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2 REVISÃO DA LITERATURA

2.3 DIABETES TIPO 2

2.3.1 Fisiopatologia

O processo patogênico que leva ao diabetes mellitus tipo 2 inicia-se por uma resistência persistente à ação da insulina acompanhada por uma hiperinsulinemia compensatória. Com o passar do tempo, as ilhotas de Langerhans perdem gradualmente sua habilidade de responder às flutuações na glicemia. Há perda na resposta pós-prandial de primeira fase de liberação da insulina e da supressão da produção hepática de glicose, o que leva a aumentos graduais nos níveis de glicemia pós-prandial, levando a intolerância à glicose. A progressiva redução na secreção de insulina e aumento da resistência em tecidos-alvos, como músculos e fígado, leva a um aumento absoluto na produção hepática de glicose. Quando essa produção excede a quantidade utilização surge a hiperglicemia ou glicemia de jejum alterada. A amplificação desse processo levará ao quadro de diabetes tipo 2 (Figura 5) 222.

Figura 5. História natural da progressão do diabetes tipo 2

Fonte: CHACRA; DAVIDSON (2005) 222

Ainda que o diabetes mellitus tipo 2 seja marcadamente caracterizado por hiperglicemia, suas disfunções metabólicas afetam também proteínas e lipídeos.

Essas alterações surgem como conseqüência de uma resistência à ação da insulina e uma resposta pancreática compensatória insuficiente. O desenvolvimento de resistência à insulina é relativamente comum e está ligado a fatores como obesidade, sedentarismo e idade, resultando em hiperglicemia, elevação da pressão arterial e dislipidemia. A ocorrência conjunta dessas disfunções é chamada de Síndrome Metabólica 223.

A insulinoresistência (IR) ocorre quando os efeitos biológicos da insulina são menores que o esperado sobre a captação da glicose pela musculatura esquelética e na supressão da produção hepática de glicose (glicogenólise e gliconeogênese). O tecido adiposo responde por apenas 5% da captação total de glicose. Assim, ainda que em pacientes com diabetes tipo 2, haja uma reconhecida IR nesse tecido, os tecidos musculares e hepático representam papel mais expressivo no desenvolvimento da hiperglicemia. Em indivíduos saudáveis, no estado pós-absortivo o fígado produz glicose na razão de 2,0 mg/kg/min. Este efluxo de glicose é essencial na manutenção das necessidades do cérebro e outros tecidos neurais, que utilizam glicose numa razão aproximada de 1,0-1,2 mg/kg/min. O cérebro não depende de insulina para captar glicose e responde por até 60% da utilização em condições de jejum. Este consumo não se altera no diabetes tipo 2. Durante a ingestão de glicose da dieta, a insulina é secretada no sistema porta favorecendo a captação de glicose pelo fígado e inibindo a produção endógena hepática. Se o fígado não estiver sensível à insulina, coexistirão duas vias de entrada de glicose no plasma, hepática e gastrointestinal, levando a hiperglicemia 224.

Em indivíduos com DM tipo 2 e hiperglicemia leve em jejum (≤140 mg/dl), o nível pós-prandial de insulina é suficiente para superar a IR hepática e manter a glicemia em níveis normais. Em indivíduos com hiperglicemia moderada em jejum (140-200 mg/dl), entretanto, a produção hepática de glicose é aumentada em aproximadamente 0,5 mg/kg/min. Assim, durante o período noturno, das 20h00 às 8h00 o fígado de um adulto diabético de 80kg, por exemplo, terá adicionado cerca de 30g de glicose em sua circulação. O aumento de produção hepática, portanto, está estreitamente relacionado à gravidade da glicemia de jejum 224. A produção endógena hepática de glicose está aumentada na intolerância à glicose e diabetes

tipo 2, ocorrendo na presença de hiperinsulinemia durante estágios iniciais da doença 195.

Os músculos são o mais importante tecido na captação da glicose mediada pela insulina. São também o principal local onde se desenvolve a IR. Em indivíduos normais um aumento fisiológico na insulina entre 80-100 µU/mL leva a um aumento progressivo na captação de glicose pela musculatura da perna até 10 mg/kg-perna/min. Em indivíduos com DM tipo 2, por outro lado, a ação da insulina é atrasada em aproximadamente 40 min e a captação reduzida em 50% 224.

A obesidade e inatividade física estão fortemente associadas ao desenvolvimento da IR por meio de diversos mecanismos de interação que envolvem hormônios circulantes, citocinas e substratos metabólicos como ácidos graxos livres (AGL) não esterificados. Os AGL são originados nos adipócitos, por meio de lipólise, e sua formação é modulada pela insulina. O aumento na massa armazenada de triglicerídeos em tecidos adiposos visceral e subcutâneo, próprio da obesidade e sobrepeso, permite que existam adipócitos de tamanho aumentado, com menor expressão de receptores para insulina, que por si só são resistentes a insulina. Isso resulta numa inabilidade de insulina em suprimir a lipólise e tem como conseqüência um aumento na concentração plasmática de AGL e glicerol. Os AGL tem o poder de agravar a IR nos músculos e fígado. O armazenamento excessivo de gordura nas células desses tecidos também contribui para o desenvolvimento da resistência a ação da insulina 195.

Os mecanismos celulares de desenvolvimento da IR são complexos e não completamente elucidados. Os efeitos da insulina são desencadeados após sua ligação com receptores específicos localizados na membrana celular. Estes efeitos incluem ativação de enzimas quinases de lipídeos e proteínas, ligadas ao aumento de transportadores de glicose na superfície da célula, síntese de glicogênio, proteínas, RNA mensageiro e DNA nuclear, os quais afetam a sobrevivência e proliferação celulares. Na IR diversos mecanismos moleculares interferem na qualidade desse processo bioquímico. Mediadores inflamatórios e produtos de adipócitos, como interleucina 6, fator de necrose tumoral (TNFα), adipocinas e ácidos graxos livres, interferem na cascata de sinais medida pela insulina prejudicando seus efeitos sobre a homeostase da glicose. No diabetes tipo 2, há diminuição na expressão de receptores para insulina e diminuição generalizada dos sinais intracelulares desencadeados por ela 225. Por outro lado, mediadores que

favorecem a ação da insulina, como a adiponectina, encontram-se reduzidos na obesidade visceral. As ações da adiponectina incluem inibição da gliconeogênese hepática, aumento da captação de glicose pelo músculo durante exercício, oxidação de ácidos graxos e inibição da lipólise 195.

A secreção de insulina encontra-se reduzida em pacientes com DM tipo 2 em todos os grupos étnicos. No início da história natural da doença, há um aumento na secreção de insulina de forma a compensar a resistência periférica e hepática. Isso ocorre enquanto o paciente apresenta uma hiperglicemia leve na faixa de 120-140 mg/dl. Entretanto a não redução da IR e suas conseqüências levam a disfunção da célula beta e conseqüente hipoinsulinemia 224. A manifestação inicial da disfunção consiste na perda da secreção de primeira fase (Figura 6), que evolui para uma perda progressiva das ilhotas pancreáticas até a necessidade de utilização de insulina no tratamento 223.

Estudos demonstram um forte componente genético de pré-disposição à disfunção das células beta. Ainda assim, vários outros fatores podem levar a disfunção (Figura 7). Entre esses, dois componentes adquiridos, a glicotoxicidade e lipotoxicidade, são principalmente responsáveis pelo declínio da função pancreática

224. Postula-se que a hiperglicemia leva à disfunção pela indução do aumento de espécies reativas de oxigênio que estimulam mediadores como o PDX-1 e NFĸB, que levam a dano celular e apoptose. Os AGL levam a aumento na secreção de insulina na exposição aguda, entretanto em períodos de exposição crônica (superiores a 24h) inibem essa secreção. Um dos mecanismos possíveis relaciona-se ao acúmulo de derivados –acetil-CoA de ácidos graxos de cadeia longa no interior da célula beta. Estes são formados a partir dos AGLs e podem diminuir a secreção insulínica pela abertura dos canais de potássio. Isso impede a despolarização das células beta, conseqüente abertura dos canais de cálcio e liberação dos grânulos de insulina. Outros mecanismos propostos incluem o aumento na síntese de proteína-2 não-acoplada ou indução de apoptose mediada por indução da síntese de ceramida ou óxido nítrico 195224.

Figura 6. Padrões de secreção de insulina em resposta a infusão contínua de glicose, mostrando a resposta normal bifásica (gráfico superior) e uma resposta típica do diabetes tipo 2 (gráfico inferior)

Fonte: SKYLER (2004) 223

Hormônios sintetizados pelo intestino após a ingestão de glicose, conhecidos como “incretinas”, também podem estar relacionados à disfunção das células beta.

Duas dessas substâncias, o “Gastric Inhibitory Polypeptide” (GIP) e o “Glucagon Like Polypeptide 1” (GLP-1), respondem por mais de 90% dos estímulos secretórios, estimulados por essa via, observados após ingestão de glicose ou alimentos. Em pacientes com diabetes tipo 2, as concentrações de GIP encontram-se normais, indicando resistência da célula beta a esse hormônio, e as de GLP-1 encontram-se reduzidas 224.

Outro mecanismo proposto consiste no acúmulo de polipeptídeo amilóide da ilhota (PAI), também conhecido por amilina, na região intersticial das ilhotas causando disfunção da célula beta. Essas substâncias são normalmente armazenadas e liberadas juntamente com os grânulos de insulina 224. Postula-se que esses pequenos agregados sejam citotóxicos e possam se unir aos AGLs. Esses depósitos são encontrados na maioria, mas não em todos os pacientes com diabetes tipo 2.

Finalmente, a redução no número de células beta das ilhotas não pode ser ignorada como fator que contribui à disfunção secretora de insulina. Em indivíduos

Secreção de insulina

Estímulo Glicose I.V.

1ª Fase 2ª Fase

Não diabéticos

Diabetes tipo 2

com diabetes avançado essa pode chegar a 20-40%. Os fatores que levam a essa perda de massa permanecem não esclarecidos, podendo estar relacionados a redução da neogênese e aumento da apoptose 224.

Figura 7. Fatores patogênicos relacionados à redução progressiva na função secretora de insulina das células beta no diabetes tipo 2.

TNFα, Fator de Necrose Tumoral α; AGL, Ácidos Graxos Livres; IR, Insulinoresistência; PAI, Polipeptídeo Amilóide da Ilhota. Fonte: DE FRONZO (2004) 224