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5. Música Negra

5.2 A Obra Etnográfica

Podemos considerar Música Negra uma obra etnográfica, na medida em que Belo Marques procede a uma identificação, descrição e categorização — “música negra” — de materiais musicais, o mais objetivamente possível, e de alguns aspetos da vida social dos grupos observados; e também devido à sua faceta apologética de um discurso folclorista, nos termos atrás referidos, assim como dos aspetos que esse tipo de discurso encerra. Para considerar a obra como tal, será pertinente citar Clifford (1988), quando escreve:

Ethnography, a hybrid activity, thus appear as writing, as collecting, as modernist collage, as imperial power, as subversive critique. Viewed most broadly, perhaps, my topic is a mode of travel, a way of understanding and getting around in a diverse world that, since the sixteenth century, has become cartographically unified. One of the principal functions of ethnography is “orientation” (a term left over form a time when Europe traveled and invented itself with respect to a fantastically unified “East”). (Clifford 1988: 13)

A ideia de Clifford sobre a noção de “orientação” é interessante e aplica-se, de certo modo, a Música Negra, sobretudo considerando o facto de Música Negra (1943) ter sido publicada cinco anos antes da obra de Hugh Tracey (1948) acerca dos músicos chopi.

É evidente que Clifford se refere a obras etnográficas de outro fôlego, de pretensão verdadeiramente científica. Por outro lado, Belo Marques deixa claro o que Música Negra não é, “Ele não foi escrito para fazer literatura” (Marques 1943: 121), e qual o potencial da obra:

Mas a África é um grande continente, onde os costumes variam muito de província para província; por isso, todo este estudo e estas considerações acerca do negro não podem

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ser interpretadas de uma forma geral e nem mesmo estas canções e a sua análise servirão para, de uma forma segura, chegarmos a conclusões definitivas. (Marques 1934: 117)

A escrita de Belo Marques denuncia um aspeto pertinente no modo como a obra deverá ser analisada, e que se articula, de certa forma, com a duração do tempo que permaneceu no “mato” moçambicano. O facto de ter realizado um levantamento de canções e de ter tecido várias considerações em torno das mesmas, assim como acerca da vida social dos grupos com os quais se cruzou, em menos de um mês, é indicativo de que Belo Marques dispôs de uma série de noções e ideias transversais ao discurso colonial da época, acerca do que seria ou do que deveria ser “África”, filtrando e selecionando desse modo a informação, complementando com ideias correntes do domínio do “senso comum”, no processo de tradução da experiência para a escrita. A propósito deste papel autoritário que Belo Marques assume na escrita, consciente ou não desse facto, Clifford (1988), afirma que:

[…] ethnography is, from beginning to end, enmeshed in writing. This writing includes, minimally, a translation of experience into textual form. The process is complicated by the action of multiple subjectivities and political constraints beyond the control of the writer. In response to these forces ethnographic writing enacts a specific strategy of authority. (Clifford 1988: 25)

Em relação à “objetividade”, acima referida, é, atualmente, impossível ter uma ideia concreta de como Belo Marques terá procedido no terreno. Existem, porém, esparsas e importantes referências ao rigor pretendido nesse trabalho, e que são demonstrativas de uma tentativa de objetividade no que toca ao tratamento do material musical. Torna-se aqui necessário distinguir, neste caso em particular, as estratégias, com vista a essa objetividade, utilizadas para interpretar o objeto — a “música negra” —, do próprio objeto, cuja validade científica é algo duvidosa. Note-se que, para além da entrevista com Álvaro Belo Marques e da carta de Belo Marques endereçada à Emissora Nacional, o único registo que existe sobre o trabalho de terreno que Belo Marques efetuou em Moçambique encontra-se nas páginas de

Música Negra.

Na carta, Belo Marques descreve o seu encontro com Hugh Tracey:

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região do Sul do Save, para fazer um estudo sobre o folclore Tonga. Fui numa carrinha velha, levando como condutor e única companhia, um rapaz ainda novo mas escuro. Querem ver a minha vergonha? Certo dia, no Régulado de Nhazimo-Nha-agale, (mesmo que ralhes não faz mal,) dei de caras com um senhor inglês que andava como eu, fazendo o mesmo estudo, por conta do seu Governo. O senhor Hugh Tracy [sic.] era acompanhado por sua esposa, um médico, dois enfermeiros brancos, um cozinheiro e sete criados negros. Este senhor tinha ainda ao seu serviço, três grandes automóveis quase de luxo. Creio que ele não sabia escrever o que ouvia. Cheguei a esta conclusão ao ver uma caixa de diapasões que ele transportava. Estarei em erro?… Desamparado de tudo e sentindo em mim uma secreta, mas bem portuguesa humilhação, ofereci-lhe alguns apontamentos meus e despedi-me116.

Álvaro Belo Marques, filho de Belo Marques, fornece mais alguns detalhes interessantes acerca do projeto etnográfico de Belo Marques:

Fez uma proposta ao radio clube. Ele só pedia nem mais dinheiro nem ajudantes nem técnicos nem nada. Ele e o Vicente, o motorista do Rádio Clube, e a carrinha, dinheiro para a gasolina, dinheiro para comida, ia correr todo o sul do Save e fazia a recolha do folclore Tonga. […]. Andou a dormir em barracas e tendas […] enfim onde podia. Não havia maquinas de gravar, a AEG ainda não tinha aparecido. Por isso a rapidez com que ele escrevia música. […] Apanhou as músicas todas, apanhou os temas, copiou as letras, e veio cheio de material117.

De relevo em ambos os testemunhos são as parcas condições materiais com que Belo Marques terá realizado o trabalho, e o facto de ter feito as transcrições apenas com recurso à audição no local, sem qualquer equipamento. Há um detalhe, que será interessante referir antes de prosseguir e que se prende com a notação que Belo Marques utiliza para a transcrição dos quartos de tom. Belo Marques, no manuscrito de Música Negra, não aplica a notação de quartos de tom que utiliza na publicação final. Comparando as mesmas canções, facilmente se constata este facto, ao qual subjaz, a meu ver, a hipótese de Belo Marques ter aplicado a notação de quartos de tom posteriormente, baseando-se numa espécie de lei geral que o próprio identificou, e que, efetivamente, se verifica de modo geral ao longo das transcrições

116 Cf. Carta de Belo Marques no Anexo.

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presentes na obra:

Há uma grande dificuldade em escrever com precisão esta música porque a maior parte da toada negra é cheia de imprevistos e a muito custo se conseguem sinais e ornamentos musicais para boa compreensão e fácil leitura. Fomos por esse motivo obrigados a arranjar para nosso uso, muitas abreviaturas, gráficos, pontos de referência, assim como por exemplo, para o quarto de tom, que se nota geralmente a seguir da tónica quando esta cai em tempo forte e é precedida da mediante e também da quarta aumentada. (Marques 1943: 14)

Para além da ausência da indicação dos quartos de tom, surgem outras discrepâncias, nomeadamente na marcação de compassos e a ausência de notas, que teriam sido acrescentadas posteriormente. É também interessante confrontar esses mesmos testemunhos com algumas passagens do livro, por exemplo, no “1º Estudo”, em que Belo Marques refere que:

Tivemos a ocasião de ouvir algumas [canções] por vários grupos indígenas, numa pequena festa organizada para nosso estudo. Vamos citar e explicar o melhor que pudermos as que colhemos, com aquela atenção e cuidado que merece tal trabalho. (Marques 1943: 11)

Numa passagem que aparenta ser uma evocação dos aspetos positivos a retirar da falta de recursos no terreno, Belo Marques escreve:

É de bastante dificuldade conseguir um gráfico exacto para esta música. Eu bem sei que o indivíduo, que se propõe estudar folclore, não precisa gravar fielmente, como uma máquina fotográfica, o que ouviu, mas sim observar, com todos os sentidos, o fundo geral da questão. (1943: 83)

E mais adiante:

Limitei-me a apresentar estas canções, apenas no seu princípio. Seria muito extensa, para um livro como este, a apresentação das mesmas com todo o desenvolvimento e todas as fantasias que ocorrem aos executantes negros, no decorrer das suas canções. Procurei por isso dar, ou fazer adivinhar de uma forma geral, qual o sentido musical do negro e o espírito estranho da sua música. As canções que se seguem neste estudo [o décimo segundo estudo], de diferentes Régulados e raças, são expostas sem comentários e como as ouvi. Também, na tradução da letra, procurei dar o sentido mais possível exacto. (1943: 85)

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Estes são apenas alguns dos exemplos presentes em Música Negra que expressam, de modo indireto, a falta de recursos, e, de modo direto, as dificuldades que daí advêm, das quais Belo Marques tem consciência, assim como tem consciência das implicações que tais limitações têm sobre um trabalho de carácter etnográfico. Se assim não fosse, porque haveria Belo Marques de referi-las? É, portanto, neste sentido que considero a noção de “objetividade na medida do possível”, que subjaz à obra, admitindo, no âmbito em que este meu trabalho se insere, a hipótese de Música Negra ter sido concebida como obra etnográfica, independentemente da visão romântica e generalizante de Belo Marques, de inspiração garrettiana, sobre o universo que explora.