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Capítulo 2: Ferreira de Castro e A Selva

2.2. Acerca das Personagens

2.2.4. Firmino

Firmino é caraterizado como um cearense mestiço, rosto comprido, dentes brancos de olhos acastanhados pretos, cabelos encaracolados303, a cabeça coberta com seu chapéu de

palha, tipo artesanato de nomenclatura “capeline”, com sua vestimenta digno do seringal, botas compostas de borrachas adequadas para o seringal304. Esteve no seringal seis anos antes

da chegada de Alberto ao Paraíso. Como tantos outros, estiveram no seringal motivados pelo sonho de riqueza fácil, não concretizado. Estabeleceu uma profunda relação de amizade com Alberto no seringal. É importante referir que no romance há muitas paisagens que ilustram a profunda amizade entre os dois seringueiros. Mas selecionaremos apenas alguns dada a extensão. Assim, Firmino tendo recebido Alberto, procurou sempre integrá-lo no seringal Paraíso. O cearense foi solidário com o seu novo companheiro, ao emprestar-lhe a sua vestimenta apropriada ao seringal, ao ensinar-lhe a arte de pescar, os principais segredos para se triunfar no seringal e ao expor-lhe as técnicas de extração do látex:

-Olhe, seu Alberto. Tira-se a tigelinha assim… Quando está alta, com cuidado para o leite não cair em cima do nariz…. Depois se derrame no galão. Está vendo? Mete-se dentro a ponta do dedo-assim-e se dá uma volta no fundo para tirar todo leite. Quando se acaba, se metem as tigelinhas uma nas outras e se põem todas de boca para baixo, em cima deste pau, como estavam quando nós viemos cortar. Compreendeu? -Compreendi. Obrigado305.

A citação mostra o Firmino a ensinar as primeiras técnicas de extração do látex ao Alberto. O cearense ensinou o português a arte de cortar a árvore sem arrancar a casca e tirar o leite para a produção da borracha. A chegada de Firmino ao seringal foi numa época em que a exploração da borracha estava estável:

Quando cheguei ao seringal, ainda a borracha se comprava a dez e a doze mil-réis. -Então muita gente enriquecia…

Se comprava a doze mil-réis, mas era seu Juca. A nós, ele dava cinco. Mesmo assim, houve negro que arranjou saldo306.

Firmino empenhou-se em instruir Alberto e ambos suportaram o sofrimento a que eram expostos no seringal. Mesmo assim, esses eram banalizados com uma vida dura no Paraíso. A forma como se relacionava com Alberto era num espírito de humildade, paciência e de

302Ferreira de Castro, A Selva, p. 246. 303 Ibidem, p. 154.

304 Caraterísticas extraídas do Filme A Selva do realizador Leonel Vieira, apresentada por costa do

Castelo Filmes, S.A, 2002. Disponível na Biblioteca UBI. [Consult. Em 2017.11.09].

305 Ferreira de Castro, Op., Cit., p. 94. 306 Ibidem, p. 95.

81 familiaridade, consciente de que a vida no seringal era cada vez mais difícil, e predominavam nele a relutância e o sonho de abandonar o cativeiro selvático e voltar à sua terra natal a ver a sua família:

(…) Minha mãe morreu o ano passado. (…)

- Eu gostava dela! Era uma velha boa, o que se pode dizer boa! E o que mais me custa é que eu ouvia sempre as palavras que ela me disse quando saía para estes sítios: «Meu filho: até ao Dia de Juízo! Nunca mais te vejo!» (…). Desde que vim para o seringal,

nunca vi a cor do dinheiro… Também tive um irmão. Não sei se é vivo, se morreu307.

Apesar de ter revelado ao Alberto sobre a morte de sua mãe; a atenção de Firmino não recaia apenas no Alberto, mas sim também no trabalho sobretudo na paciência que dava ao Alberto dada as dificuldades que este apresentava no seu novo cosmos. Ao fim da tarde, Firmino e Alberto, às vezes para se distraírem, tentavam pescar com um acordo mútuo “ao embarcar na canoa, feita de velho tronco, cavado ao centro, afirmara que se pescavam vários peixes saborosos naquela podridão”308. Realçamos que a forma como Alberto se integrava ao

barracão começava a mudar o seu posicionamento em relação ao patrão e ao seu amigo. Assim, o sentimento de dignidade de Alberto refletia o sentimento de superioridade e de poder diante do patrão e de seu amigo. Nos tempos livres, Firmino incansavelmente com Alberto, participavam nas festas no seringal:

Alberto compreendeu que Firmino só não fora bailar também para não o deixar sozinho.

-Por que não vai?

-Depois…. Tenho tempo. E seu Alberto não dança? -Eu, não, mas vá você. Por mim, não deixe de ir309.

No seringal para além da principal atividade, eram organizadas festas e noite adentro consumiam a “chicha e cachaça”310 que deixavam os seringueiros na esperança e vã de dias

melhores. Após Juca Tristão ter selecionado Alberto para o escritório, amizade entre Firmino e este esvaiu-se um tanto:

-Agora vão ficar, lá no centro, duas estradas sem seringueiras… Alberto estremeceu. Sim, era verdade, dali em diante Firmino seria a única existência humana na claridade de Todos-os-Santos. Noites e dias a sós consigo, sepultado na solidão, sem ninguém que o distraísse, sem ninguém partilhando a mesma vida, os mesmos perigos, sozinho e remoendo sempre os mesmos pensamentos, em condena e persistência de doido varrido311.

A citação acima mostra a tristeza de Firmino aquando o seu companheiro foi promovido para trabalhar no escritório. Firmino sentia-se sozinho, imaginava as estradas em que percorriam, os perigos que corriam, as práticas que tinham na extração do látex, a arte de pescar. Tudo isso resultou numa imensa solidão do cearense, sem ninguém para conversar, para partilhar a mesma vida e para distrair-se. A barraca tinha para Alberto um sentido de responsabilidade pela incumbência que lhe fora atribuída. Alberto sentia o seu espírito calmo

307 Ferreira de Castro, A Selva, p.95.

308 CASTRIANA, nº4, Estudos sobre Ferreira de Castro e a sua geração, p. 29.

309 Ibidem, p. 128.

310 Bebida típica do seringal. Muito utilizado pelos seringueiros. 311 Ibidem, p. 152.

82 pela mudança de funções e a esperança de dias melhores. Por outro lado, a ligação entre os dois se torna cada vez mais distante devido a promoção de seu companheiro:

Firmino ajudou-o depois, na luz turva do amanhecer, a pôr a mala sobre o boi. E, quando tudo ficou pronto, abriu os braços e rompeu a chorar.

-É para seu bem seu Alberto, mas eu tenho pena de ficar sem você…

-Também eu, Firmino! - E abraçou-o, confundindo com as dele as suas lágrimas fraternais312.

A relação entre os dois companheiros foi uma rotina habitual, visível na uniformização dos hábitos, que de certo modo veio abalar Firmino quando imaginava os bons momentos passados com o português. E com a partida deste de Todos-os-Santos, Firmino ficou mais isolado no seringal não conseguindo suportar aquela deportação. Firmino via a sua vida cada vez mais embrulhada, pois com quem desabafava os seus sufocos era com o português, o seu companheiro de longa caminhada. A reação foi recíproca para com o Alberto; evidentemente, ser-lhe-ia também difícil abraçar uma outra ocupação, pois o que estava em jogo no seio dos dois não era a mudança de atividade, mas sim na procura de estratégias apropriadas para poderem libertar-se do poderoso Juca Tristão, que havia muito os aprisionava no Paraíso.