Embora muitos dos seus dispositivos são considerados anacrônicos ou letra morta, subsiste tanto na lei quanto na doutrina e jurisprudência, a defesa de uma moral pública calcada no contexto social, político e cultural do início do século.

É o discurso da moralidade que mais expressamente evidencia o ideal de feminilidade subjacente no sistema penal, elemento que, associado à sua lógica seletiva, torna a arena penal um instrumento não somente ineficaz na defesa dos direitos da mulher, mas também lhe confere um poder de violência institucional, configurando um forte instrumento na re(produção) de estereótipos e estigmas que dão lugar à discriminação, etiquetação, marginalização e exclusão da mulher no corpo social, mesmo sob o discurso da proteção.

Assim, pois, como a dogmática jurídico-penal se encontra mergulhada numa profunda crise de legitimidade, “também o tratamento dispensado à condição feminina pelo Direito Penal passa por uma espécie de crise paradigmática”, sublinha Lênio Streck.291

290 Idem, ibidem.

291STRECK, Lênio. O ideal normativo da masculinidade. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 40.

Conforme esse autor, muito embora a discussão sobre a mulher esteja sendo elaborada sob o prisma do gênero, o tratamento que lhe é dispensado pelo judiciário é segundo a “égide de um direito de família burguês, individualista, onde o marido era o chefe da empresa familiar (de patrimônio ‘avança-se’ para matrimônio)”.292 Tomando-se como exemplo a violência do marido cometida contra a mulher, esta continua sendo compreendida como o “exercício regular de um direito”, excludente de criminalidade prevista no Código Penal.

Não é de se surpreender, observa Lênio Streck, “que até há poucos anos, alguns Tribunais, avalizados por renomados penalistas brasileiros, ainda sustentavam, por exemplo, que o marido não podia ser sujeito do crime de estupro cometido contra a esposa, por ‘lhe caber o exercício regular de um direito...’”.293 Eram comuns julgados declarando a “cópula intra matrimonium” como dever recíproco dos cônjuges, justificando-se o uso da força física caso houvesse recusa injustificada (moléstia grave, cópula contra a natureza) por parte de um dos cônjuges.

Essa ótica é reforçada por Maria Berenice Dias em artigo versando sobre a feminilização da magistratura. No entender da autora, o Poder Judiciário ainda é uma das instituições mais conservadoras, mantendo uma posição discriminatória nas

292 Idem, p. 41. 293 Idem, p. 42.

questões de gênero, “com uma visão estereotipada da mulher, exigindo-lhe uma atitude de recato e impondo-lhe uma situação de dependência”.294

Sobrevive no interior do sistema jurídico penal o referencial simbólico de um padrão familiar patriarcal, heterossexual, matrimonializado, hierarquizado, fundado sob a lei da desigualdade, numa clara contradição às mutações sociais ocorridas no modelo familiar e na estrutura social nos últimos séculos. Mudanças decorrentes da entrada da mulher no mercado de trabalho; da evolução dos costumes no campo da moralidade sexual, forjada pela invenção dos métodos contraceptivos, levando à descoberta e à vivência de uma nova sexualidade pela mulher, e de um novo status jurídico que lhe conferiu equidade formal perante a lei295, sendo esse, em grande parte, um avanço decorrente das lutas emancipatórias que emergiram a partir do século XIX.

Para Norberto Bobbio, a revolução feminina configura a maior revolução do último século. São novos papéis e novos lugares que redefiniram o modelo familiar:

294DIAS, Maria Berenice. A feminilização da magistratura. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Acesso à Justiça. Porto Alegre, a. 2, n. 2, set. 2002, p. 79.

295 “A Constituição Federal buscou resgatar a igualdade, cânone da democracia desde a Revolução Francesa e linha mestra da Declaração dos Direitos Humanos. O igualitarismo formal vem decantado enfaticamente na Carta Política em duas oportunidades – arts. 5o, inc. I, e 226, & 5o – não basta por si só, para se alcançar a absoluta equivalência social e jurídica de homens e mulheres. O legislador foi até repetitivo ao consagrar a plena isonomia de direitos e obrigações entre o homem e a mulher, varrendo do sistema jurídico todo e qualquer dispositivo legal que, mesmo com aparente feição protecionista, acabava por colocar a mulher num plano de subordinação e inferioridade. Assim, não é mais o marido o cabeça do casal, o representante legal da família, nem o único responsável por prover o seu sustento. O simples estabelecimento do princípio da igualdade não logrou eliminar as diferenças existentes. A igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação por meio da redução das diferenças sociais. Nítida a intenção do novo sistema jurídico de consagrar a máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam. A necessidade de obediência ao preceito constitucional não pode ver como infringência ao princípio da isonomia a adoção de posturas que gerem normas protetivas que, atentando na realidade, visam a propiciar o equilíbrio para assegurar o direito à igualdade”. DIAS. Idem, p. 79.

assim como a mulher participa do sustento da família, é exigido também do homem que assuma maior responsabilidade na educação dos filhos, nos afazeres domésticos, ao mesmo tempo que lhe é permitido expressar emoções, revelar sentimentos.

Georges Vigarello, em entrevista a Juremir Machado da Silva296, argumenta que, embora ainda existam mais mulheres desempregadas do que homens e estas continuam ganhando menos que esses, um grande número de fronteiras determinantes foi ultrapassado. “Tudo é acessível às mulheres. De resto, a mulher pode administrar livremente o seu corpo em termos de contracepção e, no caso da França, de aborto. O casamento não é mais um lugar de dominação sistemática da mulher”.297 Segundo o autor, as feministas que negam esses avanços não refletem a realidade das mudanças.

Para Maria Berenice Dias, hoje, tendo em vista os fatores econômicos, tolera-se com mais facilidade a profissionalização feminina e até mesmo a participação da mulher nas esferas de poder, porém sobrevive um grande preconceito no interior do Poder Judiciário quando essas modificações põem em risco a moralidade da família.

Segundo a autora, “os processos envolvendo relações familiares são os em que mais se destaca que a profunda evolução social e legislativa ocorrida nos últimos

296SILVA, Juremir Machado. O corpo do pensamento. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 13.

tempos não bastou para alterar o discurso dos juízes”.298 Os julgados na área cível, sublinha a autora, claramente revelam uma tendência perigosamente protecionista à mulher.

Já no campo penal, os julgados são fortemente influenciados por uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados papéis sociais, violando o direito à liberdade, à autonomia e à privacidade da mulher, uma vez que “a vida sexual ou afetiva é área de indevassável intimidade”.299

Mais do que em qualquer outra ceara jurídica, é no campo penal, sobretudo no que se refere aos crimes de natureza sexual, em que sobrevivem argumentos de uma moral sexual instaurada pelos discursos da era que inaugurou a sociedade moderna, como uma das grandes novidades e técnicas de poder. O discurso da moral sexual deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas.

Em sua análise da sexualidade enquanto “dispositivo político”, Michel Foucault300 defende que o advento do capitalismo fez brotar uma verdadeira política do sexo criando dispositivos que devem ser considerados como mecanismos positivos, produtores de saber, multiplicadores de discursos e geradores de poder.

298DIAS. Op. cit., p. 79. 299 Idem, p. 80.

300 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

Ou seja, sobrevive através do Direito Criminal contemporâneo uma rede sutil de discursos, latente em todos os níveis do corpo social, que se traduz em técnicas disciplinares e procedimentos reguladores, métodos de poder capazes de majorar ou sujeitar as forças, as aptidões, a vida em geral para a garantia das relações, não só de produção301, como defende o autor, mas as relações de gênero segundo o modelo tradicional.

O sexo, enquanto acesso à vida do corpo e à vida da espécie, insere-se simultaneamente como matriz das disciplinas e como princípio das regulações, alvo central de um poder que se organiza em torno da vida302. Com o limiar da modernidade, nasce toda uma tecnologia do sexo, dando lugar a “controles constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos e psicológicos infinitos, a todo um micropoder sobre o corpo”303 por um lado, e de outro, também “dá margem a

301 O discurso da sexualidade que emerge a partir do século VXIII foi, segundo Michel Foucault, elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, “que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos”. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 132. Este processo foi dinamizado com o desenvolvimento dos grandes aparelhos do Estado, das instituições presentes em todos os níveis do corpo social: a família, o exército, a escola, a política, a medicina, a administração das coletividades. Além de agirem no nível dos processos econômicos, no seu desenrolar, forças em ação em tais processos operaram também enquanto fatores de segregação “e de hierarquização social, agindo sobre as forças representativas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia [...]”. In: FOUCAULT. Op. cit., p. 133. 302Consoante Michel Foucault, o sexo, ou a sexualidade enquanto foco de disputa política é parte de uma nova moral, é a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder, no campo das técnicas políticas. Até então, sublinha o autor, o contato da vida com a história era dado sob o signo da morte: epidemias e fome eram ameaças constantes. Com o desenvolvimento da agricultura e com o aumento da produtividade e dos recursos, as grandes devastações deixaram de ser uma ameaça. “O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva [...]. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político”. In: FOUCAULT. Op. cit., p. 134.