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O Mito do Direito Penal Igualitário e sua Lógica de Exclusão e

1 SISTEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA

1.3 O Mito do Direito Penal Igualitário e sua Lógica de Exclusão e

Se as teorias apresentadas possibilitam identificar os postulados dando sustentabilidade ao sistema penal contemporâneo, é oportuno ainda, dentro do quadro referencial geral dos mecanismos de controle social formal (Direito Penal), assinalar, embora sumariamente, o impacto desse controle no sistema social num sentido amplo, evidenciando as falsas promessas do discurso jurídico-penal e sua crise de legitimidade.

Esse enfoque se mostra relevante, uma vez que o objetivo central da pesquisa é erigir a problemática da mulher em relação ao Direito Penal. Se o Direito Penal está assentado, primeiramente, num paradigma capitalista104 cujos mecanismos de controle

103 Idem, ibidem.

104É representado pela emergência do capitalismo enquanto modo de produção dominante nos países da Europa, surgido no contexto do paradigma cultural da modernidade. In: SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1996. p. 76. O paradigma capitalista emerge relacionado ao primeiro grande paradigma estatal - o Estado de Direito ou Estado Moderno - que surgiu no séc. XVIII e se caracterizava pela mínima intervenção do Estado. In: SILVEIRA, José de Deus Luongo da (org.). A ética e a crise da modernidade. Disponível em:< http://www.via-rs.com.br/pessoais/joseluongo/etica.htm>. Acesso em 20 jan. 2005. O modelo liberal de Estado encontrou em John Locke, defensor do liberalismo político, seu primeiro grande teórico. Vivendo em um período de afirmação e ascensão da burguesia, John Locke foi quem apresentou os pressupostos teóricos que fundamentaram a política do Estado limitado, não absolutista, agradando a burguesia que, inspirada nos valores iluministasdo século XVIII, buscava mais espaço para suas atividades comerciais. Looke condenou o absolutismo monárquico, atribuindo ao Estado a função de defender o direito à liberdade individual do cidadão e o direito à propriedade. Nesse acordo, a figura do Estado surge para garantir, fundamentalmente, esses direitos naturais dos indivíduos. Os homens que fundam o Estado são, na doutrina lockeana, os proprietários, e o Estado passa a existir para a defesa de suas propriedades. Ainda no século XVIII, com Adam Smith, emergirá o liberalismo econômico. Em seu famoso livro

Ensaio Sobre a Riqueza das Nações (1776), critica a política intervencionista do Estado na economia. Para esse autor, a vida econômica deveria ser dirigida pelo "jogo livre da oferta e da procura", isto é, o próprio mercado se encarregaria de gerir (laissez-faire) as relações econômicas através da livre iniciativa dos particulares. O "mercado", portanto, ficaria no centro da vida econômica. Essas teorias deram a base necessária para o capitalismo emergente na Europa se sustentar e se desenvolver, indo doravante se caracterizar pela busca incessante do lucro, expansão de

agem seletivamente revelando a ineficácia de sua função declarada e a eficácia de sua função latente, em se tratando da questão da mulher105, essa realidade assume um duplo sentido, pois, além da matriz capitalista, incide sobre a mulher a concepção patriarcal que está no centro do edifício penal, entendido como um sistema dinâmico de funções compreendendo a produção da norma, sua aplicação e execução. Ou dito de outra forma, o sistema penal está inscrito no interior de um processo mais amplo da dinâmica do poder de produção capitalista106, isto é, poder de acumulação e de mais-

valia.

É vasta a literatura enfocando a “crise” do atual sistema penal a partir de uma perspectiva da criminologia contemporânea, assentada no paradigma da “reação social”, segundo o qual, considera-se a criminalidade como “um status atribuído a certos indivíduos mediante um duplo processo: a ‘definição’ legal de crime e a ‘seleção’ que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam

mercado, relações produtivas assalariadas e um exército de desempregados. In: ALMEIDA, Jerri Roberto S. As faces

do liberalismo. Disponível em:< http://www.litoralnorters.com.br/cafefilosofico/2004/index1907.htm>. Acesso em

19 abr. 2005.

105 Esse ponto será examinado no capítulo 3.

106 Um conceito de poder e de poder capitalista pode ser visualizado em Antônio C. Wolkmer, segundo o qual, o conceito de poder tem sido usado para interpretar as mais variadas relações que se espalham pelo corpo social, ou seja, desde a família e a escola até as relações entre as classes sociais e o poder do Estado. Na sua caracterização, o poder pode ser impulsionado pela força física representada pelos aparatos institucionalizados que fazem valer suas decisões ou pela legitimidade fundada no consenso, advinda da maior parte de seus integrantes e enquanto coerção resulta da força e da violência. Nas reflexões de Michel Foucault, o discurso jurídico ocidental tem se projetado, desde a Idade Média, como espaço de legitimação do poder. Defendendo uma idéia positiva de poder, ele considera que o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia. A eficácia do poder está diretamente vinculada a uma estrutura jurídica que disciplina e consagra o exercício da propriedade, do contrato, da herança, assegurando a reprodução das relações sociais de produção. Admitindo-se as proposições de Nicos Poulantzas, a estrutura jurídica capitalista desempenha as funções de regular e definir os limites de poder do Estado. O Direito organiza o poder do lado das classes dominantes e também do lado das classes dominadas ao assegurar a impossibilidade do seu acesso ao poder. Assim, processa-se o controle social. A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida por todo Estado. “O Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência [...]. A lei é, nesse sentido, o código da violência pública organizada”, no entendimento de Poulantzas. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 73-77.

tais condutas”107. Essa tese encontra sua maior expressão na obra de Howard Becker, o qual concebe a criminalidade como um processo de interação entre a ação e reação social (controle social). O pensamento de Becker contrapõe-se veemente à natureza ontológica da criminalidade. Sua tese significa o deslocamento da investigação das causas do crime: do autor e de seu meio, e do fato-crime, para a reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal, considera Andrade.108

O objetivo deste estudo não é adentrar nesse amplo debate da teoria sociológica central ou da criminologia da reação social, fontes teóricas que apontam para a deslegitimação dos sistemas penais e dos discursos que os sustentam, mas discutir alguns aspectos que se mostram relevantes no sentido de assinalar a lógica de exclusão e seletividade do sistema penal como parte das “engrenagens” do processo de poder. Partir dessa perspectiva do funcionamento geral do sistema penal, é fundamental para a compreensão dos efeitos do Direito Penal, por meio de seu aparato jurídico e institucional, sobre a condição da mulher, conforme já aludido anteriormente.

Observa-se que, neste estudo, a palavra crise toma a perspectiva, não de um conflito que enseja a ruptura de uma tradição e a suplantação de modelos e verdades, o que levaria à superação da contradição entre as funções declaradas no discurso jurídico-penal e à realidade operacional do sistema, abrindo espaço para a construção de novos paradigmas, culminando na instituição e legitimação de uma nova ordem, mas

107ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum, p. 29.

emprega-se a palavra crise no sentido de referir-se, como observa Eugênio Raul Zaffaroni, “a uma brusca aceleração do descrédito do discurso jurídico-penal e a realidade operacional do sistema penal”.109 Segundo o autor, o atual momento de crise do sistema alcança tal magnitude de evidência, ou então, a falsidade do discurso jurídico-penal torna-se tão evidente a ponto de desconcertar o próprio sistema.

Eugênio Zaffaroni concebe o sistema penal como uma complexa manifestação do poder social.110 Poder aqui compreendido não como algo que se “tem”, mas como algo que se exerce, se transmite; perspectiva foucaultiana aludida em outro momento deste estudo. No entender de Zaffaroni, o sistema penal quis mostrar-se como um exercício de poder planejado racionalmente com base numa utópica legitimidade explicada pelo seu discurso jurídico-penal. O discurso jurídico-penal seria racional, segundo ele, se fosse coerente e verdadeiro. Seria coerente se não fosse contraditório, seria verdadeiro se apresentasse uma adequação mínima conforme sua planificação111.

Além de falso, o discurso penal também é perverso, pois exercita um poder que oculta ou perturba a percepção do verdadeiro exercício de poder.

Ainda segundo o autor, em regiões periféricas, como as da América Latina, a racionalidade do discurso jurídico-penal torna-se absolutamente insustentável, uma vez que não cumpre nenhum dos requisitos da legitimidade, tornando ilegítimo o exercício

109

ZAFFARONI. Op.cit., p. 15. 110 Idem, p. 16.

111Zaffaroni fala em dois níveis de verdade, um abstrato e outro concreto. O nível abstrato compreende “a adequação do meio ao fim, ao passo que o nível ‘concreto’ poderia denominar-se adequação operativa mínima conforme

de poder dos órgãos dos sistemas penais. Essa falta de legitimidade, no dizer do autor, não será suprida pela legalidade, tomada tanto na acepção positivista ou formal da palavra, isso é, a produção de normas mediante processos previamente fixados e como a pluralidade semântica da expressão: o exercício do sistema de acordo com a programação legislativa. Esse exercício, defende Eugênio Zaffaroni, compreende tanto a legalidade penal quanto a legalidade processual. Aquela corresponde ao exercício do poder punitivo do sistema penal segundo os seus limites, esta, por sua vez, seria a exigência de que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar “todos os autores de ações típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam de acordo com certas pautas detalhadamente explicitadas”112.

No entanto, uma leitura atenta das leis penais permite comprovar que a própria

lei renuncia a legalidade e que o discurso jurídico-penal (saber penal) parece não

perceber tal fato. Para Zaffaroni, através da minimização jurídica, reserva-se ao discurso jurídico-penal, supostamente, os injustos graves; através da

administrativização, considera-se fora do discurso jurídico-penal as institucionalizações

manicomiais, inclusive as dispostas pelo próprio órgão judicial; através da tutela são excluídas do discurso jurídico-penal as institucionalizações dos menores; através do

assistencialismo afasta-se totalmente do discurso penal a institucionalização dos

anciões.113

112 Idem, p. 21. 113 Idem, p. 22.

É nesta aparente exclusão que reside um dos aspectos de maior violência do discurso jurídico-penal, pois se trata de indivíduos submetidos à institucionalização, aprisionamento e marcas estigmatizantes autorizadas e prescritas por leis semelhantes ou até piores do que as normas diretamente abrangidas pelo discurso jurídico-penal, possibilitando, no dizer de Zaffaroni, enormes esferas de exercício arbitrário do poder.

O verdadeiro e real poder do sistema penal não é o poder mediado pelo órgão judicial. “O poder não é mera repressão (não é algo negativo); pelo contrário, seu exercício mais importante é positivo, configurador, sendo a repressão punitiva apenas um limite ao exercício de poder“.114

Esse poder configurador da vida social não se limita, portanto, aos órgãos executivos do sistema penal ou à sua discricionariedade legalmente outorgada. Esses órgãos atuam na execução, recrutamento e reforço de outras agências ou instâncias institucionais configuradoras cujo poder é explicado por discursos diferentes, embora com recursos análogos ao aprisionamento, seqüestro e estigmatização.

Assim, os órgãos penais ocupam-se em selecionar e recrutar ou em reforçar e garantir o recrutamento de desertores ou candidatos a instituições tais como manicômios, asilos, quartéis e até hospitais e escolas (em outras épocas conventos). Esse poder também se exerce seletivamente, de forma idêntica à que, em geral, é

exercido por todo o sistema penal.115 Ou então, o maior poder do sistema penal atua sobre os setores mais “carentes da população e sobre alguns dissidentes (ou ‘diferentes’) mais incômodos ou significativos”116, operando de forma camuflada e impedindo que seja percebido, em nível consciente ou em toda a sua magnitude. Se, por um lado, as pessoas mais vulneráveis ao sistema penal não sentem nenhum temor quando esse aparece sob a forma de repressão, por outro, também são os setores carentes e “dissidentes incômodos” que mais sofrem os efeitos do seu poder camuflado, por meio do controle e da vigilância dos espaços e pela interiorização dessa vigilância por grande parte da população, processo em que os meios de comunicação, e até mesmo a escola, a família exercem forte influência, defende Eugênio Zaffaroni.117

Segundo Andrade118, o sistema penal não realiza o processo de criminalização e estigmatização à margem ou contra os processos gerais de etiquetamento, os quais têm lugar no seio do controle social informal, como a família (o filho estigmatizado como ovelha negra), a escola (o aluno rotulado como “difícil” pelo professor) e os meios de comunicação.

Ainda quanto à legalidade do sistema penal, Eugênio Zaffaroni observa que essa não é respeitada nem mesmo no âmbito do sistema formal. “A estrutura de qualquer sistema penal faz com que jamais se possa respeitar a legalidade processual”119. Ou

115 Idem, p. 23. 116

Idem, p. 24. 117 Idem, ibidem.

118 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum, p. 29.

então, a seletividade estrutural do sistema penal só pode exercer seu poder repressivo em um número insignificante das hipóteses de intervenção planificadas. A disparidade entre o exercício do poder programado e a capacidade operativa do sistema é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada do discurso jurídico-penal. O sistema penal “está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e sim, para que exerça seu poder com alto grau de arbitrariedade seletiva, dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis”120.

Nesse sentido, os órgãos legislativos, com a criação de novos tipos penais, na pretensão de um maior exercício controlador, nada mais fazem do que aumentar o arbítrio do sistema penal. Volta-se nesse ponto, ao objeto principal da pesquisa. Se a tipificação de novas condutas em nada irá contribuir para uma maior eficácia operativa do sistema penal, o que então os movimentos femininos buscam na arena penal através de suas demandas criminalizadoras? Além da lógica seletiva do sistema, os tipos penais são portadores de elementos valorativos moralistas, os quais atuam fortemente, no caso da mulher, na (re)criação de estereótipos femininos.

Eugênio Zaffaroni, embora não se referindo à questão específica da mulher, sustenta que o sistema penal atua sempre seletivamente e de acordo com os estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa, que não se limitam a proporcionar uma falsa imagem da realidade, mas fabricam, isto é, produzem a própria realidade. “Estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam

com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinqüentes (delinqüência de colarinho branco, dourada, de trânsito, etc.)”.121

Volta-se aqui à teoria lombrosiana, ou ao discurso racista-biologista, a qual, segundo o autor, é o verdadeiro modelo ideológico para o controle social nos países periféricos que, pela falta de um discurso próprio, sempre reproduziram os discursos centrais, ainda que contraditórios e confusos. A analogia entre os delinqüentes centrais (minoria considerada segundo sua inferioridade biológica) e o selvagem (a totalidade das populações colonizadas), é a que serve de modelo ainda hoje à descrição fabricada da criminalidade, não excluindo nem a criança, nem o ancião e nem a mulher, cuja analogia tem por base a suposta incapacidade de racionalizar destas categorias.

De outra parte, essa estereotipação também toma forma na pessoa da vítima. Em se considerando a questão da mulher, uma vítima mulher pobre, negra e “feia”, por exemplo, de “conceito” duvidoso, terá poucas chances de sair vitoriosa num processo cujo perfil do acusado corresponda a um sujeito branco, honesto e trabalhador122.

E como último aspecto a ser considerado acerca da crise de legitimidade em que se encontra mergulhado o discurso jurídico-penal, cabe ainda lembrar os poderes expressamente ilícitos, ficando à margem de qualquer legalidade, fortemente arraigados nos órgãos executivos do sistema penal. Esse poder ganha maior expressão nas atividades de extorsão, homicídios, torturas e corrupção cometidas pelas agências

121Idem, p. 130.

executivas do sistema penal ou por seus funcionários. Essa ilegalidade, que está além daquela planificada pelo sistema, viola declaradamente os princípios mais elementares dos direitos humanos.

Longe de se pretender esgotar aqui a análise do assunto até agora apresentado, visto que a explanação do quadro teórico apontando para a deslegitimação do discurso jurídico-penal ou para o seu empobrecimento filosófico permitindo que sobrevivesse no seu interior a concepções de homem ou de antropologias filosóficas anacrônicas, há décadas banidas de outras áreas do pensamento, tomaria o espaço de um estudo à parte. Também não se analisarão aqui, as correntes teóricas, tanto as dos países centrais quanto às da América Latina, que procuram dar uma resposta ou uma alternativa à crise de legitimidade do atual sistema penal ou do discurso jurídico-penal. Isso estaria fora dos propósitos da presente pesquisa.

As linhas gerais sumariamente enfocadas permitem, no entanto, introduzir a discussão que será apresentada no terceiro capítulo, abordando, na seqüência, isto é, no capítulo segundo, a questão do discurso enquanto estratégia criadora de gênero.

2 O DISCURSO ENQUANTO ESTRATÉGIA CRIADORA DE GÊNERO123