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Fluxos para o cuidado O olhar vibrátil e o Corpo sem Órgãos

Retomemos o olhar vibrátil, que por ora nos deixou uma lacuna no subcapítulo anterior. Dissemos que para que possamos identificar a micropolítica dos processos de trabalho precisamos desenvolver nosso olhar vibrátil.

Pois bem, Rolnik (2011) nos convida a utilizar uma câmera para nos conduzir a uma cena, a de um homem e uma mulher se encontrando. Mas o que nos importa é o olhar que pode ser dirigido para qualquer cena. O fato é que ela nos diz que podemos olhar através do olho da câmera que é uma extensão dos nossos olhos nus ou através de nosso corpo vibrátil que é tocado por aquilo que é invisível. Nos afetamos nesses encontros, os corpos podem nos atrair ou repelir. Assim, um primeiro movimento do desejo é acionado. Desse primeiro movimento são gerados efeitos, uma mistura de afetos. E assim as intensidades seguem para se simularem, para se exteriorizarem.

Os movimentos das intensidades só são possíveis de serem vistos através do corpo vibrátil sensível aos efeitos do encontro dos corpos e as suas variadas reações: repulsa, atração, afetos.

A capacidade de afetação depende de nós vibrarmos nos valendo de nosso corpo vibrátil, o corpo afetivo, o Corpo sem Órgãos (CsO), conceito que Guatarri e Deleuze desenvolvem em sua obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3.

O CsO não é algo que se possa obter, não é um objeto, mas já nascemos com ele. É algo experiencial. É repleto de intensidades produzidas por ele, que passam, circulam, embora ele não seja uma estrutura, um lugar.

Deleuze e Guatarri (2012), nos dizem:

Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau — grau que corresponde às intensidades produzidas. (DELEUZE, G; GUATARRI,F., p.16, grifos do autor)

O CsO não é matéria e nem um objeto. Tão pouco é algo que se possa ter. É sempre uma dimensão em construção que faz parte do campo das experiências em que as intensidades produzem e são produzidas, e são circulantes. Para os autores o desejo está intrinsicamente ligado a ele sendo impossível desejar sem criar o CsO.

Sua criação depende de certa dose de paciência na medida em que se dá através de um conjunto de práticas e de encontros de intensidades. Todas as experiências de nossas vidas são construídas com e através desse corpo dos afetos. E sua construção se dá em meio ao movimento de desprendimento de alguns corpos e conexão com outros corpos. O CsO ocupa o espaço do “entre” nos encontros.

Poderíamos pensar que o CsO faz oposição aos órgãos biológicos. Mas não! Ao que ele se opõe é o seu funcionamento, à sua organização, entendida como uma estrutura ou sistema.

O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil.

O CsO nos possibilita a um acesso do cotidiano do trabalho que nos coloca em sintonia com os usuários, com os outros profissionais, enfim com os agentes que fazem parte do dia a dia. Essa intensidade nos leva a conexões criando linhas. Através do desejo em agenciamento nos conectamos uns com os outros operando em fluxo e tecendo nossa rede de afectos, produzindo nossa realidade social. As conexões produzidas através desses encontros criam o que Deleuze e Guatarri nomeiam de Rizoma. Para os autores, o Rizoma é um dispositivo de produção da realidade social. Através dele nos conectamos e nos desconectamos.

Enquanto campo de imanência do desejo o CsO se mostra como um plano de consistência (fluxos circulantes na relação que se estabelece entre o trabalhador e o usuário,

entre as pessoas) em que as emoções, os encontros tristes e alegres passam por ele e são dimensionados tamanha a afectação que se experienciou.

O desejo aqui é compreendido como processo de produção, nada tendo a ver com o desejo da psicanálise, aquele da falta. O desejo, segundo Franco e Galavoti (2010), faz parte do campo social, sendo produzido historicamente e é formado no inconsciente com uma energia de produção, realizando-se como uma força propulsora, que impulsiona o sujeito em movimento na construção do mundo. Os autores ainda discorrendo sobre o assunto nos dizem que não cabe na apreensão do que seja o desejo imputar juízo de valor. Pode-se desejar qualquer coisa, ainda que o senso comum classifique o desejado como bom ou ruim. O fato é que o desejo agencia os modos de existência independentemente da forma.

Deleuze e Guatarri (1972) entendem o desejo sempre agenciando, como um dispositivo que tem como capacidade disparar novos processos acionando mudanças. Assim ele está sempre negociando a produção do mundo.

Portanto, é na micropolítica que estão inseridos todos esses processos de agenciamento, desejo, linhas, e intensidades, capazes de dinamizar os serviços de saúde e criar agenciamentos para o cuidado.

Deixar-se tocar pelo próprio corpo vibrátil é criar linhas de fuga capazes de libertar os encontros das amarras que não fazem mais sentido, vivenciando um grau de liberdade e autonomia fazendo com que os agentes, usuários e trabalhadores, saiam da posição de assujeitamento e criem modos de subjetivação mais criativos.

3.5 A análise do cuidado em saúde através do fluxograma descritor como ferramenta