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O discurso jurídico-penal e a sua repercussão no processo emancipatório feminino

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VERA MARIA WERLE

O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E A SUA

REPERCUSSÃO NO PROCESSO EMANCIPATÓRIO FEMININO

Ijuí (RS) 2005

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VERA MARIA WERLE

O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E A SUA

REPERCUSSÃO NO PROCESSO EMANCIPATÓRIO FEMININO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania como requisito para obtenção do título de Mestre. UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DEJ – Departamento de Estudos Jurídicos.

Orientadora: Profª. Drª. Odete Maria de Oliveira

Ijuí (RS) 2005

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VERA MARIA WERLE

O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E A SUA

REPERCUSSÃO NO PROCESSO EMANCIPATÓRIO FEMININO

Dissertação de Mestrado aprovada pela banca examinadora abaixo subscrita para a obtenção do título de Mestre.

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

Área de Concentração: Direito, cidadania e Desenvolvimento

Ijuí, 9 de maio de 2005 _________________________- Doutora – UNIJUÍ Odete Maria de Oliveira

Profª. Orientadora

_________________________ - Doutor – _________________________ - Doutor – _________________________ - Doutor –

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Dedico este trabalho a meus filhos, Raquel, Natana e Felipe, fonte de aprendizagem constante; a meus pais Edith e Reymundo Werle, de quem aprendi a lutar pelos meus ideais; as minhas irmãs, Rita, Elaine, Marlise, Anira, Amara e Leila, que souberam ousar e inovar a “tradição”.

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AGRADECIMENTOS

Externo a minha sincera gratidão à professora Odete Maria de Oliveira, pois, muito mais do que orientar este trabalho com sabedoria e dedicação, soube indicar o caminho para o crescimento e aprimoramento intelectuais, sem perder de vista, entretanto, o significado da generosidade humana.

Também agradeço a todos os professores que ao longo do curso de Mestrado contribuíram na construção de uma aprendizagem significativa e crítica, o que foi fundamental na definição desta proposta de pesquisa e para oportunizar novos espaços de convivência.

E, por último, dirijo os meus agradecimentos a todos aqueles que, de uma ou outra forma, contribuíram na realização deste trabalho.

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Die welt, si wird dich schlecht begaben, glaube mir’s! Sofern du willst ein Leben haben: raub dir´s! (Lebensrückblick)

Lou Andréas-Salomé, História das Mulheres no Ocidente, 1991.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 1 SISTEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL... 1.1 A Genealogia do Moderno Saber Penal... 1.1.1 A Reforma do Século XVIII: Um Direito Penal Legitimado pelo Contrato Social... 1.1.2 O Direito Penal sob o Paradigma da Racionalidade Científica... 1.1.3 Escola Clássica: O Crime é uma Ação de Livre Arbítrio... 1.1.4 Escola Positiva: Da Responsabilidade Moral à Responsabilidade Social... 1.2 As Legislações Penais do Século XX... 1.3 O Mito do Direito Penal Igualitário e sua Lógica de Exclusão e

Seletividade... 2 O DISCURSO ENQUANTO ESTRATÉGIA CRIADORA DE GÊNERO... 2.1 Discursos, Verdade e Gênero: A Dialética do Poder... 2.2 Representações da Mulher na História: Contradições... 2.2.1 O Poder das Mulheres no Século XIX... 2.3 Filosofia e Ciência: O Sistema Binário do Sexo... 2.3.1 A Sexualidade Feminina na Psicanálise... 2.4 O Direito e a Proteção ao Modelo Familiar Burguês... 2.4.1 A Mulher no Direito Penal do Século XIX... 3 O DIREITO PENAL SOB UMA PERPECTIVA DE GÊNERO... 3.1 O Direito Penal e a sua Própria Versão de Gênero... 3.1.1 Controle Social: (Re) Produção da Ideologia de Gênero... 3.2 Sistema Penal: Da Proteção à Violência Institucional...

10 17 17 25 28 36 41 48 51 61 61 76 80 90 102 111 118 124 124 131 139

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3.2.1 Moral Pública: Violação dos Direito Individuais... 3.2.2 A Violência Discursiva dos Tribunais... 3.3 Criminologia e Feminismo: Impasses e Contradições... 3.3.1 Demandas Feministas na Arena Penal... 3.3.2 Perspectivas para um Novo Paradigma no Direito Penal... CONSIDERAÇÕES FINAIS... REFERÊNCIAS... 142 155 160 163 166 172 178

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RESUMO

Embora velhas tradições se curvem diante da vertiginosa mudança dos referentes de gênero, certos conceitos, discursos e instituições permanecem carregados de significantes que encerram uma concepção político-ideológica sobre a mulher, idéia inscrita sob os imperativos das relações de poder emanadas do corpo social. Erigir a problemática da mulher em relação ao poder sancionador do Estado constitui, portanto, o objeto deste trabalho, elaborado a partir de pesquisa bibliográfica empreendida para esse fim. Parte-se da análise de configuração do moderno discurso jurídico-penal, considerando as múltiplas determinações e mediações históricas que o constituem. Na mesma perspectiva apresentar-se-ão os discursos representativos do ideal de feminilidade, uma vez que pronunciam e legitimam os espaços e funções da mulher na modernidade. Delimita-se, assim, o campo teórico no interior do qual se discutirá os efeitos do discurso jurídico-penal, considerado na modalidade lei, doutrina e jurisprudência, sobre o status de sujeito da mulher e na fixação de subjetividades. Esta pesquisa revela uma tentativa de contribuir para a discussão e superação do ainda hegemônico paradigma patriarcal que permeia a práxis do sistema penal.

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ABSTRACT

Alhough old traditions end up accepting the quick changes of the referents of gender, some concepts, discourses and institutions stick to concepts which embody an ideological-political concept of women, an idea under the dominance of the relations of power enacted from the social organization. The discussion of the problematic interchange between women and the public institutions is the modern juridical penal discourse is the focus of this research based on bibliographical research. An analysis of the modern judical penal discourse in the base of this study, taking into consideration the innumerous determinations and historical mediations that embody it. In the same perspective the representative discourse of the ideal female will be discussed since it shows and legitimates the functions and the spaces occupied by women in modern times. The theoretical field will thus be delimited to make it more appropriated to discuss the effects of the juridical and penal discourse and its corresponding jurisprudence, considering law, doctrine and legal procedures about the status of being a woman and its related identities. The research tries to contribute in the discussion and the overcoming of the hegemonic patriarchal concept which is still present in the discourse and praxis of the penal system.

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INTRODUÇÃO

Mulheres da era contemporânea vivem sob o imperativo de novas demandas, suas perspectivas e realizações alargaram-se, transpondo os limites do casamento e da maternidade, redefinindo-se as relações de gênero no meio familiar e social. São novos papéis e lugares, implicando a remodelação dos espaços público e privado e a transformação do status social e jurídico da mulher.

Nessa perspectiva, inserir a categoria de gênero na análise do discurso jurídico-penal poderá, à primeira vista, mostrar-se anacrônico. Há, pois, um entendimento corrente de que após a promulgação da Constituição Federal de 1988, declarando expressamente a igualdade formal entre os sexos, as discussões sobre a posição da mulher na sociedade tendo por referência o Direito, perderam parte do seu sentido.

Esse pensamento opera com uma categoria unitária de gênero. Como a mulher participa de todos os grupos sociais, dos mais privilegiados aos mais oprimidos, existe em todas as faixas etárias, tornou-se comum a problemática feminina ser tomada numa

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perspectiva genérica, o que obscurece o seu caráter pluralista, comprometendo a análise. É preciso lembrar, também, que inovações legislativas ainda estão longe de produzir a sua necessária eficácia.

De outra parte, o discurso jurídico, pela natureza secularizada do Direito, permanece, em alguns campos, incomunicável com as transformações sociais e as demais esferas da sociedade. Não obstante, mantém-se à margem de discussões e reflexões as quais poderiam abalar o seu sistema de dominação e os códigos de significação que o constituem.

Com vistas a essa perspectiva, assinala-se que as especificidades de gênero configuram uma temática pouco explorada pelas teorias jurídicas, lançando à luz das ciências sociais um campo vasto e complexo à investigação. A trajetória do discurso jurídico, saber constituído historicamente a partir de componentes político-ideológicos, é um domínio extremamente prometedor para a história do gênero.

Em nenhum outro campo, a distinção entre os sexos mantém-se tão fortemente caracterizada. Carece, entretanto, de investigação nas teorias feministas o status jurídico da mulher no discurso penal, cuja ambigüidade é expressa na relação entre sujeito de direitos e objeto de proteção. Continuam obscuros, portanto, os limites entre a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal e a proteção de um status

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estatal, produto de uma lógica subjacente a um paternalismo generalizado determinado pelo gênero.

Valendo-se de uma abordagem interdisciplinar a transitar por vários campos das ciências humanas (Direito, Criminologia, Lingüística, Antropologia, Psicanálise e Sociologia), propõe-se, por meio desta pesquisa, erigir a problemática da mulher em relação ao poder sancionador do Estado. Busca-se, assim, entender a relação da mulher com o Direito Penal, evidenciando, num primeiro momento, a trajetória histórica do moderno saber penal enquanto instrumental teórico e empírico do sistema penal contemporâneo.

Trata-se de demonstrar as bases fundacionais no marco do Estado moderno, da nova teoria penal, definindo o âmbito, os instrumentos e a função do Direito Penal, as promessas do seu discurso, o seu déficit de realização e a crise de sua legitimidade. Significa compreender o discurso jurídico-penal em seu sentido amplo, as verdades declaradas, seus efeitos de poder. Essa incursão se revela não um fim em si mesmo, mas um instrumento de análise para inserir a categoria de gênero no estudo do Direito Penal, objeto desta pesquisa.

Entende-se que discutir a problemática da mulher em relação ao poder sancionar do Estado é, primeiramente, questionar a estrutura da teoria penal em nível de discurso hegemônico. É nessa perspectiva que se definiu a questão metodológica vertebral orientando a proposta desta pesquisa. Parte-se, portanto, da análise dos processos

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históricos de constituição da dogmática penal para compreender no referido processo as relações de poder que formam sujeitos e domínios de conhecimento, num pressuposto que a historicidade dos fatos sociais consiste fundamentalmente na explicação da multiplicidade de determinações fundamentais e secundárias que os produzem.

Num segundo espaço, para efeitos de inserir a categoria de gênero no estudo do Direito Penal, estar-se-á evidenciando os discursos filosófico e científicos do século XIX que, associados aos discursos jurídico, político e religioso, configuram estratégias ou técnicas criadoras de gênero, pronunciam e legitimam os papéis políticos e sociais na sociedade burguesa oitocentista, segundo os atributos naturais correspondentes ao homem e à mulher. Trata-se de uma análise dos saberes a partir das condições políticas de possibilidade dos discursos, uma vez que esses se fundam no plano dialético da realidade social e na natureza intersubjetiva de sua apreensão.

Toma-se por referência o século XIX, tendo em vista que representa um marco temporal significativo para análise da categoria de gênero no Direito Penal contemporâneo, uma vez que configura o campo cultural o qual melhor exprime a modernidade1, constituindo-se um período de particular significação na fixação de identidades, em termos reais, ideológicos e simbólicos.

1 O termo “modernidade” não está sendo empregado aqui enquanto relativo à Idade Moderna, período que se estende de 1453 à Revolução Francesa. Toma-se o vocábulo num sentido mais amplo, significando o campo cultural, político e econômico que se delineou na Europa com o desenvolvimento do capitalismo.

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De outra parte, enquanto reflexo da ciência positivista e da consolidação do Estado de Direito na Europa, representa no interior do Direito um momento de maior refinamento e concretude de categorias relevantes e sujeitos jurídicos. A inferioridade da mulher é inscrita no texto legal com detalhes mais sutis e de forma mais polarizada, fixando mais rigorosamente o gênero, estimulando as mulheres a assumir essas identidades.

Delimita-se, assim, o campo teórico no interior do qual se discutirá a relação da mulher com o sistema penal na contemporaneidade: o impacto do discurso jurídico-penal, na modalidade lei, doutrina e jurisprudência, no status de sujeito da mulher e na fixação de identidades. Por isso, a importância em assinalar o ideal de gênero com o qual opera o sistema penal, os componentes político-ideológicos que determinam o seu discurso sobre a mulher, marcando a sua práxis.

Valorar o patriarcado sustentado pelo Direito Penal requer considerar como o discurso jurídico-penal não apenas tem gênero, mas como ele funciona, também, na produção discursiva de mulher (enquanto oposição ao homem) e na construção discursiva de determinados tipos de mulher. Esse pressuposto permite transpor o sentido negativo do Direito Penal, os seus efeitos de poder em termos negativos e pensá-lo na sua forma de produzir discurso, verdades e subjetividades, perspectiva assinala por Michel Foucault e que constitui uma das fontes epistemológicas orientando este estudo.

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Uma vez que ser mulher já não é mais um fator de discriminação nas práticas institucionais ou no acesso à justiça, corresponder a determinados estereótipos impregnados de valores patriarcais torna-se critério relevante na orientação das decisões judiciais. Esse aspecto leva a outro ponto da discussão a que se propõe esta pesquisa: elucidar, além da violência do Estado constitucional burguês, a violência estrutural das relações de gênero no interior do sistema penal.

Situa-se, nesses contornos, o terceiro momento do estudo apresentado que irá assinalar ainda os paradoxos e as contradições decorrentes das reivindicações feministas na arena penal. O que as mulheres buscam com as suas demandas na arena penal? Quais as concepções simbólico-ideológicas subjacentes no conteúdo de suas demandas?

Vislumbrar qualquer perspectiva de rompimento com o paradigma patriarcal inscrito no sistema penal implica considerar as questões assinaladas e importa a tomada de uma nova posição da mulher enquanto sujeito reivindicante. É nesses termos que se apresenta a hipótese assinalada por este estudo.

Aponta-se, também, para uma maior concentração das lutas feministas no campo da positividade jurídica e em outros meios alternativos, áreas mais sintonizadas com a causa das mulheres e que terão alcance indireto na arena penal. Isso implica, incontestavelmente, numa maior participação das mulheres nos espaços de debate e decisão política.

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Os aspectos acima apresentados serão evidenciados a partir de uma análise teórica, valendo-se do método indutivo e tendo por instrumento a pesquisa bibliográfica empreendia para este estudo. Observa-se, ainda, que as traduções feitas no texto de autores estrangeiros, cujas obras não apresentam tradução na Língua Portuguesa, são de responsabilidade da mestranda.

O objetivo maior é contribuir para uma discussão acadêmica capaz de orientar as políticas criminais, as políticas públicas voltadas à mulher e para uma desconstrução do pensamento e da prática judiciária. Por conseguinte, configura, também, um momento ímpar de pensar e refletir sobre os imperativos, demandas e desafios que se apresentam à mulher do século XXI.

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1 SITEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

1.1 A Genealogia2 do Moderno3 Saber Penal

A teoria do moderno Direito Penal originou-se no marco histórico do Iluminismo4, rompendo com os fundamentos da prática punitiva do Antigo Regime5, caracterizada pela obscuridade das leis, pelo despotismo e pela crueldade das penas impostas.

2Para Michel Foucault, a genealogia espreita os acontecimentos tidos como sem história no anseio de reencontrar o momento em que ainda não aconteceram. É a procura dos começos históricos, indica as verdades ainda não verdadeiras.O genealogista trata da proveniência, do lugar onde os acontecimentos são acasos e não causalidades; ele faz descobrir “que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. [...] A história é efetiva se genealógica”. In: NICOLAZZI, Fernando F. As histórias de

Michel Foucault. [texto], Curitiba, 2001. Disponível em:< http://klepsidra.net/klepsidra12/foucault.html>. Acesso

em: 28 jan. 2005.

3Em contraponto ao saber contemporâneo. Período de tempo entre a queda do Império Romamo do Oriente (1453) e a Revolução Francesa (1789).

4Corrente de pensamento afirmando que as leis naturais regulam as relações sociais e considera os homens naturalmente bons e iguais entre si – quem os corrompe é a sociedade. Defende a igualdade social e jurídica, a liberdade individual, a não-intervenção estatal na economia e a separação de poderes. Ocorre entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). Tem como principais idealizadores John Locke, Charles Montesquieu, François-Marie Voltaire e Jean-Jacques Rousseau. In: PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da filosofia. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964, p. 283-294.

5Regime político que predominava na França antes da Revolução Francesa, caracterizado pela centralização do poder monárquico. Aléxis de Tocqueville (1805-1859) foi um dos primeiros pensadores sociais do século XIX a se interessar seriamente com o problema da burguesia. Escreveu sobre o background (pano de fundo, origem) da Revolução Francesa na obra O Antigo Regime e a Revolução (1856), na qual enfatiza o fato de que, entre as condições as quais criaram o caráter específico da Revolução Francesa, estava a centralização quase contínua da administração política que vinha ocorrendo naquele país desde o fim da Idade Média. In: NISBET, Robert. Os

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Começava a ser delineada uma política criminal inspirada nos princípios da filosofia política liberal clássica, um discurso crítico desenvolvido em diversos países europeus durante o século XVIII.6

Além da Filosofia do Direito Penal, o novo saber penal tem suas bases fundacionais na Filosofia da Ciência do Direito Penal7, inscrevendo um segundo momento da Escola Clássica8, o qual se estende até meados do século XIX9, quando a

sua matriz teórica passa a ser orientada pela Dogmática Penal10 e pela Criminologia11, desenvolvidas na esteira do pensamento positivista.12

6 BARATTA. Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 31-32.

7Conforme Eduardo Rabenhorst, a Filosofia do Direito Penal é assim chamada porque nasceu da reflexão filosófica e diferentemente das ciências, se apóia na prática de questionar e submeter conceitos e idéias ao teste de bons argumentos. In: MEDEIROS, Cristina C. S. Filosofia ou teoria do direito. Recife: UFPE, 200?, p. 1. Disponível em:<http://cristianemarinho.vilabol.uol.com.br/11.html>. Acesso em 11 fev. 2005. Já a Filosofia da Ciência do Direito Penal é derivada da consciência crítica do homem moderno sobre o problema penal como problema filosófico e jurídico, detentora de método próprio e caráter dogmático. É, portanto, a passagem de uma concepção filosófica para uma concepção jurídica, mas filosoficamente fundamentada. In: BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. 1, p. 81.

8Denominação cunhada em 1880 por Henrique Ferri para designar o pensamento dos doutrinadores de diversos países europeus que adotaram os ideais do Iluminismo e os instrumentaram no ramo das ciências jurídicas. Muito mais do que um bloco homogêneo de concepções, caracteriza-se pela sua unidade ideológica e seu método lógico-abstrato e não experimental, próprio das ciências naturais. Para essa escola, crime não e um ente de fato, mas entidade jurídica; não é uma ação, mas infração. É a violação de um direito. São precursores da Escola Clássica o inglês Jeremias Bentham (1748-1832), o alemão Anselmo von Feuerbach (1775-1833), o italiano Gian Domenico Romagnosi (1761-1835), contudo o maior expoente foi, sem dúvida, o mestre de Pisa, Francesco Carrara (1805-1888). In: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 1990, v. 1, p. 41-42.

9 Idem.

10Ciência normativa que tem por objeto as normas jurídico-penais e por método o técnico-jurídico (dedutivo). In: MANNHEIN, Hermann. Criminologia comparada. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1985. v. 1, p. 10. 11Ciência causal-explicativa do fenômeno da criminalidade que nasce na esteira do pensamento positivista. 12

Movimento naturalista do século XVIII o qual pregava a supremacia da investigação experimental em oposição à indagação puramente racional, influenciando fortemente a teoria do Direito Penal. É marcado pelo predomínio do pensamento filosófico de Augusto Comte (1798-1857), defensor da idéia de que todo saber do mundo físico advinha de fenômenos "positivos" (reais) da experiência, constituindo esses os únicos objetos de investigação do conhecimento. In: MIRABETE. Op. cit., p. 42.

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A epistemologia13 aludida inscreve a moderna ciência do Direito Penal como instrumental técnico da justiça penal vigente, orientando a teoria e a práxis das agências que compõem o sistema penal (normas jurídicas, judiciário, aparelhos da polícia e penitenciário), por conseguinte, é esse o saber que produz o novo discurso jurídico-penal14 enquanto instrumento de controle social, caracterizado pela prática de valores específicos marcados pela ambigüidade: se por um lado o discurso declarado é humanista e garantidor, por outro, oculta a sua relação com o poder e a dominação.

Percorrer a trajetória histórica do moderno discurso jurídico-penal, originado na Europa, mas que fortemente influenciou as legislações dos países latino- americanos, é assinalar a vontade que o conduz e a intenção estratégica que o sustenta, num pressuposto de que o Direito, enquanto produto histórico, configura, também, uma manifestação das relações de poder.

Ao analisar as relações entre direito e poder, Michel Foucault15 sustenta que, nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se

13É uma filosofia voltada para o estudo da ciência (do grego epistheme = conhecimento, ciência, e logoV = estudo, discurso). É usada em dois sentidos: para indicar o estudo da origem e do valor do conhecimento humano em geral e nesse sentido é sinônimo de gnosiologia ou crítica; ou para significar o estudo das ciências (físicas e humanas), dos princípios sobre o qual se fundam, dos critérios de verificação e de verdade, do valor dos sistemas científicos. In: MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 2-3.

14Discurso jurídico-penal toma o sentido neste estudo de “saber penal”, “dogmática penal”, ou ciência do Direito Penal.

15Paul-Michel Foucault, francês nascido em 15 de outubro de 1926, filho de Anna Malapert e Paul Foucault. Pertencia a uma família onde a Medicina era tradição: o pai, o avô paterno e materno foram cirurgiões. Desde cedo demonstrou interesse pela história, voltando-se depois para a Filosofia, decepcionando o pai, embora fosse apoiado pela mãe. Conviveu com os tormentos da segunda Guerra Mundial, quando se mudou para Paris e iniciou seus estudos na École Normale da Rue d'Ulm. Era solitário e fechado, apresentando pouco interesse pelo contato social. Talvez por isso tenha desenvolvido tão fortemente a ironia, uma das suas características mais marcantes. Em 1948, tentou suicídio. Essa experiência o colocou em contato com a psiquiatria, psicologia e psicanálise, o que marcou profundamente a sua obra. Foi leitor de Platão, Georg W. Hegel, Immanuel Kant, Karl Marx, Friedrich Nietzsche,

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fez essencialmente em torno de poder real. Segundo o autor, “é a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento de justificação que o edifício jurídico de nossa sociedade foi elaborado”16, lembrando que essa construção teve como pilar o Direito Romano, cuja ressurreição no século XII significou efetivamente um dos instrumentos técnicos e constitutivos do poder monárquico autoritário, administrativo e absolutista.

Consoante o autor, é do poder real que se discute nos grandes edifícios do pensamento e do saber jurídico: como forma de legitimar o poder do soberano, ou mais tarde, para questionar seus limites e seus privilégios. “A teoria do Direito, da Idade Média em diante, tem essencialmente o papel de fixar a legitimidade do poder; isto é, o problema maior em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o da soberania”.17

Edmund Husserl, Martin Heidegger, Sigmund Freud, Gaston Bachelard, Jacques Lacan, dentre outros, se aprofundando nos estudos de Immanuel Kant. Admitia a influência de Martin Heidegger em sua obra, chegando a afirmar: "Todo o meu devir filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger". Influenciado também por Friedrich Nietzsche, por quem se apaixonou, e por Gaston Bachelard. Fez amizade com Louis Althusser, aderindo ao partido comunista. Licenciou-se em Filosofia em 1948, e em Psicologia, em 1949. Também obteve o diploma de Psicologia Patológica, em 1952. Lecionou Psicologia e Filosofia em universidades da Alemanha, Suécia, Tunísia e EUA. Trabalhou como psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Escreveu para diversos jornais. Viajou o mundo apresentando conferências. Em 1955, foi morar na Suécia, onde conheceu Georges Dumézil. Esse contato foi importante para a evolução do seu pensamento. Conviveu com intelectualidades de sua época, como Jean-Paul Sartre, Jean Genet, Georges Canguilhem, Gilles Deleuze, Merlau-Ponty, Henri Ey, Jacques Lacan, Ludwig Binswanger. Em 1961, defendeu tese de Doutorado, intitulada "Loucura e Desrazão". Publicou várias obras, dentre elas: Doença Mental e Psicologia (1954); As Palavras e as Coisas (1966); A Arqueologia do Saber (1969); A Ordem do Discurso (1970); Vigiar e Punir (1977); O Cuidado de Si - História da Sexualidade III (1984). Michel Foucault faleceu no dia 25 de junho de 1984, em plena produção intelectual. Seu pensamento pode ser localizado como parte do debate sobre modernidade, onde a razão iluminista ocupa o local de destaque. In: NICOLAZZI. Op. cit., p. 2-3. 16FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 180. 17 Idem, p. 181.

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O criminoso, “que mais tarde se tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e transformar, o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas – ‘penitenciárias’, ‘criminológicas’”18, aparece na época das Luzes, não como tema de um saber positivo, ou como objeção contra a barbárie dos suplícios, mas sim a “economia dos castigos” coloca o homem como limite do direito, era fazer com que o “poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórios da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente distribuídos do poder público”.19

Para Michel Foucault, durante todo o século XVIII formou-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. As teorias do direito significaram uma retomada política ou filosófica dessa estratégia, tendo como principal objetivo fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coexistente à sociedade. Era punir com mais universalidade, inserindo mais profundamente no corpo social o poder de punir.20 Portanto, a humanidade ou a suavidade dos castigos, se por um lado assumiam

o significado de limitar o poder real, por outro estavam fortemente articuladas com novos mecanismos de poder que começavam a se configurar no limiar do sistema capitalista.

Em sua análise sobre a relação entre poder e Direito, o autor introduz um terceiro elemento: a produção da verdade. O poder é o exercido através da produção de

18 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 64. 19Idem, p. 69.

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verdades. É o poder que interroga, indaga, registra e institucionaliza a busca da verdade. De outra parte, observa que essa verdade é que determina o conteúdo da lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos do poder.

O que Michel Foucault propõe é uma inversão na direção da análise do discurso do Direito como forma de fazer sobressair o fato da dominação que o constitui; suas relações, não de soberania, mas das múltiplas formas de dominação que podem ser exercidas numa sociedade. Sugere, para a compreensão do Direito como instrumento de dominação21 e como técnica de sujeição polimorfa22, a análise, não a partir da soberania em seu edifício único ou central, mas das múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social.

Segundo o autor, o poder deve ser analisado como algo que circula, como algo que só funciona em cadeia, já que o poder não se aplica aos indivíduos, apenas passa por eles. Cada indivíduo é centro de transmissão do poder, está sempre em posição de o exercer ou sofrer a sua ação. Nesse sentido, afirma: “efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos

21Para Foucault, dominação toma o sentido, não de uma dominação global de uns sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas sim as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. “Portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social”. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do

poder, p. 181.

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Ao se entregar à ideologia, o sujeito realiza, de forma aparentemente livre, seu próprio processo de sujeição, estando sujeito a mudar de personalidade ou assumir várias formas (polimorfa), porque os AIEs (escola, família, exército, sociedade, etc.) transmitem modelos, para melhor manejar essa sujeição. In: ALTHUSSER, Louis.

Aparelhos ideológicos do estado. Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro:

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enquanto indivíduos é um dos seus primeiros efeitos de poder”.23 O indivíduo, pois, não é o outro do poder, é um dos seus primeiros efeitos24. “O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constitui”.25

É nessa perspectiva que será registrada neste capítulo a trajetória de constituição do moderno saber penal. Não se trata de uma análise descendente (dedutiva), partindo do processo central do poder para evidenciar os seus efeitos na construção do discurso penal. É antes um estudo analítico, cujo objetivo será assinalar como os vários poderes (econômico, político, científico, sempre considerados no interior da dinâmica social) concorrem na configuração do moderno e do contemporâneo saber penal e como este, enquanto poder disciplinador e mecanismo de controle social do Estado, com suas técnicas e táticas próprias, torna-se útil no processo de ascensão do capitalismo, na conformação do poder político e do poder do Estado, e sobremaneira, considerando agora o objeto deste estudo, como o saber penal interage na sua relação com a mulher enquanto estratégia de sujeição e de regulação do comportamento

23FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p. 183.

24Nas relações de poder e dominação, a sujeição do indivíduo não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia, há um “saber” do corpo, uma tecnologia política do corpo que é posta em jogo pelos aparelhos e instituições que, pelos seus mecanismos e efeitos, atuam como uma microfísica do poder, colocando o sujeito em um nível diferente. Não concebe o poder como uma propriedade, mas como uma estratégia, cujos efeitos de dominação não são atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos. Assim, na direção contrária do verdadeiro de sua época, em que psicanalistas e historiadores viam o poder a partir de uma acepção jurídica e negativa, que expulsa, reprime, proíbe e esconde a possibilidade de o sujeito se constituir, se manifestar, Michel Foucault concebe o poder como uma técnica-estratégica-positiva, na qual antes de reprimir a subjetivação, ele define papéis, modela os indivíduos e produz, portanto, subjetividades. In: FOUCAULT, Michel.

Vigiar e punir, p. 25-27.

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feminino, criando e recriando estereótipos os quais traduzem a condição da mulher no evoluir da história26.

Essa questão remete ao problema central do estudo aqui proposto: a natureza jurídica do Direito Penal é, por excelência, da negatividadade e da repressividade, entretanto o poder nele inscrito não é somente repressivo, produz discurso. Esse, por sua vez, legitima a lógica seletiva com que opera o sistema penal e dá sustentabilidade, ainda, a um paradigma masculino que, de sua manifesta função de proteção, a sua função latente e efetiva de subordinação e inferiorização da mulher, funciona como um suporte e dispositivo institucional impedindo o pleno reconhecimento dos direitos de liberdade, autonomia e igualdade das mulheres.

Pergunta-se, por conseguinte, o que as mulheres buscam através de suas reivindicações na arena penal? Quais as conquistas que serão efetivamente alcançadas por meio de suas demandas criminalizadoras? Em que medida deve o Estado intervir nas relações privadas? E, ainda, quais as perspectivas para o rompimento da matriz patriarcal em que se assenta o Direito Penal, condição para tornar o sistema penal um instrumento de luta em prol de um modelo cultural no qual os atributos do masculino e do feminino sejam mais do que meras emanações de relações de poder?

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1.1.1 A Reforma do Século XVIII: Um Direito Penal Legitimado pelo Contrato Social

O marco inicial do Direto Penal contemporâneo2728, originado na Europa e transnacionalizado aos países periféricos da América Latina, remonta à reforma penal do século XVIII, simbolizada na obra Dei Delitti e Delle Pene (1764), de Cesare Beccaria. No âmbito do Estado, é marcada pela passagem da ordem feudal e do Estado Absolutista (Antigo Regime) para a ordem capitalista e o Estado de Direito Liberal29 na Europa.

27A expressão Direito Penal contemporâneo quer significar o Direito Penal atual, cujas bases teóricas remontam ao Direito Penal moderno. Autores como K. F. Hommel, na Alemanha; Pablo Anselmo von Feuerbach e Jeremías Bentham, na Inglaterra; Gaetano Filangieri, Giovanni Carmignani e Giandoménico Romagnosi na Itália, entre outros, foram propagadores das bases utilitaristas a que se vincula o progresso de sistemas penais de nítido matiz preventivo. As diretrizes conceituais e pragmáticas por eles traçadas serviram de fundamento à obra que inicia o Direito Penal contemporâneo e planta marco indicativo de uma importante linha de pensamento no curso do Direito Penal clássico. In: SOUSA, Daniel B. R. Diretrizes axiológicas e políticas para a pena criminal. Revista da Escola de Direito, Universidade Católica de Pelotas, v. 2, n. 1, jan./dez. 2001, p. 37. Disponível em: <http://www.ucpel.tche.br/ direito/revista/diretrizes.doc>. Acesso em 3 fev. 2005.

28 Estudos recentes referem que Cesare Beccaria ao publicar obra Dei delitti e delle pene em 1764, fundou o direito penal contemporâneo. In: WEIS, Carlos. Aumentar as penas inibe a criminalidade? Folha de S. Paulo, 11.11.2000. Disponível em:<http://www.suigeneris. pro.br/direito_dp_inibir.htm>.Acesso em 13 fev 2005. Certamente, as idéias filosóficas e teorias da redistribuição desde Immanuel Kant e Georg W. Hegel, e da prevenção – Cesare Beccaria, Gaetano Filangieri, Giovanni Carmignani, Pablo A. Von Feuerbach, Giandoménico Romagnosi – culminaram com alterações no Direito Penal no período histórico, desencadeando a formação de novos valores da ação indivíduo social. Portanto, assim como o Direito Penal moderno se prolonga e cimenta-se no contemporâneo, é de se supor que o Direito Penal contemporâneo aparece nesse período (por exemplo, medidas de segurança) como uma primeira tentativa de atenuar as imperfeições do sistema penal de bases retributivas.

29O “Estado de Direito Liberal” marca uma segunda etapa do Estado Moderno, simbolizando o fim do regime feudal e do poder monárquico. Estrutura-se sobre os princípios da legalidade, igualdade e separação de poderes, todos objetivando assegurar a proteção dos direitos individuais, nas relações entre particulares e entre estes e o Estado. O papel do Direito era o de garantir as liberdades individuais, já que se proclamava, com base no direito natural, serem os cidadãos dotados de direitos fundamentais, universais e inalienáveis. O Estado de Direito Liberal, embora idealizado para proteger as liberdades individuais, acabou por gerar profundas desigualdades sociais, provocando reações em busca da defesa dos direitos sociais do cidadão.

(27)

De cunho mais filosófico-sociológico do que jurídico, a teoria do pensador italiano propõe um sistema de normas jurídicas que restaurasse a dignidade do indivíduo e o seu direito em face do Estado, imprimindo um caráter humanitário à teoria penal.

Cesare Beccaria30 fundamenta o direito de punir do Estado no contrato social, concepção abstrata e ideológica de sociedade entendida como uma totalidade de indivíduos, valores e interesses; teoria defendida por Thomas Hobbes31 e que está na

origem do Estado. As leis, segundo Beccaria, não foram suficientes para a garantia das partes de liberdades sacrificadas pelos atores sociais em prol da vida em sociedade e da segurança do Estado. Era preciso, afirma, protegê-las contra a usurpação de cada particular, “pois a tendência do homem é tão forte para o despotismo, que ele procura incessantemente, não só retirar da massa comum a sua parte de liberdade, como também usurpar a dos outros”32. Seriam necessários meios sensíveis e muito poderosos para sufocar esse espírito despótico. Nesse sentido, sublinha Alessandro Baratta33, para Beccaria, o dano social e a defesa social são os elementos fundamentais da teoria do delito e da teoria da pena.

30

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 19-22. 31 Filósofo inglês do século XVII, fundador da filosofia moral e política inglesa. Em o Leviatã (1651), primeira versão completa da comunidade política absoluta na Idade Moderna, descreve o governo dos Tudors, que haviam transformado a Inglaterra no governo político mais centralizado da Europa, dando ao Estado a mais completa concepção de nacionalidade e cidadania, e também criando a única ordem social, em todo o Ocidente, onde todas as subordinações competitivas – aristocracia, Igreja, guilda, mosteiro, Universidade e comunidade local - haviam sido subjugadas. Em suas teorias, afirma que os homens, no estado da natureza, eram inimigos uns dos outros e viviam em guerra permanente. E como toda guerra termina com a vitória dos mais fortes, o Estado surgiu como resultado dessa vitória, sendo uma organização de grupos dominantes para manter o domínio sobre os vencidos. Essa teoria da força apóia-se aparentemente nos fatos históricos: no processo da formação originária dos estados quase sempre houve luta; a guerra foi, em geral, o princípio criador dos povos. Todo Estado representa, por sua natureza, uma organização e dominação. In: NISBET. Op. cit., p. 144-153.

32BECCARIA. Op. cit., p. 19. 33BARATTA. Op. cit., p. 33.

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A soberania da nação está no cerne de toda a construção da teoria penal de Cesare Beccaria. O soberano, encarregado pelas leis como depositário das liberdades sacrificadas pelo bem geral, estava incumbido de fazer as leis gerais, as quais todos deveriam obedecer, ficando o julgamento de quem as violasse a cargo do magistrado, ao qual caberia apenas aplicar a lei dentro de um silogismo perfeito. Não era esse, pois, intérprete da lei, o legítimo intérprete era o soberano, representante da sociedade e depositário das vontades atuais de todos. “Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se fizer por sua conta, tudo se torna incerto e obscuro”, sentencia o filósofo.34

Com as leis penais cumpridas à letra, era possível a qualquer cidadão calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável e isso, segundo o autor, poderia fazer com que se desviasse do crime, visto que a sua teoria considera a ação delituosa como uma escolha objetiva e consciente de quem a comete.

O tratado de Beccaria estabelece importantes fundamentos para a consagração do Princípio da Legalidade: apenas as leis poderiam dizer o que é crime e definir as suas penas. Já o direito de estabelecer as leis pertencia à pessoa do legislador, representante de sociedade enquanto contrato social, que se opunha ao anterior estado

de natureza35. O método dedutivo de lógica abstrata, ou o silogismo perfeito, era a

34BECCARIA. Op. cit., p. 22. 35

No estado de natureza, todos os homens viviam sem estarem sujeitos a qualquer lei. Por isso viviam em caráter supostamente solitário, em condições caracterizadas por constante medo, pela guerra e pela mais profunda insegurança, pois a luta de uns contra os outros era constante. Como uma solução ao instável estado natural em que viviam os homens, ou seja, da compreensão do homem como um ser que deseja o poder, como uma forma incessante de sobrevivência, Thomas Hobbes infere a essência do Estado como uma entidade que é composta pela soma dos

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garantia contra as arbitrariedades e impunha os limites do poder de punir em face das liberdades individuais.

1.1.2 O Direito Penal sob o Paradigma da Racionalidade Científica

A transição da antiga36 para a moderna justiça penal nasce imbricada a um novo modelo de Estado, às novas descobertas das ciências, que imprimiram à vida moderna a marca da racionalidade, fundada no princípio cartesiano37. Michel Foucault observa que essa transição foi marcada por um deslocamento do objeto e dos objetivos na estratégia de punir: “do corpo para a mente, da minimização dos custos econômico e político para a maximização da eficácia”38.

vários poderes individuais dos homens em sociedade. É neste momento que se dá a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade, quando o individual é sobredeterminado pelo coletivo. Essa realização foi possível através de dois princípios básicos à psicologia do homem: o desejo – instinto – e a razão. O que o pensador denomina lei natural, no que concerne ao homem, é a relação que ele estabelece entre o desejo egoísta ou seu instinto de conservação e a razão inata, pois mesmo em seu caráter pré-social, presume-se, ele conseguiu antever as vantagens da soberania e da associação política absoluta, cujo resultado foi um contrato social, do qual surgiu a comunidade política absoluta: o Leviatã. In: NISBET. Op. cit., p. 147-148.

36 Refere à justiça tradicional, praticada principalmente na França, no período anterior à Revolução Francesa, pois na expressão de Foucault, o que os reformadores em seu discurso crítico atacam na justiça tradicional, antes de estabelecer os princípios de uma nova penalidade, é o excesso de castigo, mais ligado a uma irregularidade que a um abuso do poder de punir. Em virtude disso, “a 24 de março de 1790, Thouret abre na Constituinte a discussão sobre a nova organização do poder judiciário”. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, p. 67.

37Renée Descartes (1596-1650) formalizou radicalmente a dicotomia corpo-alma ao contrapor o modelo anatômico (corpo, organismo humano) ao modelo metafísico (alma, natureza humana). Encerra o Eu na imanência do cogito, ou seja, o Eu de Descartes é somente um Eu pensante. Excluindo do Eu o sentir e o agir, fragmenta o homem, dividindo-o em dois princípios distintos – o corpo e a alma. Em conseqüência disso, os fatos psíquicos e fisiológicos começaram a ser estudados e abordados separadamente. Essa concepção do corpo como prisão da alma defende a necessidade de mortificar o corpo para purificar a alma a fim de evitar que aquele seja um obstáculo à realização do ideal platônico de Bem e de Verdade (a afetividade e a corporeidade como empecilhos ao exercício espontâneo do ato moral). In: ROCHA, Demerval Florêncio da. A corporeidade no processo de educação em saúde: um ensaio bibliográfico. [2003]. Disponível em: <http://www.filosofiabarata.com.br/artigos/artigos_corporeidade.htm>. Acesso em 10 de fev. 2005.

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Essa estratégia estava inscrita, segundo o autor, num processo mais amplo e geral de disciplina do corpo, fundamentado no grande livro O Homem-máquina39, cujas primeiras páginas foram escritas por Descartes40 dentro de uma concepção anátomo-metafísica e que seria continuado por médicos e filósofos. Esse processo foi efetivado a partir de uma estratégia técnico-política, constituída de um conjunto de regulamentos militares, escolares e hospitalares, e por mecanismos empíricos e reflexivos para controlar e corrigir as operações do corpo.

Também observa que essas técnicas ou estratégias não visam ao cuidado do corpo como se ele fosse uma massa indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; “de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez [...]”41.

A disciplina, como uma mecânica do poder no século XVIII, já não se fundamenta mais na relação de apropriação dos corpos, como na época da escravidão;

39A obra de Julien Offroy de la Mettrie (1709-1751), com o título original L´Homme Machine (1747), apresenta uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento (FOUCAULT, Idem, p. 118) ao sustentar que “a alma é apenas um termo vão sem qualquer significado. Concluamos então audaciosamente que o homem é uma máquina”. In: CHANGEUX, J-P. O homem neuronal. Trad. Artur J. P. Monteiro. Lisboa: Dom Quixote, 1991, p. 47.

40

Em sua obra Discurso do Método (1637), Reneé Descates fundiu suas idéias metafísicas com suas pesquisas científicas, fazendo a introdução de três ensaios científicos: a Dioptrique, o Méteores e a Geométrie. No entendimento de Ana Maria Silva, em Descartes, corpo humano é do domínio da natureza, o corpo é puramente corpo, assim como a alma é puramente alma, princípio que autoriza a razão e a ciência, como sua instituição, a conhecer e dominar o corpo humano, tarefas que serão exacerbadas na atualidade. Ao separar radicalmente as dimensões corpo e alma, a perspectiva cartesiana reforça a idéia de funcionamento corporal independente da idéia de essência, como uma maquinaria que atua com princípios mecânicos próprios. O funcionamento do corpo por esses parâmetros é reproduzido detalhadamente por Descartes em seu Discurso do método (penúltimo capítulo ou quinta parte), a partir da obra Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628), de Willian Harvey, fisiologista do início do século XVII, de quem difere por recusar qualquer recurso às “qualidades ocultas” ou interrelações com a alma, fazendo uma descrição da circulação do sangue de forma estritamente mecânica. In: SILVA, Ana Maria. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade racional. Cadernos

Codes, Florianópolis, ano 19, n. 4 S, ago. 1999, p. 12.

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nem nos padrões da domesticidade, da vassalidade ou do ascetismo, é antes “uma arte do corpo humano, que visa não unicamente as suas habilidades, nem tão pouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente”.42 O corpo humano, continua o autor, “entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”43. A disciplina fabrica corpos submissos, exercitados, “dóceis’“, aumentando a sua força (em termos econômicos de utilidade) e diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).

Ainda conforme Michel Foucault44, durante o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, forma-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar, configurando um movimento de reação contra o poder do soberano e a prática do suplício como meio de punição. Seria também uma reação às ilegalidades toleradas durante o Antigo Regime45 no interior de cada estrato social. Significou o nascimento de

uma nova política contra tais ilegalidades, tendo como principal fim a defesa dos interesses da emergente classe burguesa que, na mesma esteira dos diretos civis, buscava assegurar pelo viés do Direito Penal o seu direito de propriedade.

42

Idem, p. 119. 43 Idem, ibidem. 44 Idem, p. 66-70.

45 Com o fim do Antigo Regime pela Revolução Francesa (1789 a 1799), o processo revolucionário vive três fases: (1) A fase da Assembléia Nacional (1789-1792) sob o domínio da alta burguesia, instituindo o Novo Regime, (Constituição de 1791), notabilizado pela monarquia constitucional e pela garantia da propriedade privada; (2) A fase da Convenção Nacional (1792-1795), que marca o término da monarquia e a proclamação da república, em setembro de 1792 – tendo por destaque o conflito entre girondinos e jacobinos; (3) A fase do Diretório (1795-1799), instituindo no comando da alta burguesia que anulou as conquistas populares para viabilizar um governo liberal. No entanto, essa nova ordem sofreu internamente a oposição jacobina e, externamente, os ataques das potências absolutistas européias. Com a Constituição de 13 de dezembro de 1799, que institui uma nova ordem jurídica e marca início do período napolênico, se encerra o ciclo revolucionário iniciado em 1789. A construção da base da nova sociedade completa-se com a promulgação do Código Napoleônico em 1804. In: SIEYÈS, Emmanuel Joseph.

(32)

Nesse sentido, observa o autor, os novos textos legais, embora impunham limitações precisas ao poder de punir do soberano, tornavam-se, de certa forma, mais pesados, o que acabou por implicar um exercício mais “apertado” e mais “meticuloso” da justiça que tende a levar em conta toda uma pequena delinqüência (principalmente as ilegalidades populares sobre os bens) que até antão escapavam aos olhos da lei.

Nascia, então, uma justiça penal mais atenta ao corpo social, numa adaptação e harmonia dos instrumentos criados para vigiar o comportamento cotidiano das pessoas: identidade, atividades e gestos aparentemente sem consequências para o Estado. Esse controle sobre o comportamento humano atribuiu nova importância ao espaço privado, em que a família passa a ser alvo dos olhos do poder estatal.46 Com a criação dos Tribunais de Família, na França, em 1790, parte do controle anteriormente exercido pela Igreja por meio da confissão passa ao poder do Estado, uma vez que as famílias recorriam cada vez mais à justiça como forma de resolver os seus conflitos internos.

Com a intimidade da família desnudada pelos Tribunais de Família, a esfera pública passa a ter, inclusive, um rigoroso controle sobre a sexualidade dos homens, mulheres e crianças, ou como afirma Michel Foucault, “O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos. No século XVIII o sexo se torna uma questão de ‘polícia’ “.47

46 Aspecto que será analisado no capítulo 2.

47FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade. Trad., Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 11.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 29.

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Observa-se que a nova teoria do Direito Penal é gestada no cerne do Iluminismo, do cientificismo, da ascensão do capitalismo como modo de produção e da instituição do Estado liberal, ou seja, está circunscrita num novo modelo social, político e econômico norteado pelo paradigma da racionalidade individual e coletiva.

Era o advento da modernidade, projeto sociocultural que emerge entre o século XVI e final do século XVIII na Europa, materializando-se, porém, na trajetória do século XIX, com a expansão do capitalismo e a consolidação da democracia48. No dizer de Boaventura de Sousa Santos49, trata-se de um projeto ambicioso pela magnitude de suas promessas: justiça, autonomia, solidariedade, identidade e igualdade. A lógica e a racionalidade construídas para a realização de algumas de suas promessas levaram ao déficit de outras, apontando para a contradição do processo.

A crise e a decadência do feudalismo, entre os séculos XI e XV50, assinalando a

perda da influência da concepção teológica de mundo e de sociedade, são

48Antes do término do século XIX, as monarquias mais significativas da Europa Ocidental haviam adotado uma Constituição que limitava o poder real e entregava uma parte do poder ao povo. Em muitos países, foi instituído um corpo legislativo representativo criado à semelhança do Parlamento britânico. É possível, portanto, que a política britânica tenha sido a maior influência na universalização da democracia, embora tenha sido igualmente grande o fascínio exercido pela Revolução Francesa. Posteriormente, o êxito da consolidação das instituições democráticas nos Estados Unidos serviu como modelo para muitos povos. As principais características da democracia moderna são a liberdade individual, a igualdade perante a lei, o sufrágio universal e a educação. Na verdade, a democracia se consolidou na Europa no pós-guerra através da aplicação de um conceito restrito de soberania. Esse período, denominado de segunda onda de democratização, vai de 1943 a 1962, e foi altamente bem sucedido em relação à implantação e à consolidação da democracia na Europa de forma bastante similar à prescrição feita por Schumpeter. Na medida em que as elites políticas aderem ao sistema de representação política, o acesso dos mais qualificados às posições de liderança torna-se garantida. In: SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialism, and democracy. Nova Iorque/Londres: Harper & Brothers, 1942, p. 280.

49

SANTOS, Boaventura de Souza. La Transición Postmoderna: Derecho y Política. Cuadernos de Filosofia del

Derecho, Alicante, n. 6, p. 223-263, 1989.

50A crise do feudalismo surgiu nos século XI e se estende até o século XIV, período caracterizado como a Baixa Idade Média, em que surgiram os elementos desencadeadores da decadência do feudalismo: crescimento demográfico, produtividade insuficiente dos feudos e a marginalização social do excedente populacional. A crise

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acompanhadas de uma nova postura epistemológica acerca do Estado, do Direito e da própria natureza humana. Segundo Darcísio Corrêa51, o Estado passa a ser visto pelos pensadores da época como uma necessidade radical de sobrevivência humana, criado com base nos princípios do voluntarismo e do individualismo. O Direito Positivo, assinala o autor, surge como um produto cultural, resultado de convenções humanas, marcando a passagem do “universo natural”, estado natural, predominante, até então, para o “universo cultural”, o estado civil ou político.

Nesse sentido, assinala Michel Foucault, o Século das Luzes significou “o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada, enfim, da natureza na ordem científica”52. Significaria a recusa de um sujeito submetido à lógica divina. Nascia o ideal de autonomia, da emancipação individual, um dos valores da cultura ocidental que privilegia a responsabilidade subjetiva dos indivíduos. Era o homem como projeto e produto de um novo saber, implicando novas convicções, configurando novas relações de poder, formas de organização e regulação da vida social.

Na mesma esteira, encontra-se o pensamento de Richard Sennett53, segundo o

qual, na medida em que a ordem capitalista se afasta da ordem feudal, ocorre a

final do feudalismo ocorreu nos séculos XIV e XV, caracterizada pela fome, peste negra e a Guerra dos Cem Anos. In: SILVA, Joaquim; DAMASCO PENNA, J. B. História geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p. 166-195.

51

CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico políticas. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2002. 52FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchaill. 8.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.75.

53SENNETT, Richard. O declínio do homem público. Tradução de Lyigia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 191-192.

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passagem de uma natureza transcendental para uma natureza fenomenológica. O que não significa o fim dos credos religiosos, mas o fim de uma era onde a perfeição divina explicava a ordem do mundo. “Não somos uma era especial quanto a nossas inclinações científicas e racionalistas; nossa peculiaridade está apenas no fato de que nossa ciência é usada como inimiga da idolatria”54, afirma e lembrando que, a partir do século XIX, as crenças se tornaram cada vez mais concentradas na vida imediata do próprio homem e nas suas experiências como uma definição de tudo aquilo que se pode crer. “Como os deuses estão desmistificados, o homem mistifica a sua própria condição [...]”.55

É nesse campo que a personalidade (impressões imediatas que as pessoas produzem sobre si) ganha relevância. “Uma pessoa é o que parece”, observa Richard Sennett. Uma vez desaparecida uma humanidade comum, a variação nas aparências pessoais passa a ser imputada à instabilidade da própria personalidade.

A personalidade, fundada no mundo das aparências e no caráter natural, laço que perpassa toda a espécie humana, são as duas categorias que melhor simbolizam a estrutura do sujeito moderno, afirma Maria Rita Kehl. “Assim, o sujeito é responsável por tudo que aparenta, pois é daí que uma verdade sobre ele vai se revelar”56. Ou, ainda, como sustenta Richard Sennett, a personalidade, ao contrário do caráter individual (natural), é controlada pela autoconsciência. Assim, a única forma de controle

54Idem, p. 192. 55Idem, Ibidem.

56KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998, p. 51.

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estaria na atenção constante dada à formulação daquilo que a pessoa sente ou no senso de controle do eu.

Isso acaba por criar um profundo antagonismo entre os imperativos de liberdade e autonomia e as convenções sociais. O indivíduo público deveria mostrar rigoroso controle de suas emoções. O sentimento espontâneo, isto é, a manifestação de emoções era facilmente classificada como anormal.

Boaventura de Sousa Santos57, referindo-se ao projeto da modernidade, fala de um pretenso equilíbrio entre “emancipação humana” e “regulação”. A emancipação lança os Direitos Humanos como um dos pilares da modernidade: indivíduos livres e iguais perante a lei e com garantia de direitos fundamentais. Já o Estado aparece como componente fundamental do pilar da regulação, constituindo-se esse como próprio princípio do Estado. Do desenvolvimento harmonioso e da dinâmica das relações entre emancipação e regulação, é que dependeria a realização das promessas da modernidade.

Esse é o campo simbólico em que se estrutura o novo saber penal, sistematizado no interior da Escola Clássica, fruto do seu tempo e condicionada a uma influência de fatores históricos e teóricos que imprimiram significado ao seu programa, determinando os princípios e fundamentos do novo Direito Penal.

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1.1.3 Escola Clássica: O Crime é uma Ação de Livre Arbítrio

Reunindo as teorias desenvolvidas por diversos autores europeus sobre o Direito Penal, o crime e a pena, a teoria da Escola Clássica é assinalado por uma rigorosa racionalização do poder punitivo do Estado, em nome das liberdades individuais, o que leva à projeção, segundo Vera Regina de Andrade58, de uma justiça penal calcada nos princípios do Estado liberal, dentro de uma perspectiva “humanista”, “utilitarista” e “contratualmente modelada”, elevando o crime à categoria de ente jurídico rigorosamente codificado, assim como a pena imposta numa promessa de segurança jurídica individual para a modernidade.

As idéias do Direito Penal moderno constituíam, antes de tudo, uma reação contra os vícios da legislação anterior, obscura, de caráter inquisitivo e tirânico, “possibilitando a arbitrária e desigual aplicação da lei conforme a condição social do acusado”59. A justiça do Antigo Regime60, assinala a autora, “atentava, em todos os sentidos, contra a certeza do Direito e a segurança individual”61.

58ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 49- 50.

59 Idem, p.49.

60O Antigo Regime, nesta dissertação, é visto como o conjunto de características sociais, políticas, econômicas e culturais dominantes nas sociedades européias na Idade Média, tendo na França o modelo mais acabado de centralização do poder. Enquanto a nobreza e o clero tinham privilégios fiscais, justiça especial, direito a caçar e a exigir obrigações feudais dos camponeses, o resto da população (baixo clero, artesãos, camponeses) estava sujeito a longas jornadas de trabalho, opressão dos impostos, obrigações feudais, dízimos, corvéia (trabalho gratuito), intolerância religiosa e toda espécie de injustiças (torturas, pena de morte, expropriação). É um período (basicamente de 1620 e 1807) permeado por revoluções camponesas e urbanas que obstacularizam o desenvolvimento econômico. O Iluminismo surge no século XVII pregando a igualdade, tolerância religiosa, liberdade e propriedade, indo ao encontro das aspirações da burguesia. O Estado forte utilizava o conflito para exercer seu domínio. O Antigo Regime foi iníquo em muitos aspectos, mas também foi uma experiência de sociabilidade em que política e afeto, poder e prazer, honra e glória caminhavam juntos. Os indivíduos formavam a sociedade, mesmo em seu despreparo político, o que foi aproveitado pelas idéias iluministas, que forneceram o respaldo ideológico para os que queriam modernizar

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A nova justiça penal também expressava a necessidade de equilibrar o poder centralizado (princípio da regulação) com a subjetividade atomizada dos indivíduos livres e iguais perante a lei (princípio da emancipação). Significava uniformização e previsibilidade das decisões, abstraindo toda a arbitrariedade, garantindo, além da segurança jurídica, a justiça nas decisões. Legalidade (nullun crimem nulla poena sine

lege) igualdade, proporcionalidade, utilidade são princípios os quais a Escola Clássica

imprime no Direito Penal, que segundo Asúa, torna-se um “sistema dogmático baseado sobre conceitos essencialmente racionalistas”.62

Para Vera Regina de Andrade, a teoria penal moderna recebe um “caráter demonstrativo de um sistema fechado, que deve legitimar-se perante a razão, mediante a exatidão matemática e a concatenação lógica de suas proposições”.63 Assentada num hipotético contrato social, situado acima e fora da história, o Direito Penal moderno assume uma mentalidade anti-historicista, ou então, o Direito não é visto como um produto social e sim como uma unidade ideológica.

Por outro lado, o crime seria também uma ação humana, consciente e voluntária, pois parte do livre arbítrio do seu autor. A responsabilidade penal decorre, pois, da

as instituições, os déspotas esclarecidos. A Revolução Francesa (1789), mais que destruir o Antigo Regime, opera sua continuidade, ao criar uma nova ideologia, submetendo o povo à estruturas estranhas. O povo aspirava liberdade e igualdade, a Revolução acenou-lhe esses direitos, mas subverteu-os, utilizando-os em benefício próprio. A política volta-se para a administração pública, e os homens para seus interesses mesquinhos, instaurando-se uma distância entre os homens, ricos e pobres, suas esperanças, seus silêncios, teoria e prática. Nesse novo arranjo, na qual a história é o tribunal, começaram a ser praticadas as idéias de justiça de Beccaria (1764) e de outros filósofos, que combateram os rigores e injustiças do Direito Penal da época. In: BRUNO, Anibal. Op. cit., p. 80-96; BECCARIA, Cesare. Op. cit.; ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1994.

61ANDRADE. Op. cit., p. 49.

62Jiminez de Asúa, escritor espanhol, em sua obra clássica Tratado de Derecho Penal. In: ANDRADE. Idem, p. 48. 63 Idem, p. 52.

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violação consciente e voluntária da norma penal. O novo saber penal, pois, defende que cada indivíduo é capaz de entender o valor ético-social de sua conduta e de determinar-se para a sua própria ação. Contempla a responsabilidade moral do sujeito, sendo o delito um ato de sua livre vontade.

O fundamento da responsabilidade penal (culpabilidade) estava no livre-arbítrio de cada indivíduo, na sua responsabilidade moral, na sua capacidade de autodeterminar-se. É nesse sentido que a categoria da “personalidade” referida por Richard Sennett é incorporada ao fundamento da responsabilidade penal.64O Direito Penal institucionaliza, assim, a máxima do princípio iluminista da supremacia da razão e da concepção mecanicista do homem e do universo.

Nessa perspectiva, considera Andrade, numa atmosfera política liberal, preocupada em fixar claramente os limites da intervenção estatal e num ambiente especulativo com ênfase na supremacia, nas possibilidades e nas exigências da razão humana, o crime acaba por ser considerado como um “ente jurídico” porque “ente da razão”, dada a fonte racionalista de toda a norma jurídica.65

Conceber o delito como um ente jurídico, no dizer de Alessandro Baratta66,

significa abstrair o fato do delito, ou do contexto ontológico que o liga. Ou dito de outra

64SENNETT. Op. cit., p. 192. 65Idem, p. 54.

Referências

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