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5. Música Negra

5.4 O Folclore

Belo Marques aborda, como o título da sua obra indica, o “folclore tonga”128. Por

“folclore tonga”, o autor entende, de acordo com as recolhas efetuadas e dispostas no livro, as “canções” e “danças” geralmente acompanhadas de instrumentos musicais “tradicionais”. Porém, “folclore” extravasa o âmbito das práticas expressivas detentoras de tais características. Subjacente a “folclore”, em Belo Marques, encontra-se todo enquadramento conceptual, um discurso manifestamente folclorista. Por discurso folclorista entenda-se o discurso referente ao universo (“ideias, atitudes e valores”) concernente a práticas expressivas. De acordo com Castelo-Branco e Toscano (1988), os critérios subjacentes, de modo implícito, para a identificação de tais práticas, enquanto manifestações de cariz folclórico, prendem-se com ideias de autenticidade, proveniência rural, transmissão oral, criação anónima, atemporal, integração na vida de determinado grupo e resistência ao tempo (Castelo-Branco e Toscano 1988: 158), características que transparecem em várias passagens de Música Negra, em comentários e observações de Belo Marques acerca das práticas expressivas recolhidas.

128 Atualmente denominada de tsonga, refere-se a um grupo linguístico do sul de Moçambique, particularmente

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É relevante, dada algumas semelhanças no discurso entre Belo Marques e Armando Leça, mencionar alguns aspetos da obra de Leça, sobretudo considerando o gosto de Belo Marques por práticas expressivas do mundo rural, conforme já mencionado, e a ampla difusão que as ideias de Leça tiveram desde o início da década de 1920, através de conferências, periódicos e programas de rádio, ideias que acabariam por exercer forte influência sobre o processo de “folclorização” (Pestana 2010: 688). Pestana (2010) identifica na obra de Leça (1922), Da Música Portuguesa, três pressupostos que, de acordo com a autora, pautam a abordagem à “música portuguesa”, a saber, “o povo do interior do país assegura a continuidade/antiguidade da tradição musical; a canção popular portuguesa é original, distinguindo-se das suas congéneres estrangeiras pela essência de um colectivo humano; o meio exerce influência na canção popular mas apenas a nível superficial, uma vez que a diversidade entre a «canção minhota, estremenha, algarvia» é apenas aparente” (Pestana 2010: 688).

Destaco a noção de “essência”, enquanto algo próprio, algo característico de um grupo, que se encontra, sob várias formas, presente no discurso de Belo Marques. Expressa- se no modo como aborda a “música negra” ao longo da obra. Assim, por exemplo, no “3º Estudo”, escreve: “A música negra é algo mais que a Timbila ou a Ngomba. Há nesta música e no seu fundo, qualquer coisa de belo e de menos banal” (1943: 28).

Relacionada com esta noção de “essência”, encontra-se a preocupação com a tradutibilidade, com a verdade, noção transversal a todos os estudos de Música Negra, do texto de uma das canções. Belo Marques escreve: “Estas nossas palavras, a que procurarei imprimir o sentido verdadeiro, encobrem é claro, aquela verdade nua e crua com que os poetas indígenas constróem os seus versos, fortemente bárbaros mas não faltos de beleza” (ibid.: 12).

Esta ideia de verdade advém da estreita associação estabelecida entre o “povo negro” e a “Natureza”. A propósito do estudo sobre a Timbila, Belo Marques escreve:

O preto de Zavala não aprendeu música, apreendeu-a. […] A música do preto de Zavala veio-lhe das suas árvores, do seu solo, dos seus rios, das suas fontes, e ele, sem mais

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trabalho que interpretá-la, nasceu a cantar. Por isso a alma desta gente é boa, canta e canta sempre (ibid.: 34).

Mais adiante escreve:

Sentimos que há, na música negra, uma grande beleza e muito que observar, porque tôda ela tem um princípio e uma base natural. Há em tôda a música um mando único; uma forma única que êles sentem mas não podem explicar por palavras. A música negra é como uma bela pintura sôbre a tela da natureza (ibid.: 37).

Outro exemplo: “(…) no meio de grupos de velhinhos tocando Nstende129, nós

sentimos qualquer coisa de mais puro, uma não sei quê de mais doce no olhar desses indígenas” (ibid.: 43).

No “13º Estudo” lê-se, por fim, uma passagem que evoca uma abordagem folclorista muito semelhante à de Armando Leça:

Percorrer terras em busca de cantigas, escrevê-las e divulgá-las: é alguma coisa mas é muito pouco. Ao compositor compete um trabalho mais subido e mais profundo; a não ser que se satisfaça com o ser apenas um coleccionador. É pela afinação dos instrumentos populares; é pela forma como se canta e sobretudo pelo seu fundo harmónico, que se pode ajuizar do espírito, do temperamento e da alma de um povo (Marques 1943: 99).

Belo Marques, no “2º Estudo” estabelece um paralelismo entre a canção landim130

“macessa” e o “Vira”, denotando-se, mais uma vez, os moldes através dos quais o maestro aborda o “folclore tonga”:

Há uma canção que em landim se chama Macessa e é cantada em tôda a região com a mesma popularidade do «Vira» em Portugal. Conseguimos colhêr umas trinta e tantas, tôdas elas de ritmos diversos, mas de igual estrutura e vivacidade. As Macessas são geralmente cantadas e dançadas por grupos de raparigas novas, que com os seus trajos garridos e gestos airosos, emprestam a este espectáculo uma certa elegância, dum tom supreendente de côr. (1943: 22)

129 Parece tratar-se do instrumento atualmente designado por “xitende”. 130 Por landim, o autor refere-se à língua utilizada pelos negros.

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Com estes exemplos tornam-se claros alguns dos pressupostos de Belo Marques em relação à música, o qual assume um discurso manifestamente folclorista desde o início do seu projeto, sendo possível estabelecer algumas relações com autores antecedentes, ligados ao folclorismo, nomeadamente Armando Leça.